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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte Sept. 2010

 

As crianças do Haiti

 

Children from hait

 

 

Nazir Hamad

Doutor em Psicologia Clínica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto aborda a situação das crianças do Haiti, desde sempre vítimas da exploração e usadas como objeto no mercado da mendicância, da prostituição e da adoção indiscriminada, situação agravada ao extremo pela catástrofe da natureza, de ocorrência recente naquele país. Considerase a negligência das autoridades, a legitimidade às vezes discutível dos processos de adoção e estende-se o foco sobre o movimento de imigração em massa para os países mais ricos, sobretudo na França, onde o autor questiona as razões da resistência a esse fenômeno inevitável que julga necessário à manutenção do desenvolvimento do país.

Palavras-chave: Miséria, Orfandade, Negligência, Exploração infantil, Adoção, Imigração, Cidadania.


ABSTRACT

This text approaches the situation of children from haiti, constantly victms of exploittion, used as objects in the world of mendicancy, prostitution and indiscriminated adoption. Such situation has been extremely worsened by the natural catastrophe which has recently ocurred in this country. The article remarks the negligency of the authorities, and the questionable legitimacy of the processes of child adoption. The movement of immigration to richer countries, especially to france, is questioned by the author, who focuses the reasons of the resistance to this inevitable phenomenon,which he thinks is necessary to maintain the development of those richer countries.

Keywords: Misery, Orphanage, Negligency, Infatile exploitation, Immigration, Citizenship.


 

 

Mais uma vez, a mídia nos revela uma história de sequestro de crianças. Desta vez, isso ocorre no Haiti, depois do terrível terremoto que resultou em inúmeros mortos e órfãos. Como antes, na Somália, associações religiosas e laicas acorrem em socorro das crianças atingidas pela guerra e pelas catástrofes naturais. Alemães, americanos, franceses, haitianos e tantos outros lá estão para socorrer, cada qual à sua maneira, as crianças órfãs. Pais adotivos, intermediários, ou ainda "traficantes de carne fresca" se estabelecem, às vezes, em plena ilegalidade, num país habituado à corrupção e às más condições de vida. O acontecimento de 12 de janeiro nos demonstra que os traficantes de crianças têm o costume de agir em meio a uma população miserável, incapaz de atender às suas necessidades e às de seus filhos. Assim, sabe-se que uma criança vale 5 dólares no mercado da mendicância ou da prostituição e chega a atingir o valor de 25 mil dólares no mercado da adoção.

Quanto vale um homem, quanto vale uma vida quando o indivíduo renuncia a tudo aquilo que constitui sua dignidade somente para sobreviver? Cinco dólares? Sim, não mais que isso. Não é a pobreza que retira do homem o seu valor, é principalmente aquilo em que está envolvido que estabelece o quanto ele vale. Se o valor de uma criança varia entre 5 e 25.000 dólares, até mais, é porque há várias maneiras de cotá-lo. Sob esse aspecto a criança é múltipla. Ela é a riqueza da nação quando essa mesma nação conta com ela como promessa e é a infelicidade de muitos países cujo povo não participa jamais das ações de seus governantes. Existem até países que autorizam sua polícia a perseguir e eliminar seus jovens exatamente como se exterminam as espécies nocivas. Sabe-se que esses jovens são violentos, até assassinos, mas sabe-se também que eles viveram nas ruas, abandonados por seus pais e pelas autoridades de seu país.

As crianças haitianas não aguardaram pelo terremoto para conhecer a miséria. Esta é seu cotidiano como é o cotidiano de muitos adultos à sua volta. Que homens e mulheres venham em seu socorro é algo que se inscreve no laço de solidariedade que liga os homens além de toda noção de fronteira. Um acontecimento dramático como esse que os haitianos acabam de viver desperta disposições humanitárias sinceras em todo mundo. Mas, pode-se impedir aqueles monstros de se interessar pela "carne fresca"? Não. Pessoas decididas como aquelas geralmente atingem seus objetivos. A corrupção sempre participou da realidade do Haiti. Nada protegia o homem e, menos ainda, a criança. O número de crianças órfãs antes do terremoto é calculado em centenas de milhares e, por falta de proteção eficaz, eram presa fácil de traficantes que agiam com toda impunidade, com a cumplicidade das autoridades haitianas bem como dos países vizinhos.

Quanto vale uma criança haitiana, ou uma criança das favelas que proliferam em muitas cidades brasileiras? Mais ainda, quanto vale um adulto originário de um país pobre que não consegue suprir suas necessidades vitais? Vale o risco que corre quando busca refazer sua vida sob um céu mais clemente. Apesar de que muitos morram na travessia de desertos africanos ou nos estreitos que separam a África da Europa, isso não faz desistir tantos outros numerosos imigrantes da tentativa de forçar o destino. Ao contrário desses, as crianças não têm meios de assumir tal risco. Submetem-se passivamente à fome, à doença e morrem às centenas de milhares em todo mundo. Eis a dura realidade. Muitas vezes, o destino de uma criança cruza com o de alguém vindo à sua procura, porque tem reservado para ela um lugar em seu lar e em seu coração. É o que se chama, habitualmente, um bom encontro. Em contrapartida, os maus encontros são frequentes para uma criança, quando ela se acha entregue a si mesma e não conta com nenhuma proteção.

Que dizer então das crianças do Haiti e dessa mobilização mundial em torno delas? Há aqueles que desejam adotá-las e fazem tudo para consegui-lo. É uma boa coisa? Tudo depende de como isso se faz. Essas crianças sofreram um trauma grave como, aliás, o resto da população. J.M.Caroit nos diz em seu artigo que havia 380.000 órfãos e crianças abandonadas no Haiti antes do terremoto e que, atualmente, esse número chegou a 20.000 crianças. Essa cifra terrível ilustra a extensão da catástrofe. Esta calamidade arrisca ser ainda mais dramática porque as coisas são complicadas no país que fez da corrupção uma religião. Mas, para isso, deve-se deixar seguirem as crianças sem fiscalizar sua partida?

Não é a mesma coisa para as crianças que já fizeram contatos com seus futuros pais adotivos do que para as outras. Mas pouco importa o caso, os órfãos têm um trabalho de luto a ser feito. Perderam seus pais, talvez também seus irmãos e irmãs. Para eles, esta é uma razão a mais para dizer adeus ao universo de sua primeira infância. O país e outras organizações poderiam organizar funerais apenas simbólicos para que as crianças que partem e o resto da população tocado por esse drama pudessem enterrar seus mortos, ou, pelo menos, gravá-los na placa de um monumento coletivo. Deve-se a eles esse trabalho. Essa ação coletiva permite aos sobreviventes cumprir seu dever em relação aos mortos e, sobretudo, desculpabilizá-los por haver abandonado seus pais e outros familiares sob os escombros.

Por que nos revoltamos ao ver partirem crianças para adoção, talvez ilegalmente, enquanto aqueles mesmos que encarnam a boa consciência deixam de reagir diante do destino deplorável de muitas dessas crianças? Já eram vendidas às redes de prostituição, vendem-se mais ainda depois do terremoto e sempre se venderá daqui para frente. Trata-se de uma simples hipocrisia? Não creio nisso. Sabemos que temos meios de nos fazer ouvir lá, onde a lei organiza a sociedade, embora esses meios reduzam-se a nada diante dos regimes políticos estabelecidos de maneira mafiosa. Quando todo objeto tem mais valor do que o próprio homem, a criança, que apresenta a dupla desvantagem de ser, ao mesmo tempo, consumidor e não produtivo, é particularmente fragilizada. Ao longo de minhas viagens em países africanos e outros países pobres, já me ocorreu ouvir pais falarem de seu desejo de doar um filho em adoção para lhe permitir alcançar um melhor destino em outras paragens. Isso não me chocou nem um pouco porque todos nós somos testemunhas da chegada numerosa de indivíduos isolados ou em grupo em nossos países ricos, motivados pelo desejo de escapar de sua miséria.

Devemos considerar esse fenômeno como sinal anunciador do que nos aguarda nos anos vindouros? Receio muito que sim. Quando se evoca a época em que a escravidão era comum, capturas em massa foram realizadas para fornecer ao Novo Mundo uma mão de obra barata. Fala-se de quarenta milhões de africanos que tiveram esse destino. A Europa havia invadido a América para substituir, à força, os povos nativos. Os novos americanos, uma vez instalados, tiveram de recorrer aos homens e mulheres dos países africanos, a fim de utilizá-los na construção dos novos países emergentes.

Atualmente, a escravidão está morta, mas não a necessidade de uma mão de obra barata. Entre importar essa mão de obra ou exportar o trabalho para os países onde a mão de obra é barata, os países industrializados não chegam a uma decisão. Entretanto, os demógrafos nos dizem que a Europa terá necessidade de acolher 50 milhões de estrangeiros nos próximos cinquenta anos, a fim de renovar sua população. A História ainda nos pregará uma peça?

Adoção não é escravidão. A adoção é o encontro entre os homens baseada no acolhimento de um pequeno sujeito privado da proteção de seus pais e, muitas vezes, de sua terra natal. Um casal ou apenas uma pessoa desejosa de um filho o aguarda com impaciência. E se, às vezes, inúmeros indivíduos buscam se livrar dessa espera, recorrendo a métodos condenáveis, isso não coloca em questão o espírito que guia as pessoas que trabalham nesse campo e, menos ainda, a adoção como um ato profundamente humano.

Milhares de crianças são adotadas na França, crianças vindas de 75 países. A França acolhe crianças em adoção e imigrantes em busca de solução para seu próprio destino. A chegada desses imigrantes não deve ser confundida com uma invasão militar como costumavam fazê-lo os países colonialistas. O imigrante não chega com um espírito de conquistador ou de missionário ávido de transformar o mundo, moldá-lo à sua imagem. Gerações de imigrantes foram adotadas pela França, como gerações de crianças adotadas se fundiram à população para tornarem-se cidadãos franceses comuns. Às vezes, traços físicos, tradições culturais ou religiosas vêm nos lembrar uma origem que resiste ao esquecimento. Mas isso nunca desgastou a identidade da imagem que fazemos da França.

Deve-se agora temer a evolução demográfica que nos espera? Cada vez que um francês busca uma criança em outra parte, para torná-la sua, e cada vez que um imigrante é adotado pela França e se considera inteiramente francês, a resposta à minha questão é não. A França é maior que os indivíduos e a nação não se sobrecarrega de seus recém-chegados cidadãos.

 

 

Endereço para correspondência:
171, Rue du Faubourg Poissonière
75009 Paris
Tel.: 0142820222
E-mail: nazir.hamad@orange.fr

RECEBIDO EM: 24/07/2010
APROVADO EM: 02/08/2010

 

 

Sobre o Autor

Nazir Hamad
Doutor em Psicologia Clínica. Membro da Associaçao Lacaniana Internacional (ALI). Autor de vários livros, cinco publicados em português: Destinos de Crianças, juntamente com Françoise Dolto, publicado pela Martins Fontes; A criança adotiva e sua família, publicado pela Companhia de Freud; Adoção e parentalidade, publicado por CMC; Mal-estar na família, a ser publicado por CMC; Um homem de palavra, publicado pela Companhia de Freud.

 

 

Tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

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