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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte June 2010

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

Traços melancólicos em Guimarães Rosa: uma leitura de Páramo, de Estas Estórias

 

Melancholic traces in Guimarães Rosa: a reading of 'Páramo', from 'Estas Estórias'

 

 

Edson Santos de Oliveira

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O presente artigo tem por objetivo demonstrar como Guimarães Rosa, no conto Páramo, de Estas Estórias, inaugura uma encenação ficcional da melancolia. O texto rosiano vai sofrendo uma gradual condensação à medida que avança e as ressonâncias melancólicas dessa narrativa funcionam como um rigoroso exercício de subtração da escrita em busca do silêncio, dando sequência às "operações subtrativas" de Tutameia.

Palavras-chave: Melancolia, Silêncio, Vazio, Subtração, Desaparecimento.


Abstract

The present article aims at demonstrating how Guimarães Rosa, in the tale 'Páramo', from 'Estas Estórias', inaugurates a fictional stage of melancholy. The Rosian text suffers a gradual condensation as it advances and the melancholic resonances of this narrative function as a rigorous exercise of writing subtraction in search of silence, continuing Tutameia's subtractive operations.

Keywords: Melancholy, Silence, Emptiness, Subtraction, Disappearance.


 

 

Há um consenso, entre os estudiosos da Literatura Brasileira, de que a obra rosiana, de Sagarana a Grande sertão: veredas, prima pelo acúmulo do significante. Metáforas, enumerações, elipses, variadas combinações de palavras e afixos apontam para uma alquimia da linguagem. Os jogos sonoros, as combinações e recombinações de significantes bem como as relações dialéticas entre as coisas e seu avesso parecem acenar não apenas para uma visão lúdica do ser e do não-ser, mas para um gozo na escrita. Essa estética do acúmulo levou alguns críticos a apontar uma herança barroca no texto do escritor mineiro.

O modo encachoeirado de escrever, em Guimarães Rosa, sofre, no entanto, um processo de poda que merece ser estudado com mais atenção. À medida que avança, a escrita rosiana vai se tornando cada vez mais condensada. É o que acontece, por exemplo, em Primeiras Estórias, cujos contos passam a ser mais reduzidos do que os de Sagarana. O enredo se torna rarefeito, como se pode constatar em Nenhum, nenhuma ou em A menina de lá. Já na última obra de Rosa, Tutameia, a redução ainda é maior. No último conto desse livro, Zingaresca, o que encontramos é um painel de personagens e fragmentos de vários contos do livro, espécie de tela em palavras em que a imagem e o som valem mais do que o significado. Essa opacidade e redução estão presentes em outros contos como Lá nas campinas, narrativa que descreve um personagem preso a um resto de frase, ou em textos como Sinhá Secada, No Prosseguir, além de outros, nos quais as personagens apenas gesticulam ou murmuram.

Willi Boole, ao estudar Tutameia, divide as narrativas em quatro grupos de contos. Em um desses grupos, as personagens tentam reagir diante da realidade que se impõe, abafando a fantasia e levando-as a um processo de resignação (BOOLE, 1973, p.117). É interessante observar que é exatamente nesse grupo, cujas personagens não reagem diante da realidade, que encontramos a subtração da escrita em grau mais elevado. Arroio das Antas, Sinhá Secada, Lá nas campinas, No prosseguir, Mecheu e mais algumas narrativas pertencem a esse conjunto destacado por Boole.

Nessa busca de síntese, o escritor mineiro se utiliza, em Tutameia, da migração de vários personagens e até mesmo de trechos e citações que se relacionam entre os contos. Como já mostrou Vera Novis, em muitas narrativas a leitura se completa a partir da relação de algumas estórias com outras (NOVIS, 1976, p.25). Nesse livro, Rosa lança mão do fragmento e de formas embrionárias de narrativas como provérbios, anedotas, epígrafes, chistes e outras variantes. Tais formas linguísticas condensadas permitem maior mobilidade na relação entre os contos e se disseminam pela obra, ampliando ainda mais a rede textual suscitando muitas vezes o humor. Assim, Guimarães Rosa vai gradualmente abandonando o enredo das suas obras, pintando palavras, que funcionam como ideogramas, caminhando para a opacidade do sentido em seus últimos textos, já prevista nos quatro prefácios de Tutameia, que se apresentam como moldura de sua escrita-tela. Evidentemente encontramos nesse livro enredos em boa parte dos contos, mas algumas narrativas trazem um alto grau de opacidade, como se Rosa já estivesse acenando para a possibilidade de um discurso sem palavras.

No primeiro dos quatro prefácios de Tutameia, Aletria e Hermenêutica, o autor mineiro dá alguns exemplos das chamadas "operações subtrativas":

"Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por sequência de operações subtrativas, nessa luta que é uma definição 'por extração'" – "O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo [...]" (ROSA, 1976, p.5).

Uma frase desse mesmo prefácio, que está articulada à estética da subtração e que poderia servir de epígrafe de Tutameia, é a seguinte: "O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber." (ROSA, 1976, p.12). Nesses nonadas rosianos, o silêncio não deve ser aqui entendido como mera ausência de palavras, mas como possibilidade de sentidos. Rosa, em suas "operações subtrativas" de Tutameia, quer "tirar o leite que a vaca não prometeu", como afirma no primeiro prefácio. Esse "leite não prometido" corresponde ao que não se dá a ler, num processo de escavação da linguagem até seu limite. Construindo frases agramaticais, o escritor mineiro vai "voando fora da asa", como quer Manoel de Barros, aproximando-se cada vez mais da pura poesia. E é nessa construção, a que Deleuze dá o nome de gaguejos da língua (DELEUZE, 1997, p.122), que a escrita rosiana deságua no silêncio.

Enfim, o que se percebe na escrita de Rosa, e em certos escritores da Literatura Brasileira como Machado de Assis, Raduan Nassar, João Gilberto Noll, e mais alguns poucos, é que à medida que amadurecem, vão caminhando em direção ao real, exibindo uma escrita do inacabado. Rosa, no conto a ser estudado, constrói uma narrativa pictórica em que o branco da tela-texto faz parte da própria estrutura da estória. Mas além da relação entre palavra e imagem, o autor de Sagarana se utiliza de outros recursos.

Neste artigo, pretendo fazer uma leitura do conto Páramo, de Estas Estórias, livro que veio depois de Tutameia. O conto a ser lido não foi concluído pelo autor. Lançando mão de traços melancólicos, Guimarães Rosa dá algumas pistas de como seria o seu próximo passo em sua trajetória descarnada de criação. O escritor mineiro continua praticando nesse conto a estética da subtração, que já vinha de Tutameia, mas explora o veio da melancolia, que tem sido muito cultivado na literatura contemporânea e que pode ser um instrumento eficaz para se ler não só essa narrativa, mas até mesmo alguns textos rosianos anteriores que já trazem ressonâncias do subtrativo.

O conto Páramo descreve as andanças de um personagem-narrador por um lugarejo situado na Cordilheira dos Andes. Trata-se de uma narrativa cujo protagonista tem como marca a vivência de um "demônio interior", o seu estado melancólico. Não se pode perceber no texto os limites entre os devaneios, as lembranças do personagem-narrador, a "realidade" descrita e a ficção que está sendo construída. Não há como resumir o conto. Sabe-se que o protagonista está em uma missão diplomática e, nas alturas dos Andes, sente-se próximo da morte. Ele poderia ter recusado essa nomeação diplomática, mas a aceita como se fosse obra do destino. Percebe-se na narrativa uma atmosfera trágica. Sente-se que o protagonista cumpre uma sina previamente traçada da qual não consegue escapar. Essa sensação de impotência e de ser condicionado pelo destino nos faz lembrar uma reflexão que Marie-Claude Lambotte faz do melancólico:

"Colocado neste lugar de verdade, com a defasagem no entanto que aí introduz o significante 'nada' e que faz com que o melancólico se mantenha na borda do buraco do real sem ocupá-lo, o sujeito permanece inteiramente habitado pela potência do destino que, mais que um olhar ou que numa palavra, se manifesta no sentimento de certeza que prende o sujeito nesta posição de 'menos que nada'" ( LAMBOTTE, 1997, p.528 ).

A angústia do protagonista é causada pelas alturas das montanhas e pela rarefação do ar, acrescidas de um sentimento de solidão e morte. No desejo de neutralizar esse estado melancólico, o protagonista entra em uma igreja, sentindo uma paz provisória. Pouco depois, sai do templo atormentado pela morte de um rapaz naquele local. Acaba entrando em um convento, encontrando uma freira com duas órfãs. Nesse percurso, ele é acompanhado pelo "homem cadáver", que funciona como seu duplo. No desejo de se livrar dele, que teria sido seu assassino em uma vida anterior, na tentativa de sair do desamparo em que se encontra, o personagem-narrador compra um livro. Ler o volume seria dar apenas um sentido, perder "o possível das coisas ainda por vir, no avante viver, o que talvez longe adiante me aguardava" (ROSA, 2001, p.272). É devido a esse medo de perder o futuro que ele deixa o volume em um cemitério. A morte é a companheira desse personagem-narrador melancólico. Para ele, morrer seria a volta ao inorgânico, ao silêncio, a um estado pleno de significação. Como afirma Michel Schneider, "o melancólico está coberto com as cinzas das palavras e carrega o luto de sua língua, como se não pudesse falar senão uma língua morta" (SCHNEIDER, 1990, p.397).

O livro abandonado no cemitério é devolvido ao personagem-narrador por um homem que havia ajudado a carregar um morto no enterro. A devolução do volume ao protagonista evidencia a impossibilidade de se escapar da linguagem.

Estando na cordilheira dos Andes, é natural que o personagem-narrador tenha dificuldade de respirar. Por sua vez, a insônia e a melancolia são também seus inimigos: "Meus maiores inimigos, então, iriam ser a dispneia e a insônia. Sob a melancolia – uma águia negra, enorme pássaro" (ROSA, 2001, p.268 – Grifo nosso).

A solidão em que se encontra a personagem, que nem nome tem, a sensação de desamparo, de profundo desespero, de ser vítima de um destino implacável, a referência constante à morte, metaforizada no homem cadáver e no enterro acompanhado, cujo defunto o protagonista não conhece, o estilhaçamento do texto são alguns dos traços melancólicos que perpassam pela narrativa. A natureza melancólica do protagonista leva o autor a criar uma estória de fragmentos. Rompe-se a relação de causa e efeito e as ações do personagem se misturam. A pulverização da escrita exibida mimetiza o próprio estado melancólico do personagem-narrador: dificuldade de respirar, de dormir, carência da palavra. Nasce um texto de silêncio e vazios.

No final do conto, após o protagonista abrir o livro, há um espaço em branco deixado por Rosa. O texto ficou inacabado com a morte do escritor. Curiosamente esse espaço acabou fazendo parte da estrutura da narrativa. A melancolia é assim exibida no vazio da página, que está em perfeita sintonia com a condição melancólica do personagem-narrador, que em seu vazio existencial se recusa a ler o livro que comprara. Esse branco da página possibilita uma aproximação da vida com a escrita. Não que a obra seja um reflexo da vida do autor, mas é a própria vida que se escreve.

O crítico Fernando Py chegou a elogiar as notas acrescidas por Paulo Rónai no volume Estas Estórias, afirmando que Rónai havia completado a última revisão não realizada por Rosa (PY, 1983, p.562). Na verdade, o espaço em branco deixado pelo autor acabou auxiliando na complementação do estado melancólico do personagem.

O que Fernando Py viu como qualidade, as notas explicativas do conto feitas por Rónai, no meu entender, passou a ser um defeito. Não que as notas do crítico sejam ruins. O excesso de explicação tira a sugestão e a indeterminação do texto, que são fundamentais na estrutura melancólica do conto.

Guimarães Rosa, deixando uma narrativa incompleta, mais uma vez nos surpreende: acabou finalizando bem a escrita melancólica exibindo, no plano da ficção, uma personagem em convivência com a morte e ao mesmo tempo encenando como autor, na realidade, essa mesma morte. A obra também pode ser construída fora do autor, uma vez que ele não é dono de seu texto.

O conto Páramo comprova o esforço rosiano para se aproximar do silêncio. Melancolia, silêncio e morte estão assim estreitamente relacionados. Freud afirma que na pulsão de morte o princípio de tensão caminha em direção à inércia. Enquanto as pulsões de vida – sexuais e de autoconservação – têm uma relação com a integração, a pulsão de morte busca o informe. Na melancolia, estamos diante de uma pulsão de morte em estado puro. Uma vez que ela é silenciosa, está relacionada ao que não se escreve.

Marie-Claude Lambotte, estudando a melancolia a partir de pressupostos lacanianos e winnicottianos, afirma que o estado de perda do melancólico decorre do "desfalecimento do olhar materno" (LAMBOTTE, 1997, p.193). Nasce assim a fragilidade do eu, colocando o melancólico em contato com o vazio. Daí o seu impulso para a arte. Está aberto o caminho para a relação entre melancolia e sublimação. Se a pulsão de morte é destruição, pode também ser recomeço. Lacan, no Seminário VII – A Ética da Psicanálise, ao estudar a sublimação, descarta a religião que tenta tamponar esse vazio. Embora a reconheça como forma sublimada, prefere a arte, que mantém o furo:

"Toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio. Não creio que seja uma fórmula vã, malgrado sua generalidade, para orientar aqueles que se interessam pela elucidação dos problemas da arte, e penso dispor dos meios para lhes ilustrá-lo de maneira múltipla e muito sensível" (LACAN, 1997, p.162).

Essa relação da arte com o vazio, segundo Lacan, está em sintonia com a proposta blanchotiana de literatura. Ao optar nas últimas obras por uma encenação ficcional da melancolia, Rosa, em seus futuros textos, provavelmente iria caminhar para essa "literatura do desaparecimento", proposta por Maurice Blanchot. Trata-se de uma literatura que começa no vazio e faz do nada a sua meta. Mas esse nada não deve ser entendido como mero niilismo. Nesse tipo de literatura proposto por Blanchot, a linguagem é marcada pela negação. A escrita melancólica rosiana, em Páramo, é um esforço de construção de uma "linguagem da literatura enquanto busca de um momento que a precede". Escrever é um "estar a morrer", um caminhar para o desaparecimento:

Escrevendo, o autor "se experimentou como um nada no trabalho e, depois de ter escrito, faz a experiência de sua obra como algo que desaparece. A obra desaparece, mas o fato de desaparecer se mantém, aparece como essencial, como o movimento que permite à obra realizar-se entrando no curso da história, realizar-se desaparecendo" (BLANCHOT, 1997, 297).

A partir de Páramo, Rosa estava abrindo caminhos para uma forma ainda mais radical de subtração da escrita, buscando um discurso sem palavras. E se em grande parte de sua obra as coisas se encaixam nos devidos lugares, possibilitando o surgimento da utopia, em alguns poucos textos ele mostra que a angústia e a melancolia fazem parte da condição humana e que nem tudo se sublima.

 

Bibliografia

BLANCHOT, Maurice. A parte do Fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 330 p.         [ Links ]

BOOLE, Willi. Fórmula e fábula. São Paulo: Perspectiva, 1973. 153 p.         [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. 171 p.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 396 p.         [ Links ]

LAMBOTTE, Marie-Claude. O discurso melancólico: da fenomenologia à metapsicologia. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997. 549 p.         [ Links ]

PY, Fernando. Estas estórias. In. Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 562-573. (Coleção Fortuna Crítica, 6).         [ Links ]

ROSA, João Guimarães. Aletria e hermenêutica. In: Tutameia: terceiras estórias. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p.3-12.         [ Links ]

ROSA, João Guimarães. Páramo. In: Estas estórias. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.261-290.         [ Links ]

NOVIS, Vera. Tutameia: engenho e arte. São Paulo: EDUSP: Perspectiva, 1976. 138 p. (Debates, 223).         [ Links ]

SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1990. 503 p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:

Endereço para correspondência:
Rua Hum, 15/201 – Nova Pampulha
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Tel.: (31)3496-8318
E-mail: edson-so@uol.com.br

RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010

 

 

Sobre o Autor

Edson Santos de Oliveira
Professor do Centro Pedagógico da UFMG - Coltec. Participante do Fórum de Psicanálise do CPMG. Pós-doutorando-IEL-UNICAMP.

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