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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte set. 2010

 

D3@dúvidas.3 - um caso de fobia numa neurose obsessiva

 

D3@dúvidas.3 - a phobia in a case of obsessive neurosis

 

 

Messias Eustáquio Chaves

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este é um atendimento clínico, acontecido durante o ano de 1998, interrompido com seis meses de percurso, que o autor publica acreditando ser uma experiência clínica rica em seu conteúdo e que prova quanto aprendemos com os nossos pacientes. Trata-se de um caso de fobia, que estou nomeando como medo de errar (fobia de cometer erros e ser castigado), presente numa estrutura obsessiva, com manifestações de defesa repetidamente compulsivas. O desejo do analista não foi suficiente para conduzir o tratamento até o seu final.

Palavras-chave: Demanda, Clínica psicanalítica, Desejo do analista, Angústia, Fobia, Diagnóstico, Sintoma, Fantasia, Transferência, Sexualidade, Trauma, Recalque, Retorno do recalcado, Inconsciente, Repetição, Compulsão, Gozo, Neurose obsessiva.


ABSTRACT

This is a clinic consultation dued in 1998 wicht lasts only six months. The author believes that is a rich clinic experience that proves how much we can learn with ours patients. This case is about a phobia, named by myself as a mistake's fear (phobia to do something wrong and to be punished), that appears in a obsessive structure with a defense repeatedly compulsive. The analyst desire wasn't enough to lead the treatment until its end.

Keywords: Demand, Psychoanalytical practice, Analyst's desire, Anxiety, Phobia, Diagnosis, Symptom, Unconscious fantasy, Transference, Sexuality, Trauma, Repression, Return of repression, Unconscious, Repetition, Compulsion, Excess enjoyment, Obsessive neurosis.


 

 

Introdução

Este caso clínico foi apresentado, pela primeira vez, na XVIII Jornada do CPMG, em 1999, com o nome de "Cavaleiro da Indecisão", procurando metaforizar, com este traço significante, a sua compulsão a duvidar. Oito anos mais tarde, eu lhe dei um novo nome, chamando-o de "Dúvidas.3" ou D3, para ressaltar a importância clínica de três fantasias que, graças ao trabalho analítico, este analisando veio a se lembrar e a dizer em diferentes sessões de análise. Para esta publicação, resolvi inventar o título D3@dúvidas.3, como pode ser visto acima.

 

Início do tratamento

Após o pedido de consulta, tendo sido recomendado ao tratamento analítico pelo médico de sua esposa, ele chega bem vestido, mostrando-se cordial, educado, polido, calmo, um homem de boa aparência. Respeitoso com o analista, chamando-o de doutor, de senhor, inicia a sua narrativa dizendo que anda "muito impaciente, ansioso, insatisfeito, inseguro, que acha muito difícil tomar uma decisão, porque fica cheio de dúvidas com as coisas que faz, não tem sossego, sentindo muito medo de errar, de ser repreendido, de perder o emprego e, principalmente, de cometer uma injustiça com um funcionário". Ele tem um cargo administrativo na empresa onde trabalha e diz que fica com muito medo de um funcionário cometer erros e a direção responsabilizá-lo pelo ocorrido. "Sou o chefe, então sou responsável pelos erros do meu pessoal. Sempre estou em dúvida e inseguro, quando tenho de tomar uma decisão. Às vezes penso que eu me transformei num homem seco, confuso, insatisfeito e dou muita importância a coisas que não têm um sentido".

Sua atividade principal é coordenar todo o serviço de compras e vendas, sendo responsável pela conferência de todas as notas de entrada e saída. Há os funcionários que executam a tarefa de conferir as notas, e mesmo acreditando neles, julgando-os competentes, não consegue sentir-se seguro no final do dia, quando todas as notas já foram conferidas. "Ah, doutor, sinto-me corroído por uma dúvida atroz: será que está tudo certo ou houve algum erro? Fico ansioso, aflito, suando e com dores no coração. Então, depois que os funcionários foram embora, eu confiro tudo novamente. Não consigo sair da empresa sem conferir tudo de novo, e, pior, doutor, fico até envergonhado, mas não sei por quê, eu confiro todas as notas três vezes seguidas. Confiro a primeira vez, parece que está tudo certo, mas eu fico na dúvida. Então, confiro mais uma vez, e depois mais uma vez. Depois das três vezes, eu acalmo, e consigo ir embora para minha casa. Que é isso, doutor? Que doença é essa? Tem cura? O senhor já tratou de outras pessoas com estes mesmos problemas? Elas sararam, ficaram curadas, doutor? Minha mulher disse que o senhor é psicanalista. O que é psicanálise, doutor? Como funciona? Dura muito tempo? Desculpe se eu estou te enchendo o saco, doutor, mas esse meu problema é um saco!... Ô doutor, desculpe o meu palavrão, mas saiu sem querer".

Ao longo de várias sessões de análise, este jovem de 33 anos de idade, com a aparência de homem adulto, mas se revelando emocionalmente um adolescente, um tanto quanto inibido, repetia as mesmas queixas e depois me crivava de perguntas. Pode-se perguntar: ele queria construir um saber sobre os seus sintomas e o funcionamento do seu inconsciente? Acredito que ainda não, pelo menos neste início do tratamento, que prefiro não nomear como análise, pois não considero que ele tenha entrado em análise, no sentido forte do termo. O que ele me pedia o tempo todo - explícita e implicitamente -, eram respostas "médicas", na forma de receitas prontas, diria mesmo ortopédicas, que eliminassem os seus sofrimentos "num golpe de mágica". Ele me pedia remédio, um remédio milagroso. O meu desejo era que ele entrasse em análise, que fizesse análise. Eu queria saber sobre o seu inconsciente, sobre a sua estória, seus desejos, suas fantasias, entender a formação dos seus sintomas e as estratégias de gozo que o mantinham naquela compulsão à repetição.

Algumas expressões que ele usava, tais como: "Como gerente, eu tenho que olhar tudo e ser responsável por tudo", "Tenho muito medo de cometer uma injustiça", "Qualquer preocupação me atrapalha muito na hora do sexo", "Na hora de tomar uma decisão, eu fico sempre em dúvida e inseguro", "Quero me relacionar bem com todos, mas detesto funcionário que traz muito problema". Em torno de seis meses de percurso do tratamento, eu escuto o seguinte: "Ah, doutor, acho que vou parar, o senhor não responde se eu devo ou não comprar aquele apartamento e estou ficando mais aflito, estou piorando, aumentando a minha dúvida".

Sim, lidar com a sua angústia e manejar a transferência não foram tarefas fáceis. Tive enorme trabalho, quanto à condução do tratamento, quanto aos atos analíticos que pudessem levá-lo ao exercício da associação livre, ao fortalecimento da transferência, à lembrança de sonhos e de experiências emocionais passadas, e também lidar com a angústia - sem deixar que ela ficasse reduzida a grau zero, mas também que não chegasse ao impossível de suportar -, e assim a sua análise pudesse funcionar, produzindo efeito de "cura". E foi mais ou menos isso o que aconteceu com este atendimento. Penso que, até a sua interrupção, eu estava conseguindo conduzir o tratamento de uma maneira eficiente (fazendo o que um analista, na época com 20 anos de experiência clínica, supunha ter que fazer), mas que acabou não sendo eficaz (no sentido de abertura do seu inconsciente, entrada em análise, e efeitos de "cura").

O que de melhor eu consegui em seis meses de percurso - fazendo um trabalho que poderia chamar de "entrevistas preliminares", "preparação para a análise propriamente dita", "terapia" - foi que ele me desse três fantasias (três formações fantasmáticas fundamentais, relacionadas à cena primária?), que me pareceram muito importantes e esclarecedoras quanto à formação de seus sintomas. Vou escrever estas três fantasias, procurando ser fiel à maneira como o analisando as apresentou em suas sessões de análise.

Primeiro ele me disse o seguinte: "Preciso lhe contar uma sensação que tenho de vez em quando, doutor. Às vezes, eu estou dirigindo o meu carro ("popular", "pequeno") no anel rodoviário ou numa estrada, e sinto, pela força do meu pensamento, que uma carreta ou um ônibus, vindo na pista contrária, vai atrair o meu carro e vai provocar uma colisão dos dois, uma trombada feia, com capotamento do carro e incêndio. É como se o caminhão tivesse um grande imã, que puxasse (atraísse) o meu carro e não tivesse jeito de escapar. Fico ansioso, aflito, os batimentos cardíacos aumentam. Logo depois, eu raciocino que isso não passa de um pensamento. Seguro firme no volante, olho bem para a frente e procuro esquecer o que tinha acabado de pensar. O que é isso, doutor? O senhor pode me explicar?"

Segunda fantasia, falada numa outra sessão: "Quando vou deitar para dormir, eu confiro todas as portas, fecho tudo, deito e procuro dormir. Não consigo, porque fico cheio de dúvidas, se fechei ou não. Então, eu levanto e confiro tudo novamente, me tranquilizando, porque estava tudo fechado. Só que depois, doutor, eu não resisto e confiro tudo uma terceira vez. Só depois disso é que eu consigo dormir".

Uma terceira fantasia, narrada pelo analisando numa de suas sessões, mais para frente, é a seguinte: "Doutor, acontece muitas vezes uma coisa esquisita, que tenho vergonha de contar, mas vamos lá. Ao chegar à firma, onde trabalho, e deixar o carro no estacionamento, eu subo até ao terceiro andar. Lá da minha sala eu olho pra baixo, vejo o meu carro estacionado e aí uma dúvida fica me atormentando. Deixei ou não deixei o som ligado? Então, eu desço, verifico tudo e o som está desligado. Subo pra minha sala, começo a trabalhar, mas logo a mesma dúvida volta a me atormentar. Poxa, desliguei o som ou não desliguei? Só depois de descer e verificar tudo numa terceira vez é que eu me acalmo e não tenho mais esta dúvida. Que é isso, doutor?"

 

Algumas considerações teóricas

O paradoxo da prática clínica, do fazer do analista em cada sessão de análise, pode ser colocado da seguinte maneira: ao mesmo tempo que o analista deve escutar com uma atenção livremente flutuante (Freud), ele deve se concentrar na escuta dos significantes presentes na fala do analisante (Lacan). O analista deve, também, saber lidar com a transferência e com a angústia, tanto do lado do analisante quanto do seu lado de analista. Ao analisante cabe bem-dizer o seu sofrimento, os seus sintomas e as suas fantasias, através das associações livres. Ao analista cabe bem-escutar tudo o que o analisante diz e saber operacionalizar a direção do tratamento, movido pelo seu desejo de analista. O ponto de partida é que o analista deve se colocar no lugar de objeto a, causando o desejo no analisando, e saber deixar a sua subjetividade em suspenso, para produzir efeito de análise através do ato analítico - colocação de questões, interjeições, escansões, pontuações, cortes das sessões, que são alguns dos dispositivos operacionais da análise.

O ato analítico é produzido, geralmente, como um elemento surpresa, no aqui e agora da lógica da análise. Os seus efeitos podem ser percebidos, muitas vezes, no transcorrer da própria sessão, mas só serão compreendidos a posteriori (nachträglichkeit), no movimento retroativo e no tempo lógico das elaborações simbólicas do analista e do analisante. O que os significantes produzidos por este analisante nos permite pensar? A hipótese mais provável é que estamos diante de uma estrutura psíquica obsessiva, com defesas tipicamente obsessivas: rituais, controle no nível do pensamento, dúvidas, autopunição, ambivalência, excessivo medo da responsabilidade, excesso de cuidado e asseio, a angústia se manifestando no nível da fantasia e do pensamento, apresentando significantes típicos da fantasia da cena primária, no cenário da vivência edipiana.

A interrupção da análise (do percurso, do atendimento) se deu da seguinte maneira: havia surgido boa oportunidade de ele comprar um apartamento. Contudo, sentiu-se dominado por uma forte dúvida sobre comprá-lo ou não. Tentou transferir esta dúvida para o analista e insistia, sessão após sessão, para que ele lhe respondesse, prontamente: "você deve comprá-lo", ou, "você não deve comprálo". O analista trabalhou movido pelo desejo de não responder à demanda e, por outro lado, estimular a fala relacionada às dúvidas, à insegurança, à angústia, à repetição. Não obteve suficiente adesão do analisante e, consequentemente, não houve a possibilidade de drenar um pouco a sua angústia. Acabou virando uma espécie de negociação; "você me responde e eu continuo" ou "você não responde e eu paro a análise". Resultado? Ele interrompeu!

Não tive mais notícias dele. Cada vez que revejo e reflito sobre este material clínico, eu penso em quanto é rica e, ao mesmo tempo, tão difícil a nossa prática, a chamada condução do tratamento, essa arte de acompanhar o analisante em seu percurso e produzir efeitos de cura. A construção do saber acontece aos poucos e as "fichas" só caem depois (a posteriori). Mesmo assim, esse saber é sempre parcial, no registro da incompletude. As relações do desejo com o tempo, com a angústia, com as defesas (resistências), com a vontade de gozo (dos sintomas) e a transferência são cruciais. Algo sempre escapa no manejo deste jogo de forças.

 

Considerações finais

O analista quis muito que o analisante seguisse em frente, que ele entrasse definitivamente em análise e que, na transferência e no campo do bem-dizer de suas fantasias e de seus sintomas, pudesse ir até às últimas consequências da construção de um saber sobre o seu inconsciente. Mas, o seu desejo de analista não foi suficiente para consegui-lo. Desta operação significante ficou um resto, um resto de falta, de experiência de perda, objeto perdido, causando o desejo de elaboração, de compreensão teórico-clínica, e, identificado com Freud, de fazer avançar o ofício do analista e o campo da psicanálise - certamente, uma das razões da elaboração e comunicação desta experiência clínica.

 

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Endereço para correspondência:
Rua Domingos Vieira, 348/803 - Santa Efigênia
30150-240 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: + 55 (31)3241-6837
E-mail: mesquio@uai.com.br

RECEBIDO EM: 09/07/2010
APROVADO EM: 25/07/2010

 

 

Sobre o Autor

Messias Eustáquio Chaves
Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

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