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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte Sept. 2010

 

Intervenção tardia: reflexões sobre uma intervenção possível no autismo infantil

 

Late intervention: reflections on a possible intervention in the infantile autism

 

 

Leonardo BarrosI; Leonardo DanziatoII

IGraduando em Psicologia pela UNIFOR
IIProfessor titular da graduação e do Programa de Pós-Graduação do mestrado em Psicologia da UNIFOR

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de um trabalho elaborado a partir de um estudo de caso de um jovem de 20 anos, que aos 5 anos recebe um diagnóstico de autismo grave. A comunicação com ele sempre foi algo restrito, e a escrita se tornou uma forma de D reproduzir o discurso do Outro, em várias esferas. O que se propõe é uma aposta num tratamento de autismo, pensando intervenções possíveis mesmo num autismo já estruturado, fora de um momento em que seria possível uma dita "intervenção a tempo".

Palavras-chave: Autismo, Sujeito, Psicanálise, Clínica.


ABSTRACT

It's a text elaborated from a case of a young boy twenty years old, that received a autism diagnosis when he was five. Communication was something restrict, and his writing becomes a way of reproduction for the other discourse, in differents levels. The authors believe in the possibility of the autism treatment, thinking about possibles interventions even in a structured autism, when a so-called "intervention in time" is not possible.

Keywords: Autism, Subject, Psychoanalysis, Clinic.


 

 

D.A.R, 20 anos

D encontra-se em atendimento psicológico há 14 anos, vive sozinho com a mãe, seu pai faleceu devido a um câncer de garganta (na época D tinha aproximadamente 5 anos).

Converso inicialmente com D e sua mãe procurando ouvi-los um pouco sobre os atendimentos anteriores e suas expectativas com relação à terapia. A mãe me relata que D gosta muito da terapia e que sempre que é chamado para retomar o tratamento ele quer voltar.

D participa muito pouco da conversa, reservando-se apenas a me responder quando perguntado ou quando sua mãe lhe pede para me falar alguma coisa; ele é dotado de incrível memória, conseguindo lembrar de todos os programas de televisão, personagens e inclusive narrando algumas das falas de diversos filmes.

A mãe de D me fala sobre o autismo, sobre o percurso dele numa instituição que cuida de autistas, e começo a perceber que ela explica tudo aquilo que o filho faz como sendo um tipo de "comportamento autístico".

Na primeira sessão com D, logo que entra na sala, ele senta-se numa das cadeiras, arrasta-a para perto da mesa e começa a escrever em uma das folhas que lá estavam.

D escreve rapidamente, narra episódios ou diálogos de programas de televisão e ao terminar se põe a escrever novamente em uma outra folha; ele faz isso incessantemente até o término das sessões. A interrogação é uma coisa interessante na sua escrita, uma vez que sempre aparece no fim dos textos, e que é bastante rebuscada, reforçada diversas vezes, como numa tentativa de marcar na escrita algo que não se inscreve.

Repetidas vezes procuro intervir falando a D, mas não há nenhum efeito naquele momento. Até que num dado momento, decido pegar uma das folhas e escrever, do mesmo modo que ele tem feito. Quando começo a escrever, D se levanta e vem para perto de mim, se posicionando de forma a poder ler o que escrevo ali, e à medida que escrevo ele lê em voz alta.

Pergunto a ele, através da escrita: "D, por que tantas datas?". Sua reação é de riso, então ele pega novamente uma folha e volta a escrever.

Me dou conta de que D cantarola baixinho, um cantarolar repetitivo, quase que uma música sem ritmo, e depois, ao parar, se põe a escrever novamente. Durante o processo, em vários momentos D vai recorrer a esse cantarolar, que percebo ser um ato estereotipado, repetido diversas vezes.

À medida que as sessões prosseguem, D começa a dirigir as folhas expressamente a mim, marcando meu nome nas folhas e entregando-as a mim para que eu as leia. Outra coisa interessante é que ele começa a me olhar enquanto espera por minhas respostas, e começa a sustentar ser olhado por mim.

Em uma das sessões D me dirigiu uma pergunta numa folha, que não tinha uma interrogação, e ao ver que eu não compreendia o que ele queria dizer falou: "É uma pergunta, Leonardo" (sic). Nessa ocasião eu lhe perguntei: "E cadê a interrogação?" Sua resposta foi um longo riso, acompanhado pelo já conhecido cantarolar, depois do qual não recebi nenhuma resposta.

Laznik (1997) ao se referir às estereotipias autísticas diz que elas são: "... meios de descarga, manobras de evitamento defensivo (elisão) contra a lembrança de traços mnésicos ou percepções dolorosas provenientes do mundo exterior..." (LAZNIK, 1997). Ficará claro durante vários momentos nas sessões que D usa do cantarolar como forma de evitação quando interrogado.

Faço regularmente algumas entrevistas com a mãe de D, procurando fazer cortes sutis nesse discurso tão "rígido" sobre o autismo, uma vez que ela mesma me traz, durante algumas conversas, que "autista não gosta muito de gente não" (sic).

O discurso científico sobre o autismo norteia toda a forma como esta mãe lida com o filho, mas quando perguntada sobre o que é autismo, ela ri e responde: "Ah, eu não sei o que é não, ele é que sabe, pergunte pra ele pra você ver como ele sabe" (sic).

D faz aulas de música, e é vocalista do grupo onde pratica; é comum que ele cante quando lhe pergunto que música eles ensaiaram na última aula. Em uma das sessões ele canta uma música do Fábio Júnior, e de repente para de cantar e me olha. Nesse momento, entendendo aquele olhar como uma demanda dirigida a mim, continuo a cantar a música de onde ele parou e ele me olha fixamente, antes de voltar a cantar, dessa vez junto comigo.

Aqui é interessante fazer alusão aos escritos de Didier-Weill (1998) sobre o corpo deprimido, mudo, autista. O autor afirma que o que pode criar uma escansão, devolver a vida ao corpo deprimido é a introdução do ritmo. E nesse caso, é através da música, cantando, que por muitas vezes será possível fazer intervenções junto a D nas sessões, e perceber como no canto a forma "robotizada" da fala toma ritmo, entonação.

Segundo Didier-Weill, o ritmo seria o tipo de escansão necessária quando há um encontro entre Real e Simbólico, e este encontro se evidencia em trechos da escrita de D, quando ele traz desenhos de objetos em meio a frases, como que substituindo a palavra pelo objeto.

D começa a me trazer questões relacionadas ao sexo, começa a falar de muitas mulheres famosas, com quem ele queria casar, com quem ele até mesmo teria inventado que seria casado.

Numa conversa com a mãe, ela me conta que foi instruída a não lhe permitir

o sexo. Na instituição onde ele estuda teriam lhe dito que seria muito perigoso, porque os autistas não têm limite, é importante que ela proíba porque ele pode querer atacar até mesmo ela.

Ela me diz que, preocupada com a mania do filho de levantar as saias das moças na rua, só viu como solução dizer a ele que "debaixo das saias das mulheres tem um caranguejo, e ele vai beliscar o seu dedo" (sic).

Durante as sessões com D, ele começa a falar de uma moça que conheceu na instituição, que o teria convidado para passar um dia na casa dela. A mãe de D barrou terminantemente esse convite, e então a moça se ofereceu para ir à casa deles passar um dia com D. A mãe me fala sobre isso com muito aborrecimento.

Algumas semanas depois numa conversa com D, ele me relata que a moça em questão foi colocada pra fora da instituição (segundo a mãe, isso aconteceu devido à forma "estranha" como se oferecia para sair com D) e que ela agora trabalha como fotógrafa. Então ele escreve numa das folhas: "Fui pro velório de um tio meu há 2 anos atrás, se eu soubesse que nunca mais ia ver ele tinha pedido pra G (moça em questão) ir tirar uma foto dele" (sic).

Depois, D me relata algo parecido sobre o velório do pai, e falo um pouco com ele sobre a morte do pai, quando ele pela primeira vez me diz: "Eu gostava muito do meu pai" (sic). O "eu" entra em cena, e começa a aparecer em várias falas ou escritas de D, sobretudo quando fala sobre o pai.

Temos aqui a importância da vinculação a um Outro, tal como coloca Laznik (1997), para advir a possibilidade do surgimento de um "eu". Esse lugar, assinala a autora, deve ser sustentado na transferência pela figura do analista, numa operação de suposição de um sujeito.

A mãe de D me conta que quando o pai morreu, o filho começou a se comportar muito mal, e foi então que ela procurou pela primeira vez uma psicóloga. Quando perguntada sobre o diagnóstico de autismo, ela me conta que tudo começou quando ele tinha 2 anos.

D repentinamente parou de falar, e instruída por uma amiga, a mãe o leva a uma fonoaudióloga. Depois de alguns meses de tratamento, ela é informada pela fonoaudióloga que seu filho voltou a falar, mas que ele só consegue gritar, e lhe orienta a procurar um neurologista. Na época ele teria orientado uma medicação, mas nenhum diagnóstico foi dado.

Segundo a mãe, esse fato teria ocorrido quando D tinha 2 anos, e que na ocasião o pai teria retirado as cordas vocais devido a um tumor na garganta. Ela me relata que eles dois eram muito ligados, que o pai de D o pegava nos braços e dizia: "Faça o que você quiser comigo" (sic), daí D mordia, beliscava e batia no pai, que não reagia de modo algum. Conta que com ela a coisa era diferente, não aceitava isso, e que por isso filho e pai se aproximaram tanto.

Numa outra conversa, a mãe de D relata que o pai dele tinha uma preocupação de que o filho não nascesse normal, e que quando estava no segundo mês de gravidez, o marido ele disse: "Tenho medo que nosso filho não seja normal, porque você sabe né, minha família é cheia de gente doida, aí é perigoso..." (sic).

Em uma das sessões, D me conta um sonho: diz que sonhou que sua mãe queria que ele colasse letras na colcha de sua cama para formar uma palavra, e quando ele se negava a fazer isso ela lhe batia, lhe batia com a chinela no peito. Ele me pergunta se pode alguém bater com um chinelo no peito de outra pessoa.

Parece que algo não se sustenta mais nessa relação; diante da ordem da mãe de colar algo, D se volta contra ela e sua reação é violenta. Teria essa colagem de algo a ver com a colagem que a mãe fez do autismo sobre o filho? A negação de D, no sonho, teria a ver com os avanços que ele vem fazendo, essa colagem não se sustentaria mais?

Outros sonhos começam a ser trazidos por D, e ele começa a fazer relações muito curiosas. Ele escreve em uma folha que sonhou com um ator famoso, então vai dar borboleta no jogo do bicho. E assim ele faz outras vezes, até que brinco lhe dizendo que se ele sabe informações sobre esses jogos, vai me dizer, ele precisa me dizer a tempo de eu poder jogar.

Na semana seguinte, D anota cinco números numa folha e me entrega dizendo que são os números da mega-sena. Sua mãe me conta que várias vezes ele faz essas "previsões". Uma coisa interessante é que um jogo da mega-sena é composto por 6 números e D me dá apenas cinco números.

Recentemente utilizamos uma câmera de vídeo para gravar uma das sessões, após uma conversa com D e sua mãe que não se opuseram. Posicionei a câmera sobre uma mesa na sala de atendimento e a liguei no início da sessão.

D no início parece não se importar em nada com a filmagem, mas durante vários momentos na sessão ele interrompe sua fala ou a minha e começa a cantar olhando para a câmera. Ele vai fazer isso várias vezes durante a sessão, e no final, quando desligo a câmera, D me pergunta: "Leonardo, onde vai ser exibida a minha entrevista?" (sic).

Explico a ele que esse vídeo não será exibido para mais ninguém, apenas eu e meu orientador iremos assisti-lo, e lhe digo que posso trazer o vídeo para assistirmos num outro momento. D concorda e naquele momento a sessão é encerrada.

Considerando interessante o significante "entrevista" ter aparecido na ocasião da filmagem junto à forma como ele se exibiu várias vezes para a câmera, levoa novamente na sessão seguinte e digo a ele que se quiser posso entrevistá-lo.

D diz que gosta da ideia e aceita ser entrevistado. Então me ponho a perguntar-lhe sobre sua vida, sua história, enquanto o filmo, dessa vez com a câmera em mãos. Agora D não se exibe para a câmera, parece perder um pouco sua atitude falante de antes e apenas me responde as perguntas feitas.

Encerrada a entrevista, desligo a câmera e proponho que pela primeira vez possamos conversar sem o artifício das folhas. D aceita a proposta e nós conversamos um pouco antes do fim da sessão.

Na sessão seguinte, D vai em direção à mesa, como de costume, procurando folhas e lápis, mas não havia material algum sobre a mesa. Digo-lhe que gostaria de propor que nós não mais utilizássemos as folhas. D aceita a proposta, e daí em diante começamos nossas sessões de conversa.

A partir da aquisição do "eu", da possibilidade do estabelecimento de uma relação especular e recentemente da sustentação de uma conversa comigo sem o uso de outros recursos que não a fala, as sessões vêm desenrolando com efeitos muito interessantes.

Vemos com D como o trabalho com autistas é importante, mesmo que não se trate de uma criança, que não seja uma chamada "intervenção a tempo". O trabalho terapêutico realizado com ele mostra resultados interessantes, e seu interesse pela música abriu espaço para a realização de intervenções outras de convocação. A suposição de um sujeito e a aposta no tratamento atravessam o processo e permitiram o deslizamento de D de uma posição de fechamento autístico para sua condição atual.

 

Bibliografia

DIDIER-WEILL, A. Lacan e a clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958). In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.         [ Links ]

LACAN, J. Variantes do tratamento padrão (1955). In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.         [ Links ]

LAZNIK-PENOT, M-C. Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. Trad. Mônica Seincman. São Paulo: Escuta, 1997.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua do Jangadeiro, 104 - Monbudim
60761-780 - FORTALEZA/CE
Tel.: + 55 (85)3473-4708
E-mail: leoyakushi@hotmail.com

RECEBIDO EM: 21/07/2010
APROVADO EM: 30/07/2010

 

 

Sobre os Autores

Leonardo Barros
Graduando em Psicologia pela UNIFOR.

Leonardo Danziato
Psicanalista. Doutor em Sociologia pela UFC. Professor titular da graduação e do Programa de Pós-Graduação do mestrado em Psicologia da UNIFOR.

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