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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.62 Belo Horizonte Sept. 2011

 

O supereu e suas nuances

 

The superego and its shades, from Freud to Lacan

 

 

Breno Ferreira Pena

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trabalhar com as diversidades, as diferenças e as semelhanças do supereu na obra de Freud e no ensino de Lacan foi o caminho escolhido para defender a ideia de que, apesar de eles pensarem o supereu de maneira distinta, suas formulações não podem ser consideradas como opostas, como sugerem alguns de seus comentadores.

Palavras-chave: Supereu, Diferenças, Semelhanças, Interlocuções.


Abstract

This article defends the idea that Freud and Lacan’s formulations presented in their works cannot be considered as opposite ideas, as suggest some commentators of them. In spite of it, the two authors have different consi-derations on the concept of superego. To work with the superego‘s diversities, with the differences and the similarities in Freud’s works and in Lacan’s transmission was the chosen way of defending this idea.

Keywords: Superego, Differences, Simila-rities, Interlocutions.


 

 

O supereu é um tema complexo e traz grandes dificuldades para quem tenta compreendê-lo sob a ótica de um conceito psicanalítico fechado. Seus paradoxos e mistérios podem levar ao risco de se perder boa parte de sua riqueza teórica e clínica, na tentativa de dar conta dele em poucas páginas, com a precisão discriminativa que ele exige. Neste artigo, não se pretende, portanto, esgotar as diversas dificuldades que envolvem o supereu, mas, ao contrário, explorá-las na tentativa de desconstruir esta ideia de um antagonismo teórico entre Freud e Lacan diante deste tema, como indicam alguns psicanalistas.

A partir desta concepção, o supereu em Freud se reduziria a um proibidor da satisfação pulsional, uma instância que apenas impõe limites ao gozo, e que em hipótese alguma pode ser confundido com o supereu em Lacan, neste sim um ordenador de gozo: “O supereu lacaniano não pode ser confundido com o freudiano. Seu imperativo não é o de obedecer, mas o de gozar, e o gozo é justamente o que o supereu freudiano proíbe” (BRAUNSTEIN, 2007, p.327).

Sem negar essa oposição teórico/prática entre os dois autores, parece ser possível também questioná-la e rearticulá-la, pois como se pretende demonstrar, o supereu formulado por Lacan é uma releitura refinada do supereu que se encontra no texto freudiano, e como conse-quência disso, pensar o supereu em Freud como pura proibição de gozo é reduzir a complexidade que envolve o tema. Soler também chama atenção para um antagonismo radical entre Freud e Lacan no que se refere ao supereu, entretanto, a autora não deixa de frisar que esta oposição pode ser apenas aparente:

Nesta questão dos fenômenos paradoxais do supereu, creio que é preciso articular as teses freudianas com as de Lacan, teses que se opõem de forma manifesta, posto que se dá uma fórmula a cada um. Freud diz ‘o supereu proíbe o gozo’ – aqui é categórico – e Lacan diz ‘o supereu ordena o gozo’. Não pode ser mais antagônico! É bastante surpreendente poder dizer que uma racionalização de uma mesma experiência possa produzir duas teses aparentemente tão opostas” (SOLER, 2000-2001, p.98 – tradução nossa).

Localizar o supereu em Freud e Lacan e, posteriormente, promover uma interlo-cução entre os dois autores foi o percurso traçado para se demonstrar que Lacan, apesar de todos os seus avanços, nunca deixou de se apoiar no texto freudiano.

 

O supereu freudiano

Os prenúncios do supereu podem ser buscados desde o início da obra de Freud, como ressalta Laender (2005), mas sua formalização se deu pela primeira vez em O Ego e o Id de 1923, a partir da segunda tópica, que divide o aparelho psíquico em: isso, eu e supereu. Freud, anteriormente, já havia feito uma primeira tópica com uma divisão do aparelho psíquico em consciente, pré-consciente e inconsciente. Mas com a descoberta da pulsão de morte no texto Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920/1996), ele percebe que esta divisão, da primeira tópica, não dava conta da complexidade do aparelho psíquico que exige um mais além do princípio de prazer. Então, cria a segunda tópica, já contemplando o movimento da pulsão de morte no aparelho psíquico.

Freud, portanto, já havia notado que com a ação da pulsão de morte o aparelho psíquico produzia o prazer no desprazer e concebe, assim, o supereu como algo que proíbe e impõe limites para o sujeito de forma severa e conflituosa. No entanto, mesmo criando esta instância, nunca foi tarefa fácil para Freud caracterizá-la, pois o supereu se formaria, em sua concepção, em uma dupla vertente que deve ser levada em conta para sistematizar seu funcionamento no psiquismo. Esta concepção que propõe uma dupla origem para o supereu vai marcar a posição freudiana frente a este conceito e, além disso, vai dar também um caráter paradoxal ao supereu: “O supereu é herdeiro do isso, mas também é herdeiro do complexo de Édipo. Conclusão paradoxal, cabeça de uma longa série que percorre de ponta a ponta a obra freudiana” (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p.105).

O supereu freudiano, então, ao carregar duas vertentes que se mostram conflituosas e por serem algumas vezes antagônicas, gera paradoxos que dificultam sua compreensão, e demonstra a complexidade que envolve este conceito na psicanálise desde sua criação. Em sua vertente de herdeiro do Édipo, como ressalta Braunstein (2007), Freud traz a ideia de um supereu proibidor que vigia e pune as ações do sujeito. É um supereu regulador dos excessos pulsionais, ao assumir a função parental de autoridade.

Esta vertente do supereu, portanto, se formaria somente após o fim do complexo de Édipo, sendo seu herdeiro. Com a dissolução do complexo de Édipo, a criança se identificaria ao pai, que é posto como ideal porque é esse pai que possui a mãe, objeto de desejo da criança. O pai estabelece a posição de ideal do eu para a criança, e é o supereu que se apropria e exige o cumprimento deste ideal pelo sujeito. Nesta perspectiva, o supereu é um conceito muito próximo ao do ideal do eu, que é esse ideal que os pais transmitem para o sujeito e ao qual ele procura corresponder para tentar conseguir se realizar. Freud, inclusive, usa supereu e ideal do eu como sinônimos, muitas vezes, durante sua obra. Portanto, o supereu, ainda que de forma severa, por suas ligações com o isso, teria uma função de proibir e regular as ações do sujeito que não fossem adequadas ao ideal estabelecido. Em sua vertente de herdeiro do complexo de Édipo, diz Freud:

O superego é para nós o representante de todas as restrições morais, o advogado de um esforço tendente à perfeição – é, em resumo, tudo o que pudemos captar psicologicamente daquilo que é catalogado como o aspecto mais elevado da vida do homem. Como remonta à influência dos pais, educadores, etc., aprendemos mais sobre seu significado se nos voltamos para aqueles que são sua origem” (FREUD, 1933[1932]/1996, p.72).

Freud, no entanto, traz também uma outra vertente para o supereu ao defini-lo como representante do isso, a parte mais obscura do inconsciente, onde se encontra a energia pulsional. Para Freud, tudo o que há no isso são apenas “Catexias instintuais que procuram a descarga” (FREUD, 1933[1932]/1996, p.79). Assim, o isso pertence ao campo puramente pulsional, que se faz presente no psiquismo do sujeito desde o início de sua constituição. Portanto, esta ligação do supereu com o isso diz da pulsão, mas principalmente da ligação da pulsão de morte com o supereu, o que explica sua severidade ao julgar o sujeito. Freud, inclusive, nunca se furtou a enfatizar o excesso pulsional exigido pelo supereu, o que o levou a ressaltar esta instância como decisiva no processo melancólico.

Esta relação do supereu com o isso, portanto, é essencial e sempre foi traçada por Freud. Em sua obra O Ego e o Id (1923/1996), por exemplo, afirma que o supereu é o representante do isso e que suas origens devem ser buscadas na primeira identificação. Mas, Freud diferencia esta identificação do supereu das posteriores por ser direta e imediata e por se efetuar antes que qualquer investimento de objeto. Freud ressalta, ainda, que se trata da mais importante identificação, uma identificação ao pai de sua própria pré-história pessoal. Tal fato demonstra que Freud já vislumbrava um momento para o supereu, anterior ao Édipo, por suas ligações primitivas com o isso. Entretanto, fica difícil entender esta proposição como o momento da fundação do supereu no sujeito, pois para Freud o supereu até pode ter uma ligação primeira com o isso, onde encontra sua força pulsional, mas se formaria apenas em uma dupla origem:

O superego deve sua posição especial no ego, ou em relação ao ego, a um fator que deve ser considerado sob dois aspectos: por um lado, ele foi a primeira identificação, uma identificação que se efetuou enquanto o ego ainda era fraco; por outro, é o herdeiro do complexo de Édipo e, assim, introduziu os objetos mais significativos no ego” (FREUD,1923/1996, p.61).

Deve-se, portanto, delimitar o supereu nessa dupla perspectiva para marcar a forma com que Freud concebe e desenvolve o tema. Por ter uma dupla origem, entretanto, o supereu em Freud gera um paradoxo entre exigir e regular a satisfação pulsional e talvez esteja aí a maior dificuldade em entendê-lo e trabalhá-lo na obra freudiana.

 

O supereu lacaniano

Lacan, como se conhece, chegou à psicanálise na trilha do supereu em decorrência do caso Aimée, uma paranoia de autopunição, que investigou em sua tese de doutorado e onde recorreu aos textos freudianos procurando outras respostas teóricas possíveis para este caso trabalhado por ele. Na década de 1950 iniciou seus Seminários e desde o primeiro (LACAN, 1953-1954/1986) rompeu com a ideia de um supereu proibidor, como herdeiro do complexo de Édipo. Separou, assim, categoricamente o supereu, onde localiza o mal-estar, do ideal do eu, que é de um estatuto completamente diferente e traz, inclusive, euforia: “O supereu é constrangedor e o ideal do eu exaltante” (LACAN, 1953-1954/1986, p.123).

É importante ressaltar, no entanto, que apesar de avançar sobre o entendimento conceitual do supereu, Lacan também encontrou vários impasses ao fazer suas formalizações teóricas sobre o tema. E segundo Gerez-Ambertín, não é possível encontrar uma formulação definitiva para o supereu em Lacan: “A contribuição lacaniana, para além da freudiana, permite uma demarcação acabada do conceito, ainda que isso não nos autorize a afirmar a existência de uma teoria lacaniana consolidada do supereu” (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p.288).

O supereu em Lacan será definido levando-se em conta as formulações que o denominaram enquanto “supereu goza-dor”. Na obra lacaniana, entretanto, é plausível pensar que o supereu é sempre gozador, na medida em que essa instância psíquica, em sua concepção, não teria em nenhum aspecto uma função de interdição e regulação da satisfação pulsional, como propunha Freud ao pensar o supereu em sua vertente de herdeiro do Édipo. Para Lacan, o supereu se dá tão somente pela exigência da satisfação da pulsão como um imperativo de gozo: “[...] a palavra fundamental do supereu, como Lacan entende, é: goza!” (MILLER, 1997, p.169).

Um momento privilegiado, segundo Miller (1986), para se pensar o supereu enquanto real e, portanto, gozador no ensino lacaniano é o Seminário, livro 10. Ao desenvolver a ideia do objeto a disjunto do significante, enquanto voz, Lacan (1962-1963/2005) irá conceber o supereu como uma de suas formas, um objeto de puro gozo, que é incorporado pelo sujeito como som. Ressaltará, inclusive, que o supereu enquanto voz é, das cinco formas de objeto a formalizadas nesse Seminário, a mais original, objeto impensável, que aparece em um tempo primitivo da constituição do sujeito. A voz do supereu formalizada por Lacan enquanto objeto a apresenta-se no real, ou como ele diz, é um “eco no real” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 300). É uma voz que se diferencia da voz significante que se encadeia na e pela linguagem, dentro de uma sonoridade que a modula, sendo neste caso apenas um puro som desvinculado de qualquer fonetização.

Pensada dessa maneira, segundo Lacan (1962-1963/2005), é uma voz que funciona como imperativo e que, assim, exige obediência ou convicção. Aqui, é possível interrogar e talvez até sugerir que Lacan se refere à neurose e à psicose ao mencionar obediência ou convicção, em uma relação de exclusão. Parece razoável conceber a obediência como algo da neurose, de quem está submetido à lei e pode obedecê-la ou não, mas tendo invariavelmente que se haver com ela, enquanto a convicção seria própria da certeza psicó-tica. Trata-se, portanto, do objeto voz enquanto supereu, que é literalmente incorporado por ser um objeto que não pode ser assimilado pelo sujeito e assim se volta contra ele de forma mortífera. É bom ressaltar, assim, que esse objeto a é causa de tormentos, não de desejos. O objeto a causa de desejo é de outra ordem e se dá com a dissolução do complexo de Édipo na neurose, que tem como consequência a extração, e não a incorporação, do objeto a do campo do Outro.

Outro momento importante para entender a formalização do supereu no ensino lacaniano é o Seminário, livro 20. Nele, Lacan retoma mais uma vez a questão do supereu gozador, perguntando o que é o gozo. Responde que é uma instância negativa, que não serve para nada. Ressalta também que este gozo sem serventia está diretamente relacionado ao supereu que o exige de maneira exclusiva e insaciável no psiquismo: “nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo de gozo – Goza!” (LACAN, 1972-1973/1985, p.11).

Nesse mesmo Seminário Lacan também destaca que o supereu é correlato da castração. Mas como ressalta Gerez-Ambertín (2003), ser correlato da castração faz do supereu um resíduo mortífero que investe contra o próprio sujeito independentemente de ele passar ou não pelo Édipo, pois o supereu é correlato da castração estrutural. É, portanto, com a castração estrutural, a castração da própria linguagem que não da conta de dizer tudo, que o supereu se faz como o gozo que escapa à simbolização por ter uma primazia do real.

No mesmo período, inclusive, Lacan retoma a ideia de um supereu voraz, não domesticado pela linguagem, mas surgindo da própria falha estrutural desta, do que ela não consegue recobrir, em seu texto Televisão: “a gulodice pela qual Freud denotou o supereu é estrutural – não é um efeito da civilização (...)” (LACAN, 1973/2003, p.528). Como lembra Ferrari (2005), ao pensarmos que a estrutura que menciona Lacan é a da linguagem, podemos concluir que a matriz do supereu já está posta desde a existência da voz do Outro primordial, e que os psicóticos que não passam pelo Édipo dão disso a prova cabal.

Lacan desvincula o supereu da proposta freudiana de herdeiro do complexo de Édipo, situando-o, não mais como moral, o que propunha Freud, mas como amoral, um agente da pulsão de morte que impõe somente uma ordem: goze! Assim, para o supereu tanto faz se o sujeito goza obedecendo à lei ou transgredindo-a. E, além disso, trata-se de um imperativo de gozo que jamais será cumprido, porque sempre, pela lógica superegoica, é possível exigir um pouco mais de empenho ao sujeito, goze o que ele gozar. Temos, portanto, uma gula pulsional insaciável e amoral como marca registrada do supereu em Lacan.

 

Uma interlocução possível

De início, é interessante notar que Freud, ao pontuar o lado pulsional do supereu, suas ligações com o isso e, em especial, com a pulsão de morte, faz uma aproximação à ideia desenvolvida por Lacan de um supereu gozador e voraz. Em ambos, portanto, não há como negar, existem formulações teóricas que remetem a algo no sujeito marcado pela ação de um supereu implacável e aniquilador, que exige o gozo a qualquer custo: “Freud e Lacan formulam o supereu como resíduo aniquilador do desdobramento do sujeito contra si mesmo” (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p.225).

Não parece prudente, então, pensar que o supereu freudiano possa ser concebido apenas como uma pura proibição de gozo, ao funcionar como uma espécie de representante da autoridade parental. Em sua vertente de representante do isso, Freud ressalta um supereu que possui um lado sempre nefasto e sem perdão, que, na desfusão pulsional, remete ao intratável do sujeito frente a essa instância. Além disso, Freud (1926[1925]/1996) também formula o supereu como a resistência mais obscura, que se impõe com o mais alto rigor frente ao tratamento analítico, o que demonstra que o autor não ignorava a satisfação pulsional através da resistência e do prazer no des-prazer imposto e exigido pelo supereu.

O supereu como voz que vem como imperativo e tem ligação com os primeiros objetos que se apresentam à criança é outro ponto de acordo entre Freud (1923/1996) e Lacan (1962-1963/2005). Porém, como lembra Soler (2000-2001), em Freud essa voz é herdada do pai, enquanto em Lacan, apesar de ser transmitida pelo Outro original, não é de todo herdada do pai. Assim, é ao pensar no pai e em seus entrelaces com o supereu que as divergências teóricas entre Freud e Lacan aparecem e até se acentuam. Freud (1923/1996), então, liga o supereu em sua vertente de representante do isso a uma identificação ao pai da pré-história pessoal, e Lacan (1962-1963/2005) a uma voz primordial que vem do Outro, não por identificação, mas por incorporação dessa voz. Além disso, em Freud, a figura do pai presente no complexo de Édipo está diretamente ligada ao supereu pelo viés do ideal do eu, o que definitivamente não se encontra no ensino lacaniano.

Para Freud (1923/1996), o supereu tem uma dupla origem; então, apesar de ser representante do isso, seria formado apenas no final do complexo de Édipo, pois, com a interdição paterna, o pai é posto pela criança no lugar do ideal do eu, e é esse ideal que representa os valores morais herdados pelo supereu e que serão exigidos do sujeito. Lacan (1953-1954/1986), contudo, desde seu primeiro Seminário diferencia e separa o supereu do ideal do eu. Assim, ele pôde afirmar que o que a criança herda do pai, enquanto supereu, são apenas suas faltas: “É o discurso do meu pai, por exemplo, na medida em que meu pai cometeu faltas as quais estou absolutamente condenado a reproduzir – é o que se denomina super-ego” (LACAN, 1954-1955/1985, p.118).

O ideal do eu, entretanto, como lembra Soler, também pode ser extremamente doloroso e capaz de gerar no sujeito um grande incômodo psíquico:

O ideal do eu também pode ser esmagador, pode submergir dando ao sujeito o sentimento da imensa diferença que há entre o que ele queria ser, ou seja, seus ideais e logo o que percebe apesar de tudo, quando tem um pouco de sensatez, de como é” (SOLER, 2000-2001, p.100. Tradução nossa).

Talvez essa severidade que, de certa maneira, também está presente no ideal do eu possa ter influenciado Freud a tentar uni-lo ao supereu. Freud, assim, apesar de não negar que o supereu exige a satisfação pulsional a qualquer custo – através daquilo que Lacan, posteriormente, caracterizou como gozo –, também dá a ele caráter de interdição e limitação dessa satisfação pulsional, colocando-o como a instância que assumiria a função paterna: “(...) o superego assume o lugar da instância parental e observa, dirige e ameaça o ego, exatamente da mesma forma como anteriormente os pais faziam com a criança” (FREUD, 1933[1932]/1996, p.68).

É a partir dessa concepção que Freud (1923/1996) vincula o supereu ao ideal do eu e à moralidade, caracterizando-o em alguns casos até mesmo como hipermoral. Segundo Soler (2000-2001), Freud chega mesmo a unir o supereu à consciência moral. Já para Lacan, ideal do eu e supereu são conceitos disjuntos, o que permite a Miller (1997) situar o supereu lacaniano apenas no campo do gozo e frisar que essa instância, em Lacan, é amoral e nunca pode ser concebida como interdição.

As diferenças teóricas entre Freud e Lacan, com relação ao supereu, são evidentes, todavia, parece precipitado afirmar que são concepções opostas. Em primeiro lugar porque as formulações de Freud sobre o supereu representante do isso não desconsideram uma exigência que ordene o gozo. Além disso, mesmo que o sujeito se submeta às ordens do supereu freudiano proibidor, em sua vertente de herdeiro do complexo de Édipo, isso não pode ser considerado a priori como uma pura proibição da satisfação pulsional, na medida em que a submissão às leis superegoicas também pode ser extremamente carregada de gozo, como nos lembram os obsessivos.

Com tudo isso, não se pretende negar os avanços teóricos e clínicos que Lacan conseguiu ao formular suas concepções sobre o supereu. A proposta deste artigo é apenas questionar esta ideia de um antagonismo teórico onde o supereu freudiano proíbe o gozo e o lacaniano o incita, pois as formulações do supereu em Lacan encontram suas bases no texto de Freud.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Ceará, 1709/1003 – Funcionários
30150-311 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: brenopena@hotmail.com

RECEBIDO EM: 10/06/2011
APROVADO EM: 17/06/2011

 

 

Sobre o Autor

Breno Ferreira Pena
Psicólogo. Psicanalista. Mestre em Psicologia PUC/MG. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.