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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.33 no.62 Belo Horizonte Sept. 2011

 

SUBLIMA-DOR — Considerações sobre dor e sublimação nos limites do pulsional

 

SUBLIMA-DOR — considerations about pain and sublimation within the limits of the drive

 

 

Priscila de Lima Catão

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A sublimação e a dor atravessam inevitavelmente os importantes momentos da teoria das pulsões, sendo possível a articulação e o atravessamento destes conceitos, com particular ênfase na segunda tópica, que introduz a pulsão de morte e instaura uma nova dinâmica pulsional.

Palavras-chave: Sublimação, Dor, Pulsão, Limite.


Abstract

Sublimation and pain inevitably go through the important moments of the theory of drives, and this allows a possible linkage and crossing of these concepts, with particular emphasis on the second topic, which introduces the death drive and creates a new dynamic drive.

Keywords: Sublimation, Pain, Drive, Limit.


 

 

A sublimação pode ser definida como uma saída pulsional dotada de uma nobreza que lhe é peculiar e que remete a um ato de realização sublime, conforme o próprio termo indica. Se, num primeiro momento, as elevadas realizações culturais do humano foram atribuídas ao sublimar, modificando-se a finalidade sexual da pulsão para uma função social destinada ao bem-estar e ao equilíbrio, em outro tempo essa assertiva se confronta com o fato de que esta “saída” pode ser uma via perigosa para o sujeito. Tal percurso teórico de particular relevância possui íntima relação com a introdução do conceito de pulsão de morte, no que se configura a segunda teoria das pulsões. Enquanto, antes, a primazia do princípio do prazer, em contraponto com o princípio da realidade, era suficiente para explicar o funcionamento do aparelho psíquico, a observação clínica da pulsão de morte, presentificada na compulsão à repetição, impele a um rearranjo radical na teoria das pulsões e consequentemente, na teoria psicanalítica.

Assim sendo, a dor como conceito psicanalítico também faz seu tortuoso trajeto ao longo da obra freudiana, onde se apresenta das mais variadas formas, desde sua ligação com a dinâmica do trauma, revelando-se em seu caráter estruturante (fundante) e desestruturante (desorganizador), até ser referenciada como uma “pseudopulsão” (FREUD, 1915, p.51), alojada no isso das pulsões, e expressando seu maior grau de complexidade no masoquismo erógeno.

A abordagem econômica da dor, mais precisamente detalhada em Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1985, p.356-362), expõe paradoxalmente seu aspecto traumático de destruição e de estruturante de construção. Como excesso de excitações que invade os dispositivos protetores, está ligada a uma ruptura, um extravasamento desorganizador, desestruturante da economia psíquica. Ao mesmo tempo, posicionar a experiência de dor em paralelo com a experiência de satisfação sugere que ambas, satisfação e dor, participem do processo inerente à construção do psiquismo. Afinal, “não há Bahnung sem um começo de dor” (DERRIDA apud GARCIA-ROZA, 2004, p.142). Desta forma, a dor é também marca inaugural do aparato psíquico, é inscrição que atua como estímulo pulsional contínuo, sendo inclusive comparável a uma “pseudopulsão” por Freud (1915, p.51). No decurso da teoria psicanalítica, a dor mantém o seu caráter enigmático, e se complexifica no problema econômico do masoquismo. “O mais imperativo de todos os processos” (FREUD, 1895, p.359) se reatualiza como elemento fundante através da existência do masoquismo erógeno primário, constitutivo, e representante por excelência das pulsões amalgamadas, onde não há discriminação entre prazer e desprazer.

A inviabilidade de se pensar na pulsão de morte desvinculada da pulsão de vida instaura uma nova dinâmica, em que a tentativa de conciliação entre as forças pulsionais Eros e Tânatos torna possível a vida. Desta maneira, o indivíduo encontra-se constantemente dividido por essas duas tendências paradoxais que, em fusões e desfusões do movimento pulsante, ofertam elementos de vida e de morte, possíveis de representação ou passíveis de apresentação. A dor parece emergir desse circuito pulsional, entre as pulsões que se unem e se separam sem precisar seus limites. A dor surge, portanto, fazendo-se limite, ora prestando-se à ação silenciosa da pulsão de morte ao extravasar, persistir e insistir, ora enlaçando-se à vida ao tentar conter, bordejar, proteger. Ao mesmo tempo, como servo entre-dois, a dor se faz sem-limite, nos limites imensuráveis do pulsional.

O delicado campo sublimatório compartilha elementos deste traçado da dor. Particularmente difícil de ser definida, a sublimação é sem dúvida um destino pulsional, e, como tal, aproxima-se do que lhe é mais radical e mais primitivo, ou seja, do que é da pulsão. A respeito de sua visão estruturante, a sublimação, em parte, pouco se diferencia do recalque, no que é descrita como uma transformação da meta da pulsão, que passa de sexual para não sexual, e como um desvio dos impulsos sexuais, que são direcionados para fins sociais, estabelecendo a harmonia dos conflitos internos e o equilíbrio entre o indivíduo e a civilização.

Entretanto, embora não haja necessariamente uma exata divisão conceitual, a ótica inaugurada pela nova economia pulsional certamente altera a posição teórica da sublimação. Ela passa a ser revelada em sua face desestruturante, onde a dessexualização, em última análise, acarreta uma desfusão das pulsões e entrelaça o processo sublimatório com a pulsão de morte, que inevitavelmente se impõe e expõe o indivíduo aos perigos da intimidade com as intensidades pulsionais, em posição de afinidade com a angústia e a dor. O ato de sublimar incorre justamente em uma parcela de risco deste desligamento, onde não há garantias de proteção contra as ameaças do potencial agressivo e aniquilador de Tânatos. Parafraseando Carvalho, a sublimação “é uma saída, mas não é o abrigo” (JUHASZ apud CARVALHO, 2006, p.22).

A proximidade com o isso das pulsões coloca a sublimação em íntimo contato com a dor. Desse encontro, o sujeito é lançado num campo de possibilidades e impossibilidades cujo caminho é da ordem da imprevisibilidade e da indeterminação. No enlace e desenlace das pulsões, a pulsão de morte, tal como a dor, é imperativa, enquanto a pulsão de vida é perturbadora deste curso. A sublimação, nesse entre-dois, parece impelir o sujeito a lidar mais diretamente com a pulsão de morte, a trabalhar em torno do vazio, a buscar um rearranjo de sentidos em vias da criação de algo inteiramente novo, somente possível devido a essa aproximação com o inominável.

Em Limites da sublimação na criação literária (2006), Carvalho fala sobre a função da escrita como sublimação na “poética do suicídio” (CARVALHO, 2006, p.22) abordando questões sobre a morte trágica de escritores ocorrida justo no período de intensa produção literária, e constatando a fragilidade do trabalho sublimatório como fonte de transformação, prazer e organização dos conflitos psíquicos. Para além de uma escrita de contenção, o fracasso em torno do impossível de se dizer revelaria os limites da sublimação, que propicia a intimidade com as turbulências do campo pulsional sem necessariamente proteger dos seus efeitos destrutivos.

Entretanto, essa insuficiência perante o irrepresentável não parece tratar-se propriamente de um limite da sublimação, mas sim de um limite que é próprio do simbólico. Embora exista um universo inesgotável de recursos significantes, há um ponto de inassimilável, que faz menção à pulsão de morte, a esse silêncio de real. Já a sublimação, tal como a dor, parece ser um sem-limite que permeia as pulsões amalgamadas e emerge no trajeto entre a dor do impossível e a nostalgia de um enodamento simbólico possível. Desse caminho sem garantias, a ineficiência do simbólico ante a proximidade com o real é o risco que se corre e o preço que se paga – se próximo demais, pagando-se com a “libra de carne” (LACAN, 1997, p.386).

O sublima-dor percorre a trama da ordem pulsional em que o efeito é o da indiscriminação, muitas vezes evidenciado pelo destino psíquico indeterminado, ou mesmo pela indistinção entre a obra e o criador, ou seja, entre o objeto-efeito da sublimação e aquele que sublima. Tal caminho incalculável vem marcar, sobretudo, o paradoxo dos elementos, que carregam as diversas possibilidades de representações ao passo que invariavelmente se dirigem para o irrepresentável. Esta observação é facilmente associável às formas culturais do belo que visam manter um distanciamento do potencial destrutivo fundamental do humano. O belo que demarca um limite ante o horror não pode senão configurar-se como um anteparo, uma tentativa de representação que recobre o inomeável. Se há beleza no objeto-efeito da sublimação, ela reside nesse fascínio que, ao que captura, também aponta para um limite. “O belo une e separa as pulsões de vida e as pulsões de morte deixando entrever esse amálgama entre Eros e Tânatos” (CRUXÊN, 2004, p.58).

O recurso do belo apreensível na escrita com função de sublimação parece representar bem o enlace sublima-dor. Para concluir, o texto a seguir traz um jogo simbólico que vem abrigar a dor e a sublimação através das palavras-limite, verdadeiros “véus que recobrem o sem-face da pulsão de morte” (CRUXÊN, 2004, p.59). Em função dos desejos transgressivos das palavras, o texto passa a ter uma significação outra, e o rearranjo dos sentidos vem revelar, em uma segunda leitura, a obscuridade oculta em toda escrita.

 

Revolução das Letras

Papel quis ser desencontro, viveiro transformou-se em silêncio. Abismo fez as vezes da luz, uma vez que vez cismou em ser morte. Ruas transfiguraram-se em letras, casas optaram por ser restos. Portões viraram buracos, e cores se firmaram como vazios. Certo decidiu ser cego. Escrita insistiu em ser dor. Abrigado se fez perdido. Caminho tomou o lugar da beleza. Nada substituiu o sonho. Fiel acabou sendo cruel. O amor fugiu e foi ser tempo. Enciumado, o tempo converteu-se em amor.

Assim sendo...

Era uma vez...
Um viveiro de palavras
Um distraído papel e...

Luz!

Por entre as ruas
Casas se espalham
Abrem seus portões
Criam cores infindas
Revelam o ponto certo
De um espaço abrigado
Na beleza entre o dito
E o que há de ser dito.

Nesse espaço
Surge ela.
É a escrita que vem
Essa escrita que não cala
Que gravita o sonho
No fiel tempo inexato do amor.

 

Bibliografia

CARVALHO, Ana Cecília. Limites da sublimação na criação literária. In Estudos de Psicanálise, n.29, set./2006.         [ Links ]

CASTIEL, Sissi Vigil. Sublimação: clínica e metapsicologia. Rio de Janeiro: Escuta, 2007.         [ Links ]

CRUXÊN, Orlando. A sublimação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Coleção Psicanálise passo-a-passo, n 51.         [ Links ]

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo, Perspectiva citado por GARCIA-ROZA in Introdução à metapsicologia freudiana, v.I: sobre as afasias (1891); o projeto de 1895. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.         [ Links ]

DUTRA, Vera Lucia. O conceito de sublimação à luz de uma perspectiva da feminilidade. In: BIRMAN, Joel (Org.). Feminilidades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002.         [ Links ]

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LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Oligisto, 411/202 – Santa Tereza
31010-430 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: cataopriscila@gmail.com

RECEBIDO EM: 21/05/2011
APROVADO EM: 14/07/2011

 

 

Sobre a Autora

Priscila de Lima Catão
Médica. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.