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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.61 Belo Horizonte June 2011

 

Qual a função do corpo na anorexia e na bulimia que se apresentam na clínica da neurose?

 

What function does the body have in anorexia and bulimia that takes place in the neurosis clinic?

 

 

Alinne Nogueira Silva Coppus

Professora da Pós-Graduação em Psicanálise da UFJF. Severino Sombra e Unifenas. Coordenadora do Corpo Freudiano Seção Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O analista faz do corpo falado um instrumento na sua prática. Ele materializa o desejo e localiza o gozo do sujeito que se encontra no campo da neurose. Elegemos a anorexia e a bulimia como um recurso que permite ilustrar, a partir da clínica, os impasses que ter um corpo implica para o sujeito. Com eles apontaremos os efeitos da fixação do sujeito em um modo de satisfação pulsional, no caso a oral, bem como o lugar desse sintoma na trama fantasmática do sujeito. Esses sintomas nos mostram a dimensão que a imagem pode alcançar na dinâmica libidinal do sujeito.

Palavras-chave: Anorexia, Bulimia, Corpo, Imagem.


ABSTRACT

The psychoanalyst makes the body, which talks, an instrument in his/her practice. The body materializes the desire and the enjoyment of the subject who is found in the neurosis field. We choose the anorexia and bulimia as a resource which illustrates, as far as the psychoanalytic practice is concerned, the sticking points that having a body can represent to the subject. Having it in mind, we will point out the effects of the subject's fixation in a certain way of drive satisfaction - in this case, the oral kind - and also discuss the place this symptom has in the subject's phantasmagorical plot. These symptoms show us the dimension that the image can have in the subject's libidinal dynamics.

Keywords: Anorexia, Bulimia, Body, Image.


 

 

O corpo faz parte do dispositivo analítico. Freud ressaltou a necessidade de estarmos atentos à forma como o corpo se apresenta durante a sessão. Ele deu ouvidos, por exemplo, à 'participação na conversa' que as pernas de Elisabeth Von R tiveram durante o seu tratamento (FREUD, 1996, p.173). O corpo tem participado de forma bastante peculiar do desenvolvimento da psicanálise. O que afeta o corpo sempre fez parte do material analítico.

Dentre os vários sintomas que se apresentam na neurose e colocam em cena o corpo do sujeito, destacamos, como possibilidade de trabalho, a anorexia e a bulimia pela maneira evidente com que elas colocam em cena a relação do corpo com o desejo e com o gozo. Elas nos servirão como um guia, extraído da clínica, para a demonstração dos impasses que o sujeito vive com seu corpo.

Este artigo destaca a relação entre a anorexia e a bulimia, suas articulações com o corpo do sujeito, bem como a função que a imagem possui para o mesmo. Ressaltamos também que esses sintomas nos permitem abordar o estranhamento do sujeito em relação ao seu corpo próprio, o não reconhecimento de si na imagem e o corpo como substância gozante.

A partir do olhar psicanalítico, destacamos que a anorexia e a bulimia, ao menos as que se apresentam na estrutura neurótica, colocam o corpo em cena tanto em sua relação com o desejo como com o gozo. Com eles apontamos os efeitos da fixação do sujeito em um modo de satisfação pulsional, bem como o lugar desses sintomas na trama fantasmática do sujeito. Vistas como uma resposta do sujeito em relação ao Outro, a bulimia é apresentada como um efeito de forte alienação do sujeito no Outro e a anorexia seria uma tentativa, às avessas, de separação, gerando uma pseudosseparação, para ser mais exata1.

Nosso intuito, porém, não é fazer generalizações nem criar fórmulas que definam esses sintomas e seu tratamento; já há um discurso que caminha nesse sentido. Os artigos médicos da atualidade abordam a anorexia e a bulimia como um distúrbio alimentar, uma disfunção orgânica na qual o sujeito não estaria implicado, e cujo tratamento na maioria dos casos é a obrigatoriedade de comer (através de internação) juntamente com uma ação medicamentosa (antidepressivos e ansiolíticos) e a indicação de um trabalho terapêutico, de preferência, de orientação cognitivo-comportamental.

A pergunta chave do artigo é: como o corpo se apresenta na anorexia e na bulimia? A psicanálise nos diz que, sobretudo nesses casos, houve uma fixação do sujeito na forma oral da satisfação pulsional (FREUD, 1918-1914), cujo resultado é, dentre outros, o estabelecimento de uma relação especial entre a comida e a satisfação sexual. Outro ponto a ser destacado é a presença de uma fixação também no campo escópico, tanto na busca por uma imagem perfeita, que vela a castração, como na tentativa de fisgar o olhar do Outro com seu corpo emagrecido ou adoecido pelos efeitos dos métodos purgatórios.

A anorexia é um sintoma que se deixa ver por sua alteração no corpo. Sabemos que um sujeito está apresentando anorexia pela imagem emagrecida de seu corpo e algumas alterações no seu funcionamento como amenorreia, perda ponderal, hiperatividade, dores de cabeça e problemas gástricos. A partir de um olhar analítico afirmamos que o aguçamento da fome, para além de suas consequências físicas, é uma forma de autoerotismo, de erogeneização do corpo. O corpo magro aparece, em um primeiro momento, como ideal de beleza feminina, servindo como instrumento capaz de fisgar o olhar do Outro e apresentando-se em seu valor fálico. Sem ter limites, a busca pelo ideal da magreza descarna o corpo e o torna cadavérico, atraindo agora olhares de horror e curiosidade.

Os efeitos da bulimia não costumam ser tão aparentes, não geram uma alteração considerável da imagem. Ela não altera o peso do paciente, deixando-se apreender através dos vômitos e uso de laxantes. O 'passar mal', tão característico desse sintoma, vai aos poucos tornando público os excessos do sujeito com a comida e o corpo.

Porém, ficar centrado nesse transtorno enquanto apenas alimentar é um modo de não ver o mal-estar subjetivo que se apresenta na complexidade desse sintoma. Quando se trata de pulsão oral - seja na compulsão ou na restrição -, temos a presença de outros objetos, para além do alimento, como o uso abusivo de medicação - muito presente na clínica atual - e o álcool. A anorexia e a bulimia não são apenas patologias da alimentação "e sim uma problemática que liga o desejo e o gozo" através da relação do sujeito com determinados objetos (GORALI, 2000, p.108). Além disso, se fixamos nossa escuta na alimentação, deixamos de lado pontos importantes como a função da imagem, a relação do sujeito com a castração, o lugar do sintoma no jogo fantasmático com o Outro, dentre outros.

A psicanálise leva em consideração para a constituição da imagem corporal tanto a fantasia inconsciente como seu valor libidinal, destacando o gozo que pertence à relação do sujeito com a própria imagem investida narcisicamente. Retomando a história científica da anorexia, o Simpósio de Gottingenn de 1965 (COBELO, s/d), de forma pioneira, ressaltou a importância da imagem do corpo no que se refere à anorexia, interpretada como índice de uma dificuldade na construção dessa imagem.

Lacan trabalha profundamente a relação entre a causalidade psíquica e a imago em sua teoria do estádio do espelho (1949), momento em que advém uma espécie de costura da imagem corporal do sujeito. É a imagem corporal que fornece um contorno, um limite para o eu do sujeito. Localizamos nesses sintomas a ampliação do valor libidinal da imagem do corpo como uma estratégia para o sujeito subtrair-se do preço imposto pela castração. "Este é, efetivamente, um elemento central na clínica da anorexia-bulimia: a existência de um gozo da imagem" (RECALCATI, 2004, p.114).

O sujeito goza com a imagem de seu corpo. Gozar da imagem nos faz retomar o narcisismo, que é definido por Freud (1914) como a possibilidade do corpo, enquanto imagem, ser investido libidinalmente. Lacan (1974) também nos disse que

"o corpo, se introduz na economia do gozo (foi daí que parti) pela imagem do corpo. A relação do homem, do que se chama por seu nome, com seu corpo, se há algo que sublinha bem que ela é imaginária, é o alcance que aí toma a imagem" (LACAN, 1974, p.55).

Como a imagem possibilita um gozo ao sujeito (especificamente) nesse sintoma? A imagem do corpo pode vir como um "substituto da falta de significante que representaria o sujeito no Outro" (SORIA, 2001, p.41). A mulher comprova essa substituição com a prevalência desses sintomas em seu campo. Uma modalidade pela qual a histérica buscaria se nomear "como mulher será através da imagem de seu corpo, procurando esgotar na imagem a pergunta sobre a feminilidade" (Idem, p.42).

Tentativa que encontra o fracasso. A imagem que constitui o sujeito é ao mesmo tempo uma imagem perdida para sempre, tal qual o objeto perdido da primeira experiência de satisfação (LACAN, 1953/1998, p. 249-251).

Lacan diz que a estrutura narcísica possui um caráter irredutível para o sujeito (1955/1998, p.428). "Isto significa que existe um gozo que pertence à imagem e que está fora do simbólico, fora da ordem da lei simbólica..." (RECALCATI, 2004, p.118). Esse resto de libido que pertence à imagem e que não cede à lei simbólica indica a obstinação do gozo narcísico e sua insistência não plenamente simbolizada.

Acreditamos que o que é denominado "percepção distorcida" da imagem, tanto pela medicina quanto pelas outras terapias, é efeito do excesso de gozo que o sujeito experimenta na busca pelo controle e consistência de sua imagem. O 'a mais' que só ele enxerga no espelho e tenta eliminar a qualquer custo retorna através da deformação da imagem especular (SORIA, 2001). É o que vem demonstrar a angústia que o sujeito sente diante do espelho: algo a mais sempre permanece na imagem, indicando um ponto irredutível, cego na cena.

O sujeito que apresenta esses sintomas busca a coincidência entre seu eu e o ideal. Busca que aponta para um fracasso, testemunhado pela percepção equivocada do próprio corpo: ainda que seu corpo esteja reduzido a um esqueleto, existe sempre, em alguma parte, um excesso de carne, um excesso de gordura.

O sujeito se agarra à imagem, ao sentido que a imagem fornece para ele (LACAN, 2007). A anorexia coloca em ato a tentativa de fazer valer o poder e o controle da imagem, tendo como objetivo apaziguar o sujeito. É possível situar aí a aspiração anoréxica de existir como "pura imagem" (SORIA, 2001, p.38).

Tendo a clínica como parâmetro, afirmamos que esse sintoma geralmente aparece após o encontro traumático do sujeito com o real - seja na puberdade, seja com a perda do amor -, sendo o corpo uma possibilidade de enquadrar o excesso de gozo experienciado pelo sujeito, e vamos na direção apontada por Lacan de que "toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo" (LACAN, 2003, p.362). Lacan (1975-76) deixa isso ainda mais claro, afirmando que o corpo serve para enquadrar o gozo através de sua imagem: "...o enquadramento tem sempre uma relação pelo menos de homonímia com o que lhe é suposto contar como imagem" (LACAN, 2007, p.144).

Sentir os ossos, ver as veias e os músculos marcarem a pele, apalpar o corpo em renovadas inspeções, realizar contínuas operações de purificação, deixa à vista a possibilidade de se fazer do corpo um instrumento de gozo.

A busca por uma imagem ideal também se apresenta na bulimia. O sujeito se agarra à consistência que a imagem lhe fornece, tentando se reduzir a ela. A imagem, porém, não diz tudo. O ponto que escapa a ela, ou seja, o vazio que não se reflete e ao mesmo tempo a sustenta, retorna como um a mais que insiste em aparecer na imagem do espelho. O uso constante de laxantes e a compulsão presente no vômito e nos ataques de comilança nos fazem lembrar que a comida pode encarnar o carretel do conhecido e eterno jogo do fort-da.

A psicanálise opera e é através dela que o sujeito poderá dar um sentido para seu sintoma. Ela permite que o sujeito aceite a impossibilidade de haver um savoirfaire do sujeito em relação ao corpo. Sabendo da impossibilidade de uma relação tranquila com o corpo, marcada por uma satisfação ideal, cabe ao sujeito inventar uma relação possível com seu corpo.

A análise oferece uma outra via para o tratamento do gozo que se materializa no corpo. A associação livre, sustentada pela atenção flutuante e pelos efeitos da transferência, permite um novo posicionamento do sujeito diante do seu corpo. Ele se mantém como campo de gozo, mas não só. A satisfação pulsional permite que algo do desejo apareça e é nessa direção que a análise caminha.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
Rua Chanceler Oswaldo Aranha, 180/603 São Mateus
36025-007 - JUIZ DE FORA/MG
Tel.: (32)3224-5945 e (32)9104-6758
E-mail: alinnerj@terra.com.br

RECEBIDO EM: 25/01/2011
APROVADO EM: 11/04/2011

 

 

Sobre a Autora

Alinne Nogueira Silva Coppus
Psicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora da Pós-Graduação em Psicanálise da UFJF. Severino Sombra e Unifenas. Coordenadora do Corpo Freudiano Seção Juiz de Fora.

 

 

1. Para maior aprofundamento dessa temática consultar a tese de doutorado O corpo nas neuroses: inibição, sintoma e angústia, defendida em 2010 na UFRJ pela autora do artigo.

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