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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte Sept. 2010

 

As marcas corporais - o corpo como depositário das fantasias inconscientes

 

The body marks - the body as a repository of unconscious fantasies

 

 

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto trabalha as várias tentativas de significação pelo sujeito daquilo que escapou ao registro simbólico, do que não encontrou representação na linguagem e se atualiza mediante danos físicos, às vezes irreversíveis. O corpo, como depositário de fantasias inconscientes, torna-se a contingência para a impressão de marcas sobre ele, que o transformam e o levam ao limite da dor. O indivíduo tenta pela modificação traumática deliberada da imagem corporal, através de práticas agressivas ao corpo, estabelecer-se como sujeito, já perdido de si mesmo em sua submissão ao desejo do Outro.

Palavras-chave: Corpo, Fantasias inconscientes, Gozo, Objeto a, Marcas corporais.


ABSTRACT

This text examines the various attempts of meaning by the subject of what escaped the symbolic record of what has not found representation in language and updates itself by physical damage, sometimes irreversible. The body, as depositary of unconscious fantasies, becomes a contingency for printing marks on it, that transform and take the limit of pain. The individual tries to traumatic deliberate modification of body image through aggressive practices to the body, set up as a subject already lost himself in his submission to the Other's desire.

Keywords: Body, Unconscious fantasies, Gozo, Object to, Bodily marks.


 

 

O que pode um corpo?, é a colocação de Spinoza. Não temos conhecimento do que pode um corpo porque desconhecemos sua potência de ação, assim como desconhecemos a potência de pensar da alma, do espírito. Potência é a essência de cada ser, que o torna único, estabelecendo a identidade de cada um.

Benedictus de Spinoza, filósofo holandês do séc. XVII, introduziu a tese do "Paralelismo Psicofísico", que ia contra o dualismo corpo e alma de então, afirmando que essas duas entidades constituíam o ser. O que é padecimento para o corpo o é também para a alma, colocando um fim à dualidade em que a alma era enaltecida e o corpo desvalorizado. Para ele a alma é o espírito, o pensamento do corpo, e acreditava que o modo como pensamos expressava o modo como vivemos. Pensamento e ação estariam juntos.

Colocando o corpo como depositário das fantasias inconscientes, até onde o corpo aguenta? O que suporta um corpo, tanto naquilo que ele suporta no sentido do sofrimento, como no seu funcionamento como esteio da linguagem?

Desde o início da teoria freudiana, a vivência do corpo inclui o Outro através da intervenção, por uma ação específica, do adulto experiente que atende à criança no seu desamparo, quando esta é invadida pelas necessidades da vida, resultando numa experiência de satisfação ou na sua falta, numa experiência de dor. Mais tarde, temos Lacan reafirmando a presença desse Outro no circuito pulsional da criança, enfatizando sua participação na marcação do corpo pela linguagem advinda desse "lugar", onde o "ser falante" é um corpo vivo atravessado por ela. Ressalta a importância dos objetos a, instaurados por esta marcação no movimento libidinal, acentuando a aproximação entre corpo e linguagem.

No Seminário 20, Mais, Ainda, Lacan, a partir de Spinoza, discorre sobre o corpo, o ser e a alma.

Sobre o Corpo nos diz: "O corpo, ele deveria deslumbrá-los mais"1. Ele é a contingência por onde se inscreve o desejo. A contingência é a condição para o desejo. A contingência é a possibilidade de acontecer, é a eventualidade, é a condição para o desejo... e, para o gozo. É de uma experiência no corpo que se determinam as modalidades de gozo.

O gozo absoluto atribuído ao pai originário não castrado, o gozo fálico do homem submetido à ameaça de castração, o gozo suplementar feminino, sem limite, o gozo puro como uma ressurgência do real na experiência alucinatória. Seu conceito se liga ao de transgressão da lei pelo desafio, pela submissão ou pelo escárnio. Neste trabalho, a submissão ao desejo do Outro parece ser a tônica da exposição do corpo a marcas dolorosas e definitivas que o modificam.

Roudinesco e Plon corroboram o dito acima com as seguintes palavras: "O gozo se sustenta pela obediência do sujeito a uma ordem - quaisquer que sejam sua forma e seu conteúdo - que o conduz, abandonando o que acontece com seu desejo, a se destruir na submissão ao Outro"2.

No início, tínhamos um corpo orgânico, depois, pulsional e erógeno, e hoje reconhecemos um corpo de gozo, este advindo como consequência do significante fornecido pelo Outro e que o sujeito, já marcado pela linguagem, passa a ter a responsabilidade de nomeá-lo.

Sobre o Ser Lacan e diz: "Que haja algo que funda o ser, certamente que é o corpo" (...) "... a alma não é outra coisa senão a identidade suposta a esse corpo, com tudo o que se pensa a propósito do corpo, para explicá-lo"3.

E pensamos o corpo numa identidade de pensamento - ele pensa igual: "Quando se supõe que ele pensa secreto, ele tem secreções; quando se supõe que ele pensa concreto, ele tem concreções; quando se supõe que ele pensa informação, ele tem hormônios"4.

Tudo isto para dizer que a estrutura do pensamento repousa na linguagem e ela, com tudo o que comporta de precariedade, institui o inconsciente, à nossa revelia, contrariando a suposta identidade corpo e alma.

"Tudo é exibição de corpo evocando o gozo"5. E é pela análise "que eu falo sem saber. Falo com o meu corpo, digo, portanto, sempre mais do que sei"6. É nesse momento que o Eu se apresenta e pode ser diferente do meu ser.

"Meu corpo é a minha verdade" - dito de uma analisanda ao questionar o uso que vinha fazendo do próprio corpo na busca de uma completude imaginária.

Tomemos Leonardo da Vinci com o Homem Vitruviano em que a proporção áurea aplicada às dimensões do corpo representa a perfeição da beleza. Os princípios das regras dos terços e das proporções divinas atenderiam pelo registro do imaginário à forma ideal do corpo, mas chocam-se com a imposição do registro do real, restando, quando pode, o registro simbólico como uma tentativa de ordenar pela linguagem o que se encontra desagregado no sujeito.

No texto A imagem do corpo em Lacan, a autora, Mara V. de C. Sternick, fala sobre esta operação organizadora da linguagem sobre o corpo: "Há, então, o efeito do significante sobre o organismo, quando ele ganha as insígnias da pulsão, pois, desse modo, o corpo passa a ser corpsificado. Nesse sentido, podemos dizer que só quem tem um corpo goza dele, mas para isso é preciso apropriar-se dele através da linguagem. Por isso, para gozar, é preciso ter um corpo"7.

O que depositamos no corpo quando a linguagem fracassa? Na busca angustiada pelos objetos a perdidos, como transformamos nosso corpo? De que fantasias inconscientes ele participa quando a palavra falha? O objeto a, entre suas várias conceituações e significações, podemos tomá-lo também como um resto não simbolizável. Como disse Lacan em seus Seminários, ele se evidencia nos objetos fragmentados, desligados do corpo, os objetos cedíveis: o seio, objeto da sucção, as fezes, objeto da excreção, a voz e o olhar. Separando-se do corpo ascendem ao estatuto de objetos de desejo que nunca se encontram onde são buscados, e sempre remetem à causa do desejo.

A mostração do corpo: o que viu Freud, o que pontuou Lacan e o que constatamos na clínica? Cada um tratará o seu corpo de acordo com sua estrutura: do psicótico ao neurótico com todas as suas modalidades. A experiência subjetiva do corpo, convulsionado pelas urgências vitais e pela pulsão, se diferencia da imagem exterior. A imagem de si mesmo porta uma instabilidade vinda desse momento constitutivo do eu, na transição entre o eu e o Outro.

A instalação do traço unário, signo de aprovação pelo Outro da fase do espelho, promove a restauração narcísica, marcando o sujeito pela semelhança, que o diferencia, estabilizando sua imagem. Uma falha nesse processo pode levar uma pessoa a fazer significativas modificações voluntárias no corpo, às vezes irreversíveis. Também importantes e expressivas são as marcas acidentais no corpo causadas por traumatismos, doenças, mal-formações, etc. que, certamente, merecem uma atenção psicanalítica, mas este texto pretende enfatizar a intervenção voluntária de ações que provocam dor, cortes, marcas físicas, mudando a imagem corporal. Essas intervenções sobre o real do corpo parecem ser uma tentativa do sujeito de se apropriar de seu próprio corpo, de torná-lo seu. Ao promover uma marca na carne, quem sabe ela se torna uma inscrição simbólica daquilo que sobrou, de um mal-entendido na experiência com o Outro, que resta fora do registro simbólico.

1886, na Salpêtrière, este corpo, o do desejo recalcado - proibido, desconectado do corpo anatômico, mostrado pelas histéricas -, instigou e deslumbrou Freud.

Historicamente, o corpo tem servido a vários senhores. Comecemos pelo Amor, em suas várias formas, desde as tentativas de fazer Um, esbarrando no desejo impossibilitado próprio do amor, justificado pela diferença dos sexos, de cuja falha no Outro o amor é demandado. E vamos aos demais senhores:

Sadismo, Masoquismo - Sadomasoquismo: é uma apresentação da vida pulsional baseada na simetria e na reciprocidade entre um sofrimento passivamente vivido e um sofrimento ativamente infligido. Um espelho invertido? O Outro ou o próprio Eu é tomado como objeto onde o gozo é vivido no corpo sem limites, escapando a qualquer simbolização.

Outras práticas, do excesso, infligidas ao corpo:

A autoflagelação: que se oferece como provação para dignificar e elevar o homem.

O sacrifício, as greves de fome: sugerem uma anulação do sujeito na crença na salvação da humanidade ou na remissão dos pecados, ou ainda uma derradeira tentativa de existir, através do sofrimento.

A superação em equipamentos de tortura: mostra a independência espiritual em relação ao corpo matéria, este, em nada sublime.

O corpo como entretenimento para o deleite dos olhares do público, como a luta livre, o vale-tudo, e o corpo oferecido como profissão, na prostituição.

A suspensão pelos ganchos de aço: negação dos seus limites?

E o corpo exigido à exaustão, nas mais extravagantes modalidades, onde a dor é suportada pelo desejo de vitória, como seu alvo.

As tatuagens: onde o corpo recebe uma nova pele, desta vez escolhida pelo seu dono, que porta uma certa inscrição, particular. Mesmo que diga respeito ao desejo de igualdade com o grupo, não deixa de entrever a significância do traço sobre a pele.

Os piercings: "se os furos do corpo têm função erógena privilegiada, a perfuração, ao multiplicá-los, desloca e metaforiza o ritual do prazer"8, como escreve Paola Mieli no livro As manipulações irreversíveis do corpo e outros textos psicanalíticos. Além disso, produzem uma modificação da forma do corpo pela introdução de metais, em seus mais variados formatos e dimensões.

Ainda encontramos, à custa de extremo sofrimento, privações e excesso, corpos esculpidos ou mortificados numa tentativa de tamponar a falta insuportável da condição de "ser humano", nas obesidades mórbidas e nas anorexias.

Essas inscrições corporais trazem a presença insistente da dor, onde o marco do corte ou da modificação mórbida se torna sede de gozo. E como nos disse Lacan, "o gozo é aquilo que não serve para nada"9.

Os pontos de gozo infligidos ao corpo são buscas incessantes de uma inscrição que possa ser recoberta por um significante que, ao bordejar o real, promove a reconstrução do sujeito.

As perdas marcam o corpo. "A primeira representação de um dano narcísico, na criança, é por perda corporal"10. E no Seminário 10, de Lacan, A angústia, encontramos uma afirmação que corrobora o dito freudiano: "...o objeto cujo luto vivenciamos era, sem que soubéssemos, aquele que se fizera ou de quem nós fizéramos o suporte da nossa castração"11.

A dor, física ou psíquica, "é o mais imperativo dos processos psíquicos"12, e uma pessoa, enquanto sofre, deixa de amar, não há investimento psíquico possível em objetos do mundo externo. Somente o seu objeto a perdido lhe interessa - surge o desalento.

Mas, apesar das perdas, ou melhor, por causa delas, é possível construir a imagem de um corpo enaltecido. A sublimação das pulsões pode conduzir à arte, ao trabalho, ao amor. O estatuto do corpo toma-o pelo registro do real como esta "libra de carne", inerte; pelo registro do imaginário, o tem como o lugar de inscrição, pulsional e erógeno, e pelo registro do simbólico assegura o lugar do código e da mensagem, da comunicação e da evocação, bordejando como pode a falta fundadora, aquela que nos torna humanos.

Num reconhecimento aos escritos freudianos, encontramos no texto lacaniano a seguinte citação: "Eu não procuro, acho, isto quer dizer que, no campo de Freud, basta a gente se abaixar para colher o que há para achar"13.

Pelo trabalho psicanalítico, através da escuta qualificada, pontuação e interpretação, é possível promover no analisando uma subjetivação, uma consequente retificação subjetiva, levando a uma mudança de posição do sujeito do inconsciente frente à castração pela construção de novos significantes.

Ao final de uma análise, o sujeito pode se conciliar com seu desejo quando concebe a ideia de poder conviver com a falta.

 

Bibliografia

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STERNICK, Mara Viana de Castro. A imagem do corpo em Lacan. Revista Reverso. Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Belo Horizonte, n.59, 2010.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Tomé de Souza, 860/806 - Savassi
30140-909 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: + 55 (31)3261-1572
E-mail: mazzarellocotta@yahoo.com.br

RECEBIDO EM: 25/07/2010
APROVADO EM: 29/07/2010

 

 

Sobre o Autor

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Psicóloga. Psicanalista. Ex-Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Ex-Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

 

 

1. LACAN, J. (1972/73) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.149.
2. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.300.
3. LACAN, S. O seminário, livro 20: mais, ainda, p.150.
4. Idem, p. 150.
5. Idem, p.154.
6. Idem, p.161.
7. STERNICK, M. V. de C. A imagem do corpo em Lacan. Revista Reverso. Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Belo Horizonte, n.59, p.35, 2010.
8. MIELI, P. Sobre as manipulações irreversíveis do corpo e outros textos psicanalíticos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. p.27.
9. LACAN, J. (1972/73) O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.11.
10. FREUD, S. (1923) A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. In: ESB, v.XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976, n.3, p.182.
11. LACAN, J. (1962/63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.125.
12. FREUD, S. (1895) Projeto para uma psicologia científica. In: ESB, v.I. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.409.
13. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.205.

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