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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.61 Belo Horizonte June 2011

 

A inscrição do movimento artístico surrealista interrogando a escrita de Lacan

 

The inscription of the surreal art movement interrogating the writing of Lacan

 

 

Jamily Nacur Rezende

Graduada em Odontologia pela UFMG e em Psicologia pela Faculdade Newton Paiva

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo marcar os encontros e desencontros entre psicanálise e o movimento artístico surrealista. Jacques Lacan interroga André Breton, cujo nome está intrinsecamente associado a esse movimento, e Tristan Tzara, poeta e escritor romeno radicalizado na França e fundador do Dadaísmo. Politicamente o Dadaísmo firma-se como movimento de protesto, na tentativa de destruir os valores burgueses e a arte convencional. A arte sobre uma nova ótica, um novo pensamento.

Palavras-chave: Arte, Lacan, Surrealismo, Sublimação, Linguagem.


ABSTRACT

This paper aims to highlight the similarities and differences between Psychoanalysis and The Surrealist Art Movement. Jacques Lacan interrogates André Breton, whose name is intrinsically linked to this movement, and also Tristan Tzara, a Romanian poet and writer, who lived in France and founded Dadaism. Politically, Dadaism is a protesting movement aimed to destroy bourgeoisie values and traditional art. Art on a new look and new thoughts.

Keywords: Art, Lacan, Surrealism, Sublimation, Language.


 

 

1. O movimento surrealista

Este movimento foi concebido por seus fundadores não como uma nova escola artística, mas como um meio particular de conhecimento de continentes que, até então, não tinham sido sistematicamente explorados: o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, os estados alucinatórios, em resumo, o avesso do que se apresentava como cenário lógico (NADEAU, 1958, p.46). O artista surrealista é antes de mais nada o Homo Ludens, o homem que joga (ancoragem).

Sempre ligada a acontecimentos políticos, a história do movimento surrealista está marcada por sua filiação ao partido comunista, o que será mantido até a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Há de se notar uma particularidade, ou seja, no período de 1919 a 1924 o surrealismo ainda não existia distinto do dadaísmo. Experiências de escrita automática, de narração de sonhos e dos sonhos hipnóticos se impõem como mecanismo essencial ao projeto surrealista.

A passagem deste grupo pelo dadaísmo, em decorrência da presença de Tristan Tzara (1922), não define uma relação de causalidade entre Dada e o surrealismo, pois a experiência fundadora desse último, que é a escrita automática, já tinha acontecido em 1919, escrita essa reconhecida por Breton e Soupault. Breton postula a ideia, caracterizando de uma vez por todas o movimento surrealista, de que não é mais o sentido da palavra que importa, mas o que ela caracteriza em termos de pensamento.

É plausível um recrudescimento com que várias gerações de artistas, em encontros imprevistos ou procurados, se confrontam com os modos de criação surrealista. As evidências dessa presença sincrônica e das experiências imagéticas surrealistas caracterizam uma criação plástica cuja importância criativa foi sempre afirmada. Há de fixar o desiderato maior da produção artística surrealista, ou seja, a investigação e o encontro maravilhoso com o inconsciente, no dizer de Louis Aragon.

O surrealismo crê numa relação entre o ser falante e a linguagem, embora Lacan, em 1950, se afaste desse pensamento ao afirmar que a relação do sujeito com a linguagem é de alienação, tanto quanto a relação do eu com a imagem.

Elisabeth Roudinesco, autora da História da Psicanálise na França, retrata a vida e o pensamento de Jacques Lacan e faz um minucioso estudo das circunstâncias sociais e culturais que o levaram a retomar o pensamento freudiano. No retorno a Freud não poupou esforços ao se valer dos recursos da Antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, da linguística de Ferdinand de Saussure, da filosofia de Foucault, da topologia e da lógica matemática.

Formado em medicina, Lacan passou da neurologia à psiquiatria, tendo sido aluno de Gatian de Clérambault. Teve contato com a psicanálise através do movimento surrealista e, a partir de 1951, propõe um retorno a Freud.

Convém notar as primeiras e inovadoras contribuições lacanianas sobre a relação entre linguagem e inconsciente.

Para Lacan, a linguagem é constitutiva para o sujeito ("Marco Antonio Coutinho"). Os últimos dez anos de sua vida estão direcionados à tentativa de compreender o enigma do inconsciente humano.

Na sua primeira intervenção, ele situa o Eu como instância do desconhecimento da ilusão, da alienação, sede do narcisismo. O nome próprio comporta em si essa formulação. Assim sendo, o Eu situado no registro do imaginário distinguese do sujeito do inconsciente enquanto instância simbólica. O simbólico é o campo da linguagem do significante, onde o registro marca a ligação do Desejo com a Lei e a Falta, através do complexo de castração operador do complexo de Édipo. A partir de Lévi-Strauss, Lacan postula a interdição do incesto, e o desejo como sendo uma falta a ser metaforizada na interdição edipiana. Articula nesse processo dois grandes conceitos: o nome do Pai e o Falo. E para operar com o nome do Pai e o Falo, ele cria seus matemas.

Segundo Lacan, a psicanálise situa-se entre matema e poema e lida com a instância da letra no inconsciente e com o sintoma do sujeito, que nada mais é do que uma letra que fixa o gozo. O matema assegura a transmissibilidade integral de um saber. Conforma-se ao paradigma matemático. O inconsciente seria autônomo em ralação ao Eu. E é no inconsciente que deveríamos situar a ação da psicanálise, quando ele se manifesta através dos atos falhos, chistes e relato dos sonhos. O inconsciente é o discurso do outro. O significante precede e determina o significado.

Nas suas reflexões sobre o mito, Lacan confere uma fórmula discursiva a algo que não pode ser transmitido como verdade. É nesse sentido que o complexo de Édipo tem o valor de mito.

Em 1920, a experiência surrealista da linguagem mostra que o automatismo presente se inspira no funcionamento do inconsciente proposto por Freud. Breton antecipa as formulações de Lacan sobre o eu e a realidade. Lacan, todavia, na sua primeira concepção de linguagem, circunscreve-a exclusivamente ao simbólico.

 

2. A psicanálise e o surrealismo

Apenas no ano de 1970 a teoria lacaniana permitirá pensar a prática surrealista da linguagem. Ele contraria sua teoria de 19301940, quando vai propor que a linguagem é um aparelho de gozo (Lacan, 1985). Em 1930 e 1940, encontramos um Lacan voltado para a fenomenologia, a filosofia hegeliana e o surrealismo. Em 1950 marca seu engajamento no movimento estruturalista de Lévi-Strauss, quando afirma que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Por último vem o Lacan dos nós borromeanos, da topologia da escrita automática de Joyce e o Lacan matemático, quando propõe uma reformulação da sua teoria da Linguagem. Lacan precisará passar por uma reelaboração do simbólico, apontando nele uma incompletude. Só então a linguagem poderá libertar-se dessa dimensão reguladora do código.

Lacan se filiou ao movimento surrealista francês. O conceito da escrita em Lacan aponta para uma abordagem menos estrutural da linguagem. No seu Seminário XXIII, ele comenta o fenômeno das palavras impostas e propõe uma concepção de linguagem como parasita. Curiosamente, Freud, em seu texto "As Neuropsicoses de defesa", nos aponta uma formulação de linguagem que a isso se assemelha.

A arte surrealista será o testemunho de uma nova relação entre o artista e a linguagem. O eu se apaga para deixar passar a linguagem e se maravilha com a sua obra. O pensamento que vem (do outro) não se sustenta como palavra do outro. A primeira realidade colocada na arte é a do eu. A multiplicidade do eu nos assinala a mutação imaginária, esbarrando no traço de identidade que não se deixa apagar. O resto ineliminável na redução do eu aparece como efeito primário no fato de que existe linguagem.

Lacan frequenta o surrealismo e chega a ser médico de Picasso. A influência da arte surrealista sobre o pensamento de Lacan teria sido tão importante quanto o freudismo e a psiquiatria. Os desencontros entre as ideias de Freud e as do líder do movimento surrealista André Breton refletem a condição desencontrada que a própria psicanálise revela ao homem. A partir daí, o eu não encontra mais na arte a posição central que lhe era dada desde o Renascimento. Nessa quebra de ilusão mimética, arte e psicanálise ocupam posições homólogas. A reflexão de Freud sobre a arte é o seu conceito de estranho que vem opor-se ao belo.

As criatividades artísticas, assim como o mito, refletem a angústia e o desespero a partir das formas tradicionais vigentes.

Surge uma nova arte, como resposta às inquietações então vividas.

No começo do século XX, a cultura europeia oferecia para todo mundo invenções tecnicocientíficas e movimentos artísticos diversos. Com o deflagrar da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Europa entra em colapso e vê destruído seu poder econômico e cultural. Caem os valores tradicionais e o período entre guerras caracterizou-se pela proliferação de grupos de artistas. Surge uma variedade de movimentos artísticos: Impressionismo, Expressionismo, Dadaísmo, Cubismo e Surrealismo. Nesse período turbulento, psicanálise e arte se encontram e se confrontam, ou seja, se atraem, se distanciam e se esbarram. A partir da Primeira Guerra Mundial, movimentos das vanguardas literárias e artísticas farão referências à psicanálise.

Em nome de um novo cânone estético e na busca de uma expressão revolucionária que irromperia do inconsciente, alguns artistas se aproximam das ideias de Freud.

O poeta e psiquiatra André Breton publicou um manifesto sobre o Surrealismo. Esse movimento surgiu na França da década de 1920 e foi significantemente influenciado pelas teses psicanalíticas que mostram a importância do inconsciente na criatividade do ser humano. Foi através da pintura que as ideias do Surrealismo se expressaram mais intensamente. Através das telas e das tintas, os artistas plásticos colocam suas emoções, seu inconsciente e representam o mundo concreto. No Brasil, as ideias do Surrealismo foram absorvidas na década de 1920-1930 pelo movimento modernista no Brasil. Podemos observar características surrealistas nas pinturas de "Nu" e "Abaporu", em Ismael Nery e na artista Tarsila do Amaral. A obra "Eu vi o Mundo", de Cícero Dias, apresenta características do Surrealismo. As esculturas de Maria Martins também caminham nessa direção. André Breton é autor de "Amor Louco", de "Nadja", de "Os vasos comunicantes", que são repre-sentações da literatura surrealista. Movimentos opostos como o de Tristão de Athayde e de Mário de Andrade são notórios. Oswald de Andrade, amante da novidade e admirador de Henri Bergson, Nietzsche, Freud e outros, apoiou esse movimento e dele fez parte. Breton e Oswald tinham como objetivo provocar a transgressão, subverter as leis existentes para mudar as formas de viver. Oswald procurou em Breton a síntese dos princípios da Teoria Antropofágica. Lembrava a influência exercida por Baudelaire e Rimbaud sobre a poesia e sobre a vida.

O Manifesto Antropofágico, em 1928, foi um "literário" escrito por Oswald Andrade, principal agitador cultural do início do Modernismo brasileiro. Em sua poesia Pau-Brasil, Oswald reafirma seus valores apregoando o uso de uma "linguagem literária" não catequizada. Suas ideias se aproximam das ideias de Breton, Marx, Freud e Rousseau. A antropofagia como movimento cultural foi tematizada por Oswald Andrade. O Movimento Antropofágico preconiza que a civilização europeia não deverá ser rejeitada, mas sim, absorvida e superada. A antropofagia é o símbolo dessa tese. O europeu deve ser devorado. Após a revolução de 1930, Oswald radicaliza sua posição e passa a defender uma arte social que carrega consigo uma concepção da criação artística que se aproxima do campo da psicanálise.

Além do sonho, eleito pelos surrealistas como terreno privilegiado do inconsciente, sobretudo em uma primeira fase da pintura surrealista, a histeria surgirá já como tema recorrente na obra de vários artistas, como Salvador Dalí, ligada a uma visão lírica da "Mulher Louca". A histeria estava em voga em Paris desde as últimas décadas do século XIX, quando Freud fez estágio com Charcot. É nessa medida que o artista daria forma em sua obra às suas fantasias narcísicas e eróticas. As forças pulsionais em jogo na criação artística são as mesmas que levam à psiconeurose, afirma Freud.

Entre o Surrealismo e a Psicanálise há um hiato, uma impossibilidade de conjunção, um desencontro que é emblemático das relações entre psicanálise e arte em geral. Mas esse encontro manco, justamente por fracassar, deixa nos dois campos profundas marcas incitando-os a transformações e influências mútuas. Assim, a psicanálise marcou a arte do século XX e provavelmente sua influência, ainda que seja desencontrada, continuou a se fazer sentir.

É, pois, com Jacques Lacan, o maior teórico do descentramento, que essa influência se tornará notória.

A tese de doutorado de Lacan traz um diálogo com as ideias de Salvador Dalí e obtém maior reconhecimento no meio artístico do que na psiquiatria e na psicanálise.

Elisabeth Roudinesco aponta a influência do Surrealismo em Lacan, e chega a considerar a teoria lacaniana como uma síntese das três grandes tendências: freudismo, psiquiatria e Surrealismo. O ensino de Lacan busca esvaziar o predomínio do imaginário na arte surrealista. Ele marca o desenvolvimento das relações do homem com a ordem simbólica. Com o apoio da linguística de Ferdinand de Saussure e da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, ele defende a primazia do significante e o domínio do simbólico.

A influência de Dalí é sensível, pois na tese de doutorado de Lacan as obras artísticas convocam e põem em questão a própria concepção psicanalítica do funcionamento psíquico.

A arte traduz a ideia de um gozo supostamente absoluto, carrega consigo a falsa ideia de uma completude efêmera e satisfeita. Lacan, ao se deparar com a arte, viu-se lançado na busca de uma transmissibilidade do impossível. Segundo Marco Antonio Coutinho, em toda criação artística resta algo irredutível ao saber. Lacan imprimiu à conexão Psicanálise X Arte um valor primordial. Freud afirma que os poetas sabem coisas cuja existência nossa sabedoria acadêmica fica a dever. Os artistas sempre precedem os psicanalistas, pois a arte produz efeitos frutíferos para a psicanálise. Segundo Max Ernst, a arte nada tem a ver com o gosto. A arte não está lá para ser degustada. E Marcel Duchamp, em sua confissão - "Forcei-me a mim próprio a contradizer-me para evitar conformar-me com meu próprio gosto" -, confirma essa ideia.

"A arte começa onde o que não pode ser dito, pode ser mostrado" [...] e inclusive exibido. (MILLER, 1986- 1987 / 1998, b21).

Para Lacan, a arte se constrói em torno do vazio, de um gozo impossível. A hiância constituinte do homem. A coisa. Se por um lado existe uma fuga natural do vazio que aterroriza, ao mesmo tempo o sujeito o circunscreve, velando-o, e produz uma borda significante no real. No Seminário 9, sobre a identificação, Lacan pergunta: "O que é um quadro?" O que é o olhar para apontar o valor da satisfação escópica subverteu o sentido da função de contemplação. Agora, o suspeito é olhado pela obra de arte, o que provoca um efeito perturbador. Esse efeito revela que o inconsciente comanda a função da letra enquanto linguagem do ser falante. Onde a inscrição da letra na escritura da vida nos faz crer que o artista sempre sabe sem que os psicanalistas o ensinem. O uso do inconsciente é que vale a prática da letra. Quando o artista desdobra a prática da letra de forma séria, depara-se com o que o próprio psicanalista encontra no saber textual que se constitui no discurso do analisando.

Assim, como método surrealista, a escrita automática implica na escrita daquilo que o inconsciente traz à tona em sua espontaneidade e, abolindo toda a forma de censura, supõe o advento de um discurso autêntico, livre do controle consciente (JORGE, 1988, p.130.)

Há que se considerar a possibilidade de que, em determinados casos, a produção do artista, ainda que represente uma tentativa de dar contorno ao que excede, possa ser tão invasiva e devastadora quanto o são alguns sintomas e certas formações delirantes. A obra de arte é quase sempre referência inacabada. O artista não dá por terminado seu trabalho. Trata-se de um objeto que se dá a ver sem promessas.

Lacan trabalha o conceito de sublimação e arte e afirma que o objeto primordial da pulsão é, desde sempre, perdido, sempre buscado, mas nunca reencontrado como tal. A sublimação consistiria, então, na operação significante pelo qual um objeto será elevado "à dignidade da coisa".

Curiosamente, em 1931, Dalí circunscrevia o lugar de um objeto retirado do campo visual. Marcel Duchamp, representante do dadaísmo, em 1913, nos traz a ideia de que um urinol, objeto industrializado e um tanto abjeto, é elevado à condição de obra de arte. Quando Lacan enuncia sua fórmula de sublimação em 1960, o ready-made de Duchamp começa a ser retomado por outros artistas. A produção artística a partir de 1960 privilegiará o gesto do artista, a ação capaz de substituir a arte institucionalizada pela ideia da arte mesclada à própria vida. Lacan e sua psicanálise tentariam prosseguir o íntimo diálogo com as produções artísticas, dando vazão àquilo que ele nomeia êxtimo, o que de mais próprio ao sujeito só pode apresentar-se fora dele na cultura.

Através da noção da escrita automática, regida pelo chamado automatismo psíquico, os surrealistas se aproximavam bastante da noção do inconsciente estruturado como uma linguagem em Lacan. A palavra que cria o automatismo psíquico diz mais a respeito do sujeito do que seu próprio discurso consciente. Podemos entender esse pensamento, que existe ao mesmo tempo fora e dentro do sujeito, com o conceito de Outro em Lacan. Esses recortes históricos vão construindo e in-fluenciando mutuamente os conceitos e práticas, principalmente no que diz respeito à arte e à psicanálise. Por não tocar o sujeito um plano totalmente simbolizado e consciente da constituição do sujeito psíquico, tanto o surrealista quanto os psicanalistas aventuraram-se na elaboração de metáforas que rompessem paradigmas na ciência e na arte.

O ponto de encontro entre arte e psicanálise parte do princípio de que, valendo-se de matéria prima nada convencional para a época, dos sonhos, dos fluxos de consciência, da loucura, da escrita automática, o surrealismo propôs uma arte psicológica vinda do inconsciente e despiu os objetos de sua significância normal.

Artistas surrealistas como Salvador Dalí, Paul Éluard, André Breton, Luis Bunuel, recuperam através de suas obras o que foi recalcado e assim se aproximam do método de associação livre proposto por Freud. A associação livre não é um método de exame, mas um instrumento da terapêutica. A associação livre de Freud deixava ao paciente a responsabilidade das associações.

Tristan Tzara, artista romeno, fundador do dadaísmo, escreveu o Manifesto investindo contra as formas assépticas dos puristas. A tonalidade maior do movimento era negar o bom senso, a lógica cartesiana. Para ele, arte casada com a lógica viveria um incesto. A sexualidade e o erótico combinam-se como forma de combate à visão racionalista da modernidade. A arte possui uma linguagem da alma e uma semântica específica na tentativa de traçar uma similaridade estrutural entre os sistemas de arte e linguagem e deixar claro que a arte difere da linguagem. Se Freud não mostrou interesse pelo movimento surrealista, Lacan conviveu com o grupo, participando de algumas de suas ideias.

Dalí e Lacan eram amigos. Freud colecionava objetos de arte como o modelo em gesso "Gradiva". Participavam da coleção de Lacan pinturas de Masson, jogo lúgubre de Dalí.

Para Lacan, a criação é a superação do patológico. Se, para a psicanálise, a verdade é tão somente semidita, o desejo surrealista é o de totalizar, ou seja, preencher as lacunas. O surrealismo interroga Lacan ao acreditar ser a arte verdadeira vazio criador, limite do insondável na alma humana. Ao se deparar com o nada (não ser), o artista cria o belo, possibilidade do vir-a-ser. Aquilo que é impossível de se dizer em palavras, não é impossível de ser expresso na arte (Lacan).

É através da arte que o sujeito se depara com sua própria tragédia, é na perda de garantias que ele pode fazer algo. Abrem-se possibilidades outras e o sujeito pode arriscar-se a ir além do falo, ou do ideal de completude. A arte é uma expressão total e liberadora e o grande campo de experimentação é o próprio corpo. "O artista é aquele que saiu da trincheira e não cedeu quanto a sua marca diferencial" (JORGE FORBES). A repetição na arte é aque la que existe por estar ancorada no real. A repetição do artista, diferente da do neurótico, tem sempre novidade e surpre sa. Entre os artistas que mais se destacaram em 1920, lembrarmos o escultor italiano Alberto Giacometti, o dramaturgo francês Antonin Artaud, os pintores Salvador Dalí, Juan Miró, o belga René Magritte, o alemão Max Ernst e o cineasta espanhol Luis Bunuel.

Foi através da pintura que as ideias dos surrealistas foram mais bem expressas. No Brasil, artistas como Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Cícero Dias retratam esse movimento. As origens do surrealismo devem ser buscadas no dadaísmo, na pintura metafísica de Giorgio de Chirico.

Goethe dá a sua posição ao afirmar: "Aquele que tem ciência e arte tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião". E inegável que a arte e a literatura desempenhavam um papel essencial na construção do pensamento lacaniano. Lacan manteve um diálogo e uma explícita colaboração com o movimento surrealista. A recusa do Objetivismo e do Realismo científico, tanto por parte de Lacan quanto do surrealista, nos leva a pensar que a literatura, a arte e a poesia são as formas de discurso mais adequadas à apreensão e à expressão do real da subjetividade. Os artistas e os poetas se assumem como sujeito. O pensamento, mesmo se vem de fora (do outro), não permanece como palavra do outro. Existe um caminho de exploração de um inconsciente singular, mas também a possibilidade de novas formas de enunciação artística e poética.

 

3. Conclusão

Dialogando com a arte, Lacan intermedeia o falo como sendo um significante do desejo, ou seja, todos os desejos são sexuais. Falo imaginário, objeto desejado pela mãe, com a qual a criança se identifica. É o que separa o mundo da sexualidade, sempre insatisfeita, do mundo do gozo supostamente absoluto.

Para Freud, sublimação e arte (1905) são um tipo particular de atividade humana, criação literária, artística, intelectual. Isso não tem nenhuma relação aparente com a sexualidade, mas extrai sua força da pulsão sexual, na medida em que se desloca de alvo (Nasio).

Os artistas fazem mitologias, não objetos, traços héteros entre saber e gozo, entre terra e mar, entre existência e nuvens.

Quando a subjetividade fica paralisada em meio a um conflito psíquico, o artista tem a arte para restabelecer com sua criatividade seus laços com o mundo.

Para o artista há sempre algo de uma ausência que o inquieta.

A obra nunca está pronta. Mesmo assim, ele a põe à venda. Vende a sua inquietude, o seu vazio, o seu falta-a-ser.

Lacan postula a ideia de que na literatura nos deparamos com a escrita, ou seja, a possibilidade de se instituir, isto é, de fazer com que algo do não simbólico possa desembocar no simbólico; sendo assim, o mecanismo de que dispõe o inconsciente para se revelar é a escrita.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
Rua Francisco Deslandes, 10078/702 - Anchieta
30310-530 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3225-1363
E-mail: jamynade@yahoo.com.br

RECEBIDO EM: 10/02/2011
APROVADO EM: 11/04/2011

 

 

Sobre a Autora

Jamily Nacur Rezende
Graduada em Odontologia pela UFMG e em Psicologia pela Faculdade Newton Paiva

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