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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.61 Belo Horizonte June 2011

 

O desejo do analista e a não especificidade da clínica psicanalítica

 

The desire of the analyst and the non-specificity of the psychoanalysiss clinic

 

 

Elisa Rennó dos Mares Guia

Doutoranda pela Ecole Doctorale Recherches en Psychopathologie et Psychanalyse; U.F.R. Sciences Humaines Cliniques (SHC) Université Paris VII

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aqui apresentado visa percorrer alguns textos de Freud, Lacan e outros psicanalistas para levantar algumas questões sobre o desejo do analista e a não-especificidade da clínica psicanalítica. A posição do analista consiste em um lugar não ocupado, que não pode ser descrito em poucas páginas ou elucidado somente através de palavras. Por essa razão, este trabalho recorre a situações clínicas apresentadas por Freud e Lucia Tower que, em um segundo momento, são interrogadas por Lacan. Uma vez trabalhada esta questão - trabalhada e não esgotada -, verifica-se que algumas conclusões tocam a questão da especificidade ou não especificidade da clínica psicanalítica. Assim, este trabalho seria um ensaio ou uma reflexão sobre o lugar do analista em sua prática.

Palavras-chave: Contratransferência, Posição de analista, Especificidade, Desejo, Clínica, Inconsciente.


ABSTRACT

This paper seeks to work some texts of Freud, Lacan and others psychoanalysts and elaborates some questions about the desire of the analyst and the non-specificity of the psychoanalysis's clinic. The position of the analyst is related to one not-taken place, which carít be described in a few pages or even elucidate only through words. For this reason this work goes through some clinical situations described by Freud and Lucia Tower which, in another moment, Lacan has interrogated. As long as these issues are worked - but not exhausted - it appears that some conclusions are passing by the question of the specificity or non-specificity of the psychoanalytic clinic. This work is an essay or a reflection about the analyst's place in his practice.

Keywords: Counter-transference, Analyst's position, Specificity, Desire, Clinic and unconscious.


 

 

Situações como as de um proprietário em perspectiva,
que ordena a um arquiteto construir-lhe uma vivenda
de acordo com seus próprios gostos e exigências,
ou de um doador piedoso que comissiona um artista
para pintar um quadro sacro,
em cujo canto deve haver um retrato seu em adoração:
tais são, no fundo, incompatíveis
com as condições necessárias à psicanálise
(FREUD, 1920).

 

Introdução

Não é sem razão que o caso de Dora seja, talvez, um dos textos mais solicitados dentro da psicanálise. Os motivos são inúmeros, tais como, entre outros, as formulações sobre a transferência, as perspectivas sobre a questão do feminino, da histeria e do próprio nascimento da psicanálise1 mas, sobretudo, a abordagem da questão do papel do analista na dialética da transferência. O texto sobre o caso foi escrito em 1905, mas, alguns anos depois, Freud declarou que, por desconhecer as propriedades da transferência, não pode avançar na análise de Dora. Todavia, apesar de interrompida, a análise de Dora contribuiu enormemente para reflexões sobre a questão e suscitou a curiosidade de Lacan. Puderam ser identificados pontos cruciais para se pensar a questão do desejo do analista e da não especificidade da clínica psicanalítica. E, de fato, o retorno de Lacan aos grandes casos de Freud foi inaugurado em 1951 com "Intervenção sobre a transferência"2, no qual ele propõe uma releitura do caso Dora expondo novas perspectivas sobre a clínica psicanalítica e questiona o desejo de Freud.

Ao discorrer sobre seus casos clínicos, entre os quais o de Dora e o da jovem homossexual3, Freud sempre pareceu expor seu trabalho clínico de maneira bastante honesta, falando sobre suas dúvidas, dificuldades e até mesmo falhas, aportando, desta forma, grandes contribuições para as formulações sobre o lugar do analista.

A ideia de contratransferência está relacionada àquilo que mais tarde Lacan chamará de desejo do analista. Lacan se interessa igualmente pelo texto da psicanalista Lucia Tower sobre a "Contratransferência"4 e o evoca em algumas sessões de seu seminário sobre a Angústia, em 1963, para discorrer sobre o desejo do analista. Talvez este seja um dos textos que aborda a questão de maneira mais franca. Neste mesmo seminário Lacan também retorna ao caso da jovem homossexual para se perguntar sobre o desejo de Freud.

Partindo dessas reflexões, o artigo aqui apresentado visa levantar algumas questões sobre o desejo do analista e a não especificidade da clínica psicanalítica.

 

Dora a partir de Freud de 1905 e Lacan de 1951

A riqueza do caso Dora não pode ser descrita em poucas linhas. Vale retomar alguns pontos: trata- se de uma jovem histérica levada a Freud pelo seu pai apresentando "sintomas nervosos". O pai de Dora traía sua mulher com a esposa de um amigo, o Sr. K., que se aproxima de Dora com proposições amorosas. Tudo "se passa bem" até o momento em que a famosa cena do lago rompe o equilíbrio. O Sr. K. diz à jovem Dora que sua mulher não significa nada para ele e dessa forma ela se dá conta do estado precário da relação entre a Sra. K. e o seu marido. Até então Dora cumpria seu papel de cúmplice, mas, a partir de então, ela passa a demonstrar um grande ciúme da relação de seu pai com a Sra. K..

Em "Intervenção sobre a transferência",5 Lacan aponta que a Sra. K. e o pai de Dora são amantes há tantos anos que chegam a dissimular tal fato através de representações muitas vezes ridículas. ". .. ela é oferecida sem defesa às investidas do Sr. K., para as quais o pai fecha os olhos, tornando-a com isso objeto de uma troca odiosa".6 O pai de Dora chegou a pedir ao próprio Freud para "convencer" a filha de que nada se passava entre eles, pois até então a cumplicidade de Dora permitia que a trama durasse. Seguindo pistas colocadas por Freud, Lacan se pergunta sobre o que realmente estaria por trás do ciúme repentino apresentado por Dora em relação ao seu pai e à Sra. K..

Em um primeiro momento, Freud defendia a tese de que a base desse ciúme estaria no amor de Dora pelo seu pai, que estava escondido por trás do seu amor pelo Sr. K.. Mas Lacan sugere que esse ciúme disfarçaria o interesse de Dora pela pessoa do sujeito-rival, uma fascinação que se encontraria por trás da relação de Dora com a Sra. K.. A leitura de Lacan é que, identificada ao seu pai, Dora se depara com a Sra. K. enquanto objeto homossexual de seu desejo. Na verdade o corpo da Sra. K. constituiria para Dora um fascinante mistério.

No relato do caso Dora, Freud ressalta que "Quando Dora falava da Senhora K., ela falava da deslumbrante brancura de seu corpo, em um tom que corresponderia mais ao de alguém que estaria apaixonada do que de alguém que se referia a uma rival derrotada".7 Mas naquela época Freud não seguiu esta intuição. Partindo do pressuposto de que, apesar de natural, a primazia do pai do Édipo não seria universal, Lacan aponta que a Sra. K não ocupava o lugar de rival para Dora, ou seja, a trama não ocorreria dentro do que para Freud seria normativo. Segundo Lacan, o que estaria por trás da lógica inconsciente que motivou o ciúme de Dora seria um investimento em um objeto homossexual que antecederia o complexo de Édipo.8

Lacan sustenta que Dora não teve acesso ao reconhecimento de sua própria feminilidade que, para ela, teria se constituído como um verdadeiro mistério. Assim ela busca a resposta na Sra. K., " ... o problema de sua condição está, no fundo, em se aceitar como objeto de desejo do homem, e é esse o mistério, para Dora, que motiva sua idolatria pela Sra. K., do mesmo modo que ocorre em sua longa meditação diante da Madona..."9, coloca Lacan. Ou seja, aquilo que no fundo consistiria na busca da solução do famoso enigma "O que é uma mulher?".

Mas por quê, em um primeiro momento, Freud não identificou a homossexualidade de Dora? Sabemos que o próprio Freud disse que, na época, desconhecia os efeitos da transferência. Mas, segundo Lacan, Freud estaria preso ao seu pré-julgamento do pai do Édipo, o que também o impediu de avançar na análise de Dora. "Não nos será possível considerá-la aqui como uma entidade inteiramente relativa à contratransferência, definida como a soma dos preconceitos, das paixões, dos embaraços e até mesmo da informação insuficiente do analista num dado momento do processo dialético?"10, diz Lacan. Se em 1951 Lacan relacionava a ideia de contratransferência ao pré-julgamento do analista durante uma situação de escuta analítica, até então a posição do analista estaria relacionada à neutralidade.

 

Freud, Lacan e a jovem homossexual

De 1951 passamos ao ano de 1963 quando, não obstante o caso de Dora, a jovem homossexual também se torna um exemplo para ilustrar a evolução da abordagem da questão da posição do analista. Em 1920 Freud escreveu "Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina"11 , onde fala sobre uma jovem de 18 anos, de uma família nobre, que era frequentemente vista circulando com uma dama "do mundo" cerca de dez anos mais velha que ela. Seus pais diziam que ela nunca tinha se interessado pelos jovens homens e isso os incomodava enormemente. Um dia o pai encontra sua filha acompanhada daquela famosa dama e, passando por elas, lhes lança um olhar de fúria.

Assim como Dora, a jovem homossexual também foi levada a Freud por sua família. Se o pai de Dora, de certa forma, queria que sua filha continuasse se comportando como cúmplice do caso que ele jurava não existir, os pais da jovem homossexual demandavam que a sua filha fosse colocada "dentro dos padrões". Era possível notar que, ao mesmo tempo em que Freud se questiona sobre até que ponto a jovem tinha chegado à satisfação de sua paixão pela tal senhora de reputação duvidosa com quem circulava, ele estava também convencido de que ela não se queixava de seu estado. "Ela não para de tentar me enganar, afirmando que, para ela, se liberar de sua homossexualidade seria uma liberdade"12, diz ele.

Ao se colocar novamente a questão do desejo de Freud, no seminário sobre a Angústia13 Lacan argumenta que se Freud não podia pressentir qual a posição de afeto inconsciente que se escondia por trás da jovem homossexual, era porque ele se recusava a enxergar a estrutura de ficção que se encontraria na origem da verdade. O que isso significaria?

Freud conta que a jovem trazia uma série de sonhos que, segundo ele, antecipariam o tratamento de inversão, pois eles seriam confissões de seu desejo por um homem e filhos, ou seja, segundo ele, os sonhos da menina decidiam a seu favor. Já Lacan coloca que "De fato, os sonhos dessa paciente marcariam, todos os dias, enormes progressos em direção ao sexo a que ela estava destinada, mas em momento algum Freud acreditava nisso".14

Para Freud, a intenção da jovem era de conduzi-lo ao erro e, mesmo que ele estivesse certo, tal suposição se torna importante para ele no seu tratamento: " ... um dia eu declarei a ela que eu não acreditava nesses sonhos, que eles eram falsos e hipócritas e que sua intenção era a de me enganar, tal como ela tinha o costume de enganar o pai".15 Mas Lacan parte da perspectiva de que o analista deve também levar em conta que o inconsciente é capaz de mentir. Ele estaciona nisto - "Mas então, este inconsciente que temos o habito de considerarmos como sendo o mais profundo, a verdade verdadeira, ele pode nos enganar"16, diz ele. O que Lacan assinala é a nocividade da paixão pela verdade por parte do analista.

Poderíamos então pensar que, além da questão da neutralidade, a não posição de mestre iria ao encontro da ideia da posição do analista. Se o lugar do mestre pode ser pensado como o da paixão pela verdade, a "verdade verdadeira", de certa maneira a posição do analista diz de uma maleabilidade, possibilidade de abertura, de deslocamento - de uma aposta.

 

Lucia Tower de 1955, Lacan de 1963 e o desejo do analista

É sempre importante ter em mente que o estilo de Lacan dificilmente possibilita que uma questão seja abordada de maneira isolada em seus ensinamentos, ou seja, abordar um ponto tal como o desejo do analista sem que os limites sejam demarcados ou sem levar em consideração a evolução de seu pensamento pode ser um convite a um trabalho reducionista.17 Lacan discorreu bastante sobre o tema em seu seminário sobre a Angústia, e em algumas lições ele aborda o artigo sobre a contratransferência da psicanalista Lucia Tower. Durante esse seminário a questão do desejo do analista é abordada a partir de diversas perspectivas.

Na lição do dia 27 de Fevereiro de 1963 do seminário sobre a Angústia, Lacan fala sobre a dificuldade da contratransferência, colocando que tal função implica a participação do analista. Dessa forma, a dificuldade a ser enfrentada seria a questão do desejo do analista, ou seja, o próprio desejo do analista seria a questão em si, além de corresponder ao que poderia vir a ser um obstáculo.

Talvez nenhum texto tenha abordado a questão da contratransferência de maneira tão honesta como o de Lucia Tower, escrito em 1955. A psicanalista aponta que, naquela época, a noção de contratransferência se encontrava ligada apenas ao fato de que o analista não poderia ter nenhuma forma de relação erótica por/ com seu paciente. Mas ela expande a questão e enumera algumas reações mais comuns da contratransferência identificando, entre elas, a angústia durante a situação terapêutica, assim como comportamentos e sentimentos estereotipados pelo paciente. Para ela, a compreensão sobre as vicissitudes e as funções da libido do analista durante a situação terapêutica é bastante obscura, e coloca que:

"Todos temos sentimentos e fantasias múltiplas sobre nossos pacientes [...] os sentimentos que parecem excessivos e inapropriados em comparação com aquilo que o paciente parece ser ou esta dizendo, e particularmente se acompanhados de angústia, são, sem dúvida nenhuma, uma significação contratransferencial"
(TOWER, 1987, p.120).

Segundo ela, a questão não poderia ser reduzida somente à dificuldade de percepção ou à inexperiência por parte do analista. Desse modo, ela aporta uma nova perspectiva e levanta a hipótese de que as estruturas contratransferenciais consistem, para o analista, em vetores para a compreensão emocional da neurose de transferência e, como tal, devem ser levadas em conta durante o trabalho analítico.

Tower ressalta que o analista deve buscar não cair nas armadilhas da contratransferência. Ela não condena as reações das contratransferências em si, mas insiste no fato de que o analista deve aprender a antecipá-las e evitá-las e, sobretudo, estar atento à própria angústia. Para ilustrar suas considerações, ela apresenta algumas situações clínicas, tais como a análise de um homem, quando ela enfrentou dificuldade em conduzir o tratamento, e relata o modo através do qual ela pôde perceber e sair da armadilha que a própria relação de transferência havia criado. Segundo Tower, a angústia surgida ao pensar sobre como conduziria as sessões foi um forte indicador do que estaria ocorrendo.

A psicanalista se questionou intensamente sobre o que poderia estar acontecendo, até que, após um sonho com este paciente, ela percebe que havia desenvolvido uma espécie de "cegueira contratransferencial" pela esposa dele. Segundo ela, tal fato a impedia enormemente de avançar. E conclui que "é evidente que, por trás de minha reação contratransferencial, havia resíduos em meu próprio inconsciente, algum ressurgimento do conflito edipiano com relação a outra mulher, mas também o medo de outra mulher em uma situação triangular".18 Diz que sentia como se ela tivesse caído em uma armadilha da transferência e que, de alguma forma, havia se posicionado contra a esposa de seu paciente.

Em determinado momento, esta mesma mulher desenvolve uma doença psicossomática e Tower havia chegado a pensar que ela não deveria ser perturbada. A analista acabou por se dar conta de que havia se tornado um suporte da cena conjugal que teria sido montada por seu paciente, a tal ponto que a situação se tornou insustentável. Segundo ela, certo dia acaba sonhando com esse paciente. Nesse sonho ela estava na casa dele, onde era muito bem acolhida por sua esposa, mostrando que essa mulher não era ameaçadora como ela acreditava. Depois de tal sonho, Tower reflete sobre o seu posicionamento, passa a re-pensar a cena, partindo, porém, do ponto de vista da esposa e passa a entender a tal doença psicossomática como um ponto de abertura, como uma falta de mestria e agressividade dessa mulher para com o seu marido. Para Lucia Tower, esta retificação ocorreu devido à força mobilizadora do homem para dobrar sua analista segundo a sua própria vontade.19

Talvez não fosse sem razão que em suas conclusões sobre o caso da jovem homossexual Freud dizia que "... não é indiferente que um ser humano procure uma análise partindo de seu próprio movimento ou que ele o faça porque os outros o levam ao analista..."20 . O desejo de Tower estava preenchido por suas impressões, em torno das quais ela se encontrava, até então, estacionada. Em 1961, no seminário sobre a Transferência, Lacan afirma que o desejo do analista corresponde ao não ocupado que ele deve oferecer ao desejo do paciente para que ele se realize como desejo do Outro.21

O lugar não ocupado é aquele que possibilita um espaço e um deslocamento. Tower retifica, então, sua posição, avança e concorda com aquilo que o seu sonho lhe apresenta: "Eu pude, sem muita angústia, de forma sutil, mas crucial, responder a este homem como uma mulher a um homem, pois até então minha relação com ele era de médico e paciente".22 Nesse sentido, Tower não cedeu à paixão pelo saber.

Seguindo este traço, Lacan se apoia no texto de Tower para abordar o que ele chama de "facilidades da posição feminina com relação ao desejo".23 Ele importa o termo "to stoop" da língua inglesa, mais precisamente da comédia de Goldsmith "She stoops to conquer" (Ela se rebaixa para conquistar). Em seu livro Portrait des femmes en analyse - Lacan et le contre-transfert24 , a psicanalista Gloria Leff trabalha a lição do dia 27 de Março de 1963 do seminário sobre a Angústia e elucida que o título desta trama evidencia a estratégia da personagem Kate Hardcastle, uma nobre mulher que se fantasia de servente para conquistar o seu amor, Marlow, um homem tímido que se aproxima somente de mulheres de classe social mais desfavorecida que a sua. Ela discorre sobre o termo "to stoop" e o articula que com a ideia de se curvar ou, até mesmo, se submeter... se adaptar à vontade, ao desejo do outro.

Segundo Lacan, tudo indicaria que o paciente de Tower teria traduzido esta retificação pelos seguintes termos: "seu próprio desejo".25 Ele não controlava tanto assim esta mulher que seria sua analista, a tal ponto que ele poderia dobrá-la ao seu desejo.

Lacan ressalta que esta retificação consistiria em uma abertura que teria sido feita, e que o desejo do analista foi verdadeiramente colocado em seu lugar. Desta maneira, a posição do analista estaria longe de ser a de um mestre. E ao falar sobre as facilidades da posição feminina com relação ao desejo, Lacan não parte da lógica de que Tower é uma mulher e seu paciente um homem. Perguntamo-nos se esta possibilidade de se curvar ao desejo do outro poderia ser pensada a partir da perspectiva da posição feminina, ou seja, poderia ser pensada a partir da perspectiva em relação ao falo? Pois, se para a "mulher" o objeto fálico viria em outra posição, o "homem" se ocuparia de mostrar certa potência, sempre ameaçada. Dentro desta lógica, to stoop transmitiria esta ideia de colocar a função fálica em segundo plano, na medida em que o analista não se preocupa em mostrar o seu poder, quando sua relação com o paciente não seria a de médico e paciente. Tudo isso remete à questão da angústia e da castração que Lacan irá abordar ao longo de seu seminário. Mas nosso trabalho, por enquanto, para por aqui.

 

Conclusão: A (não) especificidade da clínica psicanalítica - analista generalista do sujeito

O desejo do analista diz não somente de um lugar (não ocupado) como também de uma posição, de abertura no sentido de possibilidades, de deslocamento no sentido de uma não identificação com um saber. Nesse sentido, a especificidade da clínica psicanalítica seria na verdade a não especificidade da clínica psicanalítica.

A própria histeria que se encontra na raiz da teoria psicanalítica ilustra bem a ideia de uma sempre invenção, sempre renovação, a partir de uma lógica. Mesmo escrito em 1905, Dora ainda representa uma forte referência para a clínica da histeria. De fato, a própria histeria "permite que a prática freudiana não seja levada ao estatuto de uma antigüidade vienense ou parisiense. A histeria contribui para manter a vivacidade de um discurso, através da invenção de uma clínica que sempre ainda nos surpreende"26, tal como coloca André Michels. Dentro da perspectiva psicanalítica, cada psicanálise aportaria o fator surpresa, seria nova, não dentro da lógica das ditas "novas clínicas" - muito pelo contrário!!! - e sim dentro da lógica da plasticidade de cada caso, daquilo desde sempre atual em psicanálise.

Assim como a histeria, a teoria do inconsciente também elucida nossa ideia. Em seu texto "Le mensonge et la croyance dans l'Autre"27, a psicanalista Patrícia Léon mostra a maneira como, segundo Freud, o inconsciente não se revela de maneira positiva e que a experiência analítica demonstra que podemos ter acesso a ele sempre de maneira indireta. "A singularidade da análise é de visar alguma coisa que se situa na ordem do impossível, de se orientar por algo que falta", diz Léon. Se orientar por aquilo que se revela de outra maneira, e não por aquilo que se apresenta. Assim, verifica-se que, segundo o psicanalista Erik Porge, independentemente da etiqueta que o sujeito porta ao se dirigir ao psicanalista, cabe a este último escutar a singularidade de seu dizer, ou seja, "Não deveríamos considerar o psicanalista como um generalista do sujeito? Ora, ao se multiplicarem as especializações de acordo com as idades ou sintomas, os psicanalistas se inscrevem não somente dentro de um discurso terapêutico, mas também do expert..."28, diz ele.

Dentro dessa lógica, a ideia de especificidade não iria ao encontro com a posição do analista, pois ela tende a caminhar na direção do lugar do mestre, do saber que se antecipa, e não de um desejo.

Léon nos mostra que, se na psicanálise o próprio conceito clínico de recalque significa que o sujeito não pode dizer de seu desejo de maneira clara e se as formações inconscientes - sintomas, sonhos e lapsos - são a linguagem que permite que o recalque se expresse, o inconsciente não é verificável a não ser por suas falhas.29 Não é sem razão que Freud dizia que situações como a do cliente que encomenda ao arquiteto uma casa de acordo com os seus gostos e necessidades, não são fundamentalmente compatíveis com as condições da psicanálise. O psicanalista realmente seria um generalista do sujeito. Se existe alguma especificidade na qual o lugar do analista deve se situar é aquela do desejo.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
100 BIS Rue Du Cherche Midi
75006 - Paris - França
E-mail: elisarmg@hotmail.com

RECEBIDO EM: 01/03/2011
APROVADO EM: 20/04/2011

 

 

Sobre o Autora

Elisa Rennó dos Mares Guia
Doutoranda pela Ecole Doctorale Recherches en Psychopathologie et Psychanalyse; U.F.R. Sciences Humaines Cliniques (SHC) Université Paris VII - Centre de Recherches Psychanalyse, Médicine et Société. Participa de atividades na «La lettre lacanienne, une école de psychanalyse», Paris. Atua no CPMS (Centre Psycho Médico Social) em Paris.

 

 

1. A histeria forneceu grandes pistas sobre a teoria e o tratamento analítico. Em "Estudos sobre a histeria", Freud e Breuer discorreram sobre a histeria e junto aos seus pacientes histéricos desenvolvem um tratamento que busca a cura através da palavra. Neste período (1895-1896) eles eram adeptos da prática da hipnose, mas, como sabemos, com o passar do tempo Freud abandona esta técnica. Esta mudança de direção é apresentada no prefácio do caso Dora. Se em "Estudos sobre a histeria" o tratamento com a hipnose tinha como foco o sintoma, em 1906 ele passa a julgar esse tipo de tratamento inadequado para a tão refinada estrutura da neurose (Dora, p.10). "Agora eu deixo que o paciente determine o tema do trabalho quotidiano...", diz Freud, que passa a adotar a prática da associação livre.
2. LACAN, J. "Intervenção sobre a transferência" (1951). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
3. FREUD, S. "De la psychogénèse d'un cas d'homosexualité féminine" (1920). In: CEuvres completes, v.XV Paris: PUF, 1996.
4. TOWER, L. "Contre-transfert". In: Le contre-transfert. Paris: Navarin, 1987, p.113-141.
5. LACAN, J. "Intervention sur le transfert" (1951). In: Écrits. Paris: Seuil, 1966, p.220.
6. LACAN, J. "Intervenção sobre a transferência" (1951). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.218.
7. FREUD, S. "Dora: Fragment d'une analyse d'hystérie". Paris: PUF - Quadrige, 2006, p.59.
8. O caso Dora foi escrito em 1905. Porém, anos mais tarde, em 1931, Freud trabalhou a questão da fase pré-edipiana e sua relação com o desenvolvimento da sexualidade feminina. Ver: Freud, S. "Sur la sexualité féminine". In: La viesexuelle (1907-1931). Paris: PUF, 1973, p.139-155.
9. LACAN, J. "Intervenção sobre a transferência" (1951). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.221.
10. Ibid. p.224.
11. FREUD, S. "De la psychogénèse d'un cas d'homosexualité féminine" (1920). In: CEuvres completes, v.XV. Paris: PUF, 1996.
12. Ibid. p.242
13. LACAN, J. Le séminaire livre X (1962, 1963), LAngoisse. Paris: Seuil, 2004, p.151.
14. LACAN, J. LAngoisse, séance du 23 Janvier 1963.
15. FREUD, S. "De la psychogénèse d'un cas d'homosexualité féminine" (1920). In: CEuvres completes, v.XV. Paris: PUF, 1996, p.255.
16. LACAN, J. LAngoisse, séance du 23 Janvier 1963.
17. Sobre o assunto, Erik Porge comenta que "constatamos que, se alguns estudos, mesmo os mais sérios, clarificam certos pontos, eles também os obscurecem no sentido de que perdem de vista a sua ligação com o todo. Não é raro que autores tendam a reconstruir a teoria de Lacan somente a partir de um ponto de vista de seu ensaio parcial", em PORGE, Erik. Jacques Lacan, Un psychanalyste: parcours d'un enseignement. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érés, 2000, p.11.
18. TOWER, L. "Contre-transfert". In: Le contre-transfert. Paris: Navarin, 1987, p.131.
19. Ibid.
20. FREUD, S. "De la psychogénèse d'un cas d'homosexualité féminine" (1920). In: CEuvres completes, v.XV. Paris: PUF, 1996, p.239.
21. LACAN, J. Le Séminaire, livre VIII, Le transfert. Paris: Seuil, 1991, 11 Janvier 1961.
22. TOWER, L. "Contre-transfert". In: Le contre-transfert. Paris: Navarin, 1987, p.135.
23. LACAN, J. "Le séminaire livre X (1962, 1963), LAngoisse". Paris: Seuil, 2004, p.229.
24. LEFF, Gloria. "Portrait des femmes en analyse - Lacan et le contre-transfert". Paris: Seuil, 2010, p.153.
25. LACAN, J. "Le séminaire livre X (1962, 1963), LAngoisse". Paris: Seuil, 2004, p.230.
26. MICHELS, A. Actualité de lhystérie. Ramonville Saint-Agne: Editions Erés, 2001, p.7.
27. LEON, P "Le mensonge et la croyance dans l'Autre". In: La lettre de Yenfance et de Vadolescence, 4/2003, (n.54).
28. PORGE, E. Des Fondements de la clinique psychanalytique. Ramonville Saint-Agne: Editions Erés, 2008, p.24.
29. LEON, P "Le mensonge et la croyance dans l'Autre". In: La lettre de Venfance et de Vadolescence, 4/2003, (n.54), p.43.

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