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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte jun. 2010

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

Suicídio e laço social

 

Suicide and social bond

 

 

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

D. E. Durkheim (1897) demonstrou, em sua famosa obra sobre o tema, que o suicídio extrapolava em muito a conotação moral sob a qual foi estudada até então e expressava um fenômeno solidamente fundado no liame social no qual o sujeito suicida está inserido, inaugurando nova visão sobre este ato radical. Ato que encerra um paradoxo essencial: embora seja o que de mais individual alguém possa vir a fazer, o suicídio é universal ao longo de toda a História humana e está sob  forte influência dos laços sociais aos quais o suicida se referencia ou dos quais é excluído. Este paradoxo gera uma questão crucial: o suicídio é ruptura do laço social ou tentativa final desesperada de consegui-lo? Esta questão essencial tem outros desdobramentos. O suicídio é sempre uma mensagem endereçada ao Outro? O suicida está sempre imerso em angústia avassaladora ou pode ele consumar seu ato em total serenidade? Pode o laço terapêutico entre analista e sujeito suicida evitar que este concretize seu ato final? Que ato é esse?

Palavras-chave: Suicídio, Laço social, Suicídio e Sociologia, Notas de suicídio, Suicídio e Psicanálise, Laço terapêutico suicida-psicanalista.


Abstract

D. E. Durkheim (1897) has shown with his famous work that suicide goes beyond the moral connotation under it was seen so far and that it is a typically social phenomenon, offering us a new sight of this radical act and raising some crucial questions about it. Is suicide a rupture of the social bond or a last desperate try to get it? Is suicide always a message sent to the Other? Is the suicidal person always under overwhelming anguish or can he commit his act in complete serenity? Can the therapeutic bond between the analyst and the suicidal person avoid that he commit his last act? Which act is this?

Keywords: Suicide, Social bond, Suicide and sociology, Suicide messages, Suicide and psychoanalysis, Suicidal-psychoanalyst therapeutic bond.


 

 

Introdução

Em trabalho apresentado na XXVI Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais em 2008, que teve como tema "Angústia" (COUTINHO, 2009), citei como uma das formas mais precisas e concisas de, poeticamente, descrever este sentimento, aquela de Ana Cristina César (1952-83), poetisa que até então eu desconhecia: "angústia é fala entupida". Ao elaborar o presente trabalho para a Jornada de 2009 do CPMG, cujo tema foi "Angústia e laço social", descobri com perplexidade que a poetisa praticou suicídio por defenestração do apartamento onde moravam os pais. Esta sequência de descobertas sobre a autora põe em relevo, sob a ótica psicanalítica, a íntima relação entre suicídio, laço social e palavra, corroborando valioso postulado freudiano que reza que aquilo que não é dito, aquilo que permanece como "fala entupida", sempre aparece em ato, ainda que seja pelo ato suicida.

Compreender o impasse entre continuar ou não vivendo, diante do qual se vê o sujeito suicida, sempre foi grande desafio para diversas áreas do conhecimento humano. Este conflito também é tema frequente das variadas formas de expressão artística, como nesta: "Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? Não: vou existir. Arre! Vou existir. E-xis-tir" (PESSOA, 1980). O suicídio tem lugar central no questionamento filosófico: "Suicidar é ato inútil e insensato; destrói arbitrariamente o fenômeno individual, mas a coisa em si permanece intacta. ... O suicida quer a vida; não está descontente senão das contradições em que a vida se lhe oferece." (SCHOPENHAUER, 2001, p.416-417). Albert Camus (1913-60) sintetiza assim a relevância do tema: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo; decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da Filosofia" (CAMUS, 2008, p.13). Para a busca do sentido do ato suicida, além da Filosofia, convergem várias áreas de saber: moral, Ética, Fisiologia, família, religião, Medicina e a própria cultura da sociedade onde está inserido o suicida. Entre todas elas, porém, duas têm importância capital na forma como hoje se veem o sujeito suicida e seu ato: a Psicopatologia – da qual se utilizam Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise – e em especial a Sociologia que, através do angular trabalho O suicídio de Durkheim (1897), inaugurou um novo olhar sobre este fenômeno, desvinculando-o da conotação moral sob a qual ele era abordado até então e documentando de forma científica sua relação com os laços sociais que o sujeito suicida estabelece. É a partir deste trabalho que as ciências do psiquismo aprofundam seu estudo sobre o suicídio. O primeiro esforço da Psicanálise nesta direção data de 1910, quando foi realizado em Viena, com a presença de Freud e de seus seguidores, um simpósio tendo como tema o suicídio entre escolares, do qual se extraíram conceitos fundamentais, destacando-se os seguintes: "só quem perdeu a esperança de ser amado abandona a vida"; "ninguém se mata exceto se também queira matar ou ao menos deseje a morte de outro"; "ninguém se mata sem que sua morte seja desejada por alguém". Na Psiquiatria, entre várias obras importantes, merece comentário a de Karl Menninger que, no livro O homem contra si próprio (1938), aborda a relação entre o suicídio e a agressividade e coloca este ato final como o ponto de convergência das três dimensões psicopatológicas da morte: morrer, matar e ser morto.

 

Durkheim: suicídio e sociedade

Em O suicídio (1897), David Émile Durkheim (1858-1917) caracteriza o ato suicida como um fenômeno social e analisa duas forças envolvidas em sua perpetração, resumindo suas conclusões na fórmula que afirma que o suicídio varia na razão inversa do grau de integração do grupo social a que pertence. Em síntese, solidariedade social é o centro deste embate, que se faz entre as forças de integração – que refletem a consistência do laço social – e forças de regulação – que se referem ao poder coercitivo da lei. Desta interação surgiriam os quatro tipos sociais de suicídio: egoísta, altruísta, anômico e fatalista. Os dois primeiros se relacionam com as forças de integração social – reduzidas no suicídio egoísta e excessivas no altruísta – e os outros dois refletem a regulação social imposta pela força coercitiva da lei – reduzida no suicídio anômico e excessiva no fatalista (DOMINGUES, 2004).

Assim, para Durkheim, o suicídio do tipo egoísta se deve à presença insuficiente da sociedade na vida do indivíduo, manifesta por precariedade ou total ausência de laços sociais e/ou familiares, levando-o a um individualismo excessivo. É certamente o tipo social de suicídio mais prevalente e, talvez, aquele onde o laço transferencial construído com o analista e outros profissionais de saúde mental tenha maior potencial terapêutico, já que para muitos autores este vínculo é o mais forte fator preventivo do ato suicida, na medida em que ele oferece ao sujeito o suporte afetivo necessário para elaborar a falta.

No suicídio do tipo anômico, a precariedade da presença da sociedade na vida do sujeito se faz de outra forma, ocorrendo durante crises ou mudanças precipitadas por fragilidade da malha social, o que acarreta um profundo sentimento de desintegração em consequência do afrouxamento, mesmo que transitório, da norma e da presença da lei. O aumento da taxa de suicídios durante crises econômicas é fato estatisticamente provado, tal como foi demonstrado durante a grande depressão americana de 1929, consequente à quebra da Bolsa de Valores de New York. No Brasil ocorreu fenômeno idêntico durante o plano Collor, que confiscou arbitrariamente a poupança. Contemporaneamente, a crise financeira internacional tem sido associada ao aumento de suicídios em todo o mundo, refletindo a angustiante percepção do sujeito de encontrar-se numa situação sem saída. Exemplo disto foi a onda de 22 suicídos e 13 tentativas em 18 meses na France Telecom que, para enfrentar a crise financeira, implantou plano de reestruturação para aumentar sua competividade, que gerou intensos sentimentos de desorganização nos funcionários.

No suicídio do tipo altruísta, a presença da sociedade na vida do sujeito é maciça e se reflete em comunitarismo excessivo, devido à sua subordinação total a fins sociais. Neste contexto, o suicídio é percebido pelo sujeito como um dever e um ato impessoal. Exemplo clássico desta categoria de suicídio é o que foi praticado sistematicamente por kamikazes, no confronto entre japoneses e americanos durante a Segunda Grande Guerra, quando centenas de pilotos lançaram voluntariamente aviões contra os navios inimigos. É relevante notar que o suicídio voluntário é uma tradição na cultura japonesa, que trata como privilégio a possibilidade de morrer pela pátria e pela família, motivo pelo qual a lista de candidatos a kamikaze sempre foi maior que o número de aviões disponíveis. Tal morte não é vista como um ato de desespero, mas de lucidez e abnegação rigorosas, conferindo significado especial à vida e enobrecendo eternamente o sujeito suicida. As fotos que retratam os kamikazes momentos antes de embarcarem para seu voo mortal mostram invariavelmente homens alegres, que compartilham sentimentos de realização. A versão atual dos kamikazes, embora movidos por sentimentos muito diferentes como de vingança e ódio religioso, é a dos fundamentalistas islâmicos que protagonizaram o terrível atentado terrorista contra as torres gêmeas de New York, em 11/09/2001. Outro exemplo contemporâneo deste tipo de disposição suicida foi noticiado em 05/01/2009 pelo Estado de São Paulo, com a manchete "70 mil iranianos se oferecem a ato suicida (a bomba) contra Israel", em resposta à recente ofensiva israelense na Faixa de Gaza.

Também no suicídio do tipo fatalista a presença da sociedade é maciça na vida do sujeito, na forma de uma regulação excessiva, intransigente e coercitiva, geralmente exercida por representantes do poder constituído e pelo Estado. Neste contexto o suicida encara seu ato como a única e desesperada forma de livrar-se da opressão sob a qual ele é obrigado a viver. A história da humanidade é rica em exemplos deste tipo de suicídio, presente em qualquer tempo, lugar e cultura, tornando difícil escolher apenas um deles. Entretanto, o suicídio de Vladimir V. Mayakowsky (1893-1930), célebre poeta russo, é emblemático. Após longo e intenso comprometimento com a revolução socialista russa, o poeta assiste, com a vitória e instalação do novo governo, a uma progressiva restrição à liberdade de imprensa e de livre expressão, passando a ser criticado e perseguido pelo caráter progressista de sua poesia. No início de 1930, a exposição comemorativa dos 20 anos de seu trabalho é totalmente ignorada por agremiações literárias e pela imprensa estatal vigente, sendo acusado de ser incompreensível para as massas e de usar palavras indecentes. Nesta época Mayakowsky declarou que, após sua morte, seus versos seriam lidos com lágrimas de enternecimento. A depressão que ele atravessava é então agravada por sucessivas afecções de garganta, particularmente penosas para quem procurava sempre falar em público e cuja poesia é marcada pela oralidade. De significado particular e inequívoco é o fato de que, dias antes de suicidar-se com um tiro, Mayakowsky conclui o poema intitulado "A plenos pulmões".

 

Notas de suicídio

Corroborando o perspicaz postulado freudiano de que o artista sempre antecipa o psicanalista, para abordar o tema das notas de suicídio, expressão concreta do elo entre suicídio e laço social, recorro antes a Clarice Lispector: "Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. ... E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. ..." (LISPECTOR, 1984, p.134).

A nota de suicídio é uma mensagem deixada por alguém, escrita ou gravada em vídeo ou som, que em seguida tenta ou comete suicídio. A psiquiatra e pesquisadora norte-americana Lenora Olson realizou, em sua tese de doutorado, extensa análise sobre as notas de suicídio, catalogando informações sobre o tema muito valiosas para analistas e demais profissionais de saúde mental. Estima-se que de 12 a 20% dos suicidas deixam nota, taxa que pode variar com o método de suicídio ou com diferenças culturais e pode chegar a 50 a 100% em certos locais. As razões mais comuns para o suicida deixar uma última nota incluem: aliviar a dor dos que ficam, tentando isentá-los de culpa; aumentar a dor dos que ficam, atribuindo-lhes culpa; esclarecer a razão do suicídio; atrair piedade ou atenção; deixar instruções do que fazer com o que restou. Raramente quem comete crime ou outra ofensa confessa seu ato numa nota de suicídio. As razões mais comuns para o suicida não deixar uma nota incluem: é funcional ou completamente analfabeto, ou desconfortável com a linguagem escrita; não tem nada a dizer ou ninguém a quem dizer (comum em idosos ou solitários); sente que não pode expressar o que quer dizer; a opção pelo suicídio foi impulsiva ou apressada demais para escrever a nota; esperança de que o suicídio seja interpretado como acidente ou homicídio (comum em pessoas que tinham seguro de vida ou querem ser bem lembradas); simplesmente não quer escrever sobre sua escolha. Noutro extenso trabalho da literatura psiquiátrica publicado em 2004, pesquisadores japoneses demonstraram que a incidência de notas permaneceu constante (23 a 36%) durante os 21 anos analisados no estudo, apesar do aumento da taxa de suicídios no período, sugerindo que as razões para este ato não influem nesta incidência.

Sob a ótica psicanalítica a nota de suicídio, além de atestar a íntima relação entre este ato e o laço social, expressa uma mensagem endereçada ao Outro. O suicídio é um ato radical que, comumente, encerra uma fantasia, que o sujeito busca realizar através de sua nota póstuma. As fantasias suicidas habitualmente incluem ideias de sacrifício, punição, vingança, poder, igualdade, fuga, renascimento e resgate (KAPLAN, 1999).

A lista de notas de suicídio célebres é extensa, mas um dos exemplos mais claros da fantasia subjacente a esta mensagem é aquela expressa pelo pintor holandês Vincent W. van Gogh (1853-1890), um psicótico que se matou com um tiro e que declarou que, com seu ato, o suicida faz com que os amigos e familiares se sintam seus assassinos. No Brasil, certamente a nota de suicídio mais famosa foi a deixada pelo Presidente Getúlio Dorneles Vargas (1882-1954), que se matou com um tiro no palácio do governo. Na verdade, trata-se de uma carta-testamento que termina com as seguintes frases: "Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Dou o primeiro passo a caminho da eternidade e saio da vida para entrar a História" (DAPIEVE, 2007, p.102). O efeito e o alcance deste célebre documento póstumo foi resumido assim por Arthur Dapieve, professor de jornalismo: "A carta-testamento é uma profecia auto-realizável: ele entra na história no próprio ato de se matar por ela. Foi uma jogada política mórbida, mas brilhante, afora o fato de a carta em si ser uma peça de alta literatura suicida. Além disso, com seu gesto, ele adiou o golpe militar então já iminente por dez anos e meio, que apagou o próprio passado como ditador militar. Não é pouca coisa" (DAPIEVE, 2007, p.116).

 

Suicídio e serenidade

A carta-testamento de Getúlio Vargas, além de todo o significado político que encerra, traz na última frase uma palavra extremamente significativa de caráter pessoal, que merece ser ressaltada: "Serenamente ...". Embora possa ser afirmado que a maioria dos suicídios é cometida por sujeitos psiquicamente enfermos, que frequentemente são vítimas de depressão grave, psicose delirante ou drogadição, a associação entre suicídio e doença mental nem sempre é óbvia, o que suscita uma questão crucial: o suicida está sempre imerso em angústia avassaladora ou pode ele consumar seu ato em serenidade? Se tomarmos como verdadeiras as últimas palavras de Getúlio Vargas, a resposta é clara. A revista Época de 20/07/2009 publicou uma matéria, resumidamente reproduzida aqui, que traz outro exemplo que reforça de forma contundente a ideia de que a decisão de deixar de viver pode ser tomada em absoluta serenidade: "Ted (85) e Joan Downes (74), casados há 54 anos, tinham um casal de filhos. No início de julho, saíram de sua casa num bairro rico de Londres rumo a Zurique, na Suíça, acompanhados dos filhos. Joan tinha sérios problemas de saúde: câncer terminal no pâncreas e fígado. Foram a Zurique com um único objetivo: morrer. Eles se hospedaram na controvertida clínica Dignitas, que oferece morte assistida aos pacientes. ‘Eles tomaram um líquido claro, se deitaram de mãos dadas, logo estavam dormindo e em dez minutos tinham morrido', disse um dos filhos do casal. O líquido claro continha nembutal, uma droga letal. Ted Downes era um extraordinário maestro, um dos maiores do mundo em sua geração. Aparentemente, desistiu de viver sem Joan. O suicídio do casal renovou na Inglaterra o debate sobre direito à eutanásia" (NOGUEIRA, 2009, p.98-99). Embora possa ser argumentado que a eutanásia não corresponde exatamente ao ato suicida, que é perpetrado pelo próprio sujeito, isto não invalida o mérito da questão colocada. Questão pertinente à história da Psicanálise, já que seu criador, Sigmund Freud (1856-1939), após sofrer por longos anos com câncer de garganta, optou pela eutanásia com morfina, praticada por seu médico particular. É oportuno resgatar aqui as palavras já citadas de Albert Camus: "... decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da Filosofia."

 

Suicídio: imitação e contágio

Dois fenômenos que, assim como as notas suicidas, atestam a íntima relação que existe entre suicídio e laço social, se devem à publicação de notícias de autoextermínio e foram denominados imitação e contágio. Na imitação, um suicídio exerce um efeito modelador em suicídios subsequentes. No contágio, um suicídio facilita a ocorrência de novo autoextermínio, indiferentemente do direto ou indireto conhecimento do suicídio precedente. Reconhecida influência destes fenômenos no aumento das taxas de suicídio levou a Organização Mundial de Saúde a elaborar um guia para profissionais de mídia, para orientá-los quanto ao modo correto de noticiar um suicídio. As principais vítimas desses tipos de sugestão são os jovens e, em particular, crianças e os adolescentes. Na Suíça, a principal causa de morte até os 25 anos de idade é o suicídio, embora estas altas taxas não estejam exclusivamente relacionadas à imitação e ao contágio. Um exemplo clássico do efeito destes fenômenos foi ligado à famosa obra Os sofrimentos do jovem Werther (1774), do notável escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que fala das infelicidades e triste destino de Werther, presa de uma paixão proibida por Charlotte, que já era comprometida com outro homem. Por isso, ele decide suicidar-se. Na época, após ler a novela de Goethe, muitos jovens se mataram e em certos casos o faziam segurando um exemplar do livro. Desde então, estudos científicos demonstraram que a leitura ou o relato de casos de suicídios pode levar à identificação e à imitação, o que passou a ser conhecido como o "efeito Werther".

 

Suicídio e diferença sexual

Não é escopo deste trabalho pormenorizar a epidemiologia do suicídio, mas das várias informações valiosas que seu estudo pode trazer ao profissional de saúde mental, e uma delas se destaca por sua aparente ininteligibilidade. É dado estatístico estabelecido em todo o mundo que a taxa de suicídios entre os homens é o dobro da registrada entre mulheres, embora estas tentem com maior frequência o autoextermínio. Este aparente paradoxo se deve à escolha dos métodos de suicídio mais letais por parte dos homens, como o enforcamento ou armas de fogo. O dado aparentemente ininteligível ao qual me refiro, porém, é outro, sobre o qual podemos lançar um olhar psicanalítico e desvendar o que parece ser enigmático: o único país onde a taxa de suicídios entre mulheres supera a registrada entre os homens é a China, segundo a Organização Mundial de Saúde (2009). Ora, é fato conhecido que no país mais populoso do planeta, como forma de reduzir as taxas de natalidade, foi determinado que cada família teria direito a ter apenas um filho, sendo considerada criminosa perante o Estado aquela que desobedecesse a absurda lei. Este descalabro gerou consequências trágicas, como o assassinato frequente de meninas recém-nascidas no meio rural, em função da evidente preferência das famílias por terem um menino, visto como melhor força de trabalho para seu sustento futuro. Isto obrigou o governo chinês a retroceder. Que sentimentos poderiam ser esperados nas mulheres chinesas diante de tal violência? Certamente o de absoluta desvalorização em relação aos homens, o que já pode ter relação direta com o suicídio mais frequente entre estas mulheres, tipicamente do tipo fatalista, segundo a classificação de Durkheim. E o que poderiam estas mulheres esperar diante da impossibilidade de vir a ter mais filhos e ver seu desejo de maternidade arbitrariamente tolhido? Neste contexto Freud pode nos ajudar a entender este aparente paradoxo epidemiológico, quando fala, em sua correspondência e em outros momentos de sua obra, sobre o método de suicídio, afirmando que ele é o simbolismo sexual mais primitivo. Para Freud, o homem se mata preferencialmente por métodos com explícita conotação fálica: com um revólver ou por enforcamento, quando seu próprio corpo transforma-se em um pênis que pende em todo o seu comprimento. Em relação à mulher, Freud identifica três formas predominantes de suicídio: defenestração, afogamento e envenenamento, respectivamente associadas por ele aos significados simbólicos de dar à luz, trazer ao mundo e gravidez. Portanto, para Freud, mesmo ao morrer, a mulher busca cumprir sua função sexual: ser mãe (FREUD, 1900, v,V). Sob esta ótica, não seria o suicídio a única e desesperada forma das mulheres chinesas, submetidas a esta repressão absurda, expressarem seu desejo de maternidade?

 

Suicídio e Psicanálise

No final do simpósio de 1910 sobre suicídio entre escolares mencionado acima, Freud opinou que, apesar do rico material obtido, não se havia chegado a uma conclusão sobre o que poderia motivar a superação do poderoso instinto de vida e defendeu que a elucidação deste enigma só poderia partir da já bem conhecida melancolia e de sua relação com o afeto do luto, posição que foi o germe para os desdobramentos futuros. A visão psicanalítica sobre o tema pode ser sintetizada no conceito emitido por Freud em "Luto e Melancolia" (FREUD, 1917) de que o suicídio seria uma autoagressão dirigida a um objeto libidinal introjectado, ou seja, um desejo de morte dirigido a outra pessoa que se volta contra o próprio sujeito na forma de autopunição. Em torno deste conceito essencial, a literatura psicanalítica vem, desde então, aprofundando o estudo deste tema. Uma nova contribuição de valor capital no entendimento do suicídio foi feita novamente por Freud em "Além do princípio de prazer" (FREUD, 1920), com o conceito de pulsão de morte e sua íntima relação com a compulsão à repetição em suas diversas expressões clínicas, entre elas o próprio suicídio.

Lacan (LACAN, 1964) parte daí para diferenciar a repetição em duas vertentes: a simbólica (autômaton), decorrente da insistência dos significantes, e a real (tiché), que resulta do encontro com o trauma e pode expressar-se pelo suicídio. Esta teorização nos permite diferenciar clinicamente a atuação, que é dirigida ao outro, da passagem ao ato, que é endereçada ao Outro e onde se inclui o suicídio, embora mesmo a atuação possa, acidentalmente, resultar em danos físicos e mesmo no êxito letal. Atuação e passagem ao ato dizem respeito à posição inconsciente do sujeito frente à sua cena fantasmática. Na atuação ele é protagonista desta cena, mas dela ele tenta se excluir passando ao ato, ainda que seja o ato suicida, movimento assim expresso por Miller: "a passagem ao ato não engana, é uma saída de cena que não deixa mais lugar à interpretação, não deixa mais lugar ao jogo significante" (MILLER, 2005).

Embora certos autores defendam diferenciar os suicídios em neurótico, psicótico e melancólico, de acordo com as características clínicas envolvidas, estudiosos do tema são unânimes em afirmar que não há fórmula teórica única que explique este ato radical. O que está bem estabelecido na extensa literatura sobre o assunto é que existem sinais particularmente sensíveis de suicídio iminente, como a existência de um plano de ação admitido pelo paciente e sua repentina mudança de atitude na psicoterapia, deixando de falar sobre matar-se e tornando-se mais calmo, o que expressa tomada de decisão sobre seu ato. Outros indícios são ausência de planos futuros, doação de bens pessoais, perda pessoal recente e confecção de um testamento. Como profissional de saúde mental, o psicanalista tem o dever ético-profissional de estar tecnicamente preparado para lidar com o sujeito potencialmente suicida, particularmente no que se refere ao diagnóstico desta situação de risco, já que o tratamento deve contar obrigatoriamente com o auxílio de um psiquiatra, em função da frequente necessidade do uso de psicotrópicos e também de internação hospitalar. Assim, o questionamento direto do paciente sobre o desejo de morrer e ideação suicida é obrigatório se o analista suspeita destas intenções, pois estas são reveladas em 80% dos casos de suicídio e em 50% deles a pessoa afirma claramente seu propósito. A escuta analítica representa talvez situação ideal para detecção precoce da tendência suicida, se nos lembrarmos de que o suicídio encerra uma mensagem de um sujeito, que emite sinais de angústia antes de consumar seu ato. Tendo acesso, na transferência, às suas fantasias e ao seu material onírico, o psicanalista está em posição ímpar para traduzir esta mensagem e desvendar o desejo de morrer do paciente, quando este não o expressa abertamente. Neste caso, o prévio conhecimento dos fatores de risco estatisticamente significativos para o suicídio pode auxiliá-lo na identificação do suicida potencial e alertá-lo sobre os sinais que este envia antes de passar ao ato, o que pode ser decisivo em sua prevenção ou contenção (COUTINHO, 2001).

A transferência é demanda de saber e, talvez principalmente, de amor. O mesmo vínculo transferencial que permitiu o diagnóstico do suicida em potencial pode ser vital na contenção da sua passagem ao ato, já que uma sólida relação afetiva com o terapeuta é, como ressaltam vários autores, o elemento preventivo mais eficaz do autoextermínio. É oportuno lembrar a observação de Freud de que não há análise na crise, momento em que o paciente encontra-se paralisado pela angústia e no qual o analista só pode oferecer seu próprio desejo ao paciente de que este "não se vá". Encontrar um lugar no desejo do Outro é o que o sujeito suicida busca em desespero. Superada a crise com os recursos psiquiátricos necessários, que podem incluir o uso de psicofármacos, hospitalização e inclusive eletroconvulsoterapia nos casos de depressão grave, pode ser resgatada a condição para o progresso da análise em muitos casos. Porém, é sabido que o chamado "grande suicida", determinado a se matar apesar de esforços em contrário de familiares e equipes multidisciplinares, acaba por consumar seu ato (IDEM).

Sabemos com Freud que o recalcado não simbolizado surge sempre na conduta na forma de repetição que, para estes sujeitos, pode se expressar pela passagem ao ato letal. Seguindo Freud, Lacan incluirá no registro real a re-petição, uma demanda de amor que se repete ainda que seja no ato suicida, reiterando que "o que não se atualizou à luz do simbólico reaparece no real." (LACAN, 1998). Lacan definiu ainda a pulsão de morte freudiana como "vontade de destruição, de criação a partir do nada, vontade de recomeçar com novos custos" (LACAN, 1988, p.259), articulando num mesmo plano vida e morte, como duas faces de uma moeda. É pela linguagem que o sujeito potencialmente suicida pode encontrar alternativas ao seu ato final, para expressar o seu desamparo. Assim, "a Psicanálise... oferece exatamente a morte, porém, simbólica, para que o sujeito possa viver a vida" (RODRIGUES, 1993, p.11), dando-lhe a chance de escolher entre ato ou diz-ato.

 

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Endereço para correspondência:
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E-mail: ah.coutinho@terra.com.br

RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010

 

 

Sobre o Autor

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho
Médico. Psicanalista. Sócio e membro da atual diretoria do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

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