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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.63 Belo Horizonte June 2012

 

O inconsciente seria politicamente incorreto?1

 

Would the unconscious be politically incorrect?

 

 

Caterina Koltai

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo traz uma longa e cuidadosa reflexão, a partir de experiência teórico-clínica da autora, sobre a inserção da psicanálise na atualidade. Partindo de Freud, e retomando o "retorno a Freud" operado por Lacan, a autora propõe uma leitura do mal-estar na contemporaneidade e das tentativas – médicas, psicofarmacológicas, genéticas, neurociências... – sempre frustradas para alcançar a "felicidade": há um mal-estar estrutural, e não conjuntural, na civilização que diz respeito àquilo que o sujeito vive como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o outro e com o mundo, vivido como uma dificuldade de ser. A autora mostra, também, como o discurso da ciência, entendido como laço social que pretende que todos sejam iguais a qualquer custo, reforça os processos de segregação, pois quanto mais se exige a igualdade do outro, mais ele insiste em se manifestar como totalmente diferente do que se esperava.

Palavras-chave: Inconsciente, Politicamente correto, Estrangeiro, Segregação.


Abstract

The text provides a long and careful reflexion, based upon the theoretical and clinical experience of the author, on the insertion of psychoanalysis nowadays. Starting with Freud, and with the "return to Freud" operated by Lacan, the author proposes a understanding of the malaise in contemporary and the attempts – medical, psychopharmacology, genetics, neuroscience ... – always failed to achieve "happiness": the discontentment in culture is structural and not circumstantial, in civilization, which concerns not only the way the subject experiences as suffering but also the impossibility of social bounds with others and the world. The author also shows how the discourse of science, understood as a social bond that pretends everyone to be equal at any cost, reinforces the segregation processes: the more equality to the other is required, the more the subject insists on his, or her, difference.

Keywords: Unconscious, Politically right, Foreigner, Segregation.


 

 

Por que esse título que não é nem meu e que tomei emprestado de um livro publicado na França em 2008, por Isabelle Floc’h e Arlette Pellé2, duas analistas que me eram, até então, totalmente desconhecidas.

Em primeiro lugar porque quando, alguns meses atrás, o Paulo Roberto me pediu que eu definisse o tema de minha palestra, ela me parecia tão longínqua que confesso não ter nem parado para pensar sobre qual poderia ser meu tema, razão pela qual me deixei levar pela aparente irreverência desse título do qual gostei, tanto por sua originalidade quanto por parecer ir na contramão dessa abominação que caracteriza nossos tempos, o “politicamente correto”. Além do que ele me pareceu suficientemente amplo e instigante para, através dele, poder abordar o lugar do sujeito e de seu desejo em nossa sociedade contemporânea que, nas palavras das autoras, gostaria de acabar com o inconsciente e se ver livre desse estraga-prazeres que trai o ideal de controle e prevenção promovidos pelo discurso da ciência, e perante o qual a psicanálise parece cada vez mais apagada e sem seu glamour de antigamente.

Mas como se livrar daquilo que nos escapa? Como acabar com os sonhos que continuamos tendo todas as noites, quer nos lembremos deles ou não, com os lapsos e atos falhos que não cessamos de cometer assim como com sintomas e repetições que nos interrogam? Ou, como dizem as autoras, como acabar de uma vez por todas com nossas zonas obscuras, nossas pulsões, com essa parte de sombra constitutiva do humano?

Pergunta difícil que de certo modo implicaria num retorno sobre toda a história da psicanálise, o que certamente não farei aqui, entre outras razões por não acreditar que seja possível dar uma definição da psicanálise que reúna a diversidade de suas teorizações. Pois dando uma de ingênua, o que é mesmo a psicanálise? Um corpo de conhecimentos? Uma prática e uma teoria? Um saber conquistado pela própria análise? Um percurso de estudo e leituras? Um trabalho levado em comum com outros analistas? Certamente um pouco disso tudo, ou tudo isso ao mesmo tempo, o que de certo modo explica as discordâncias existentes, a ponto de o próprio conceito de inconsciente, cuja complexidade deveria ter continuado a ser interrogada, não ser entendido por todos da mesma forma, a ponto de ter se tornado, segundo Levallois (2007)3 , um objeto de crença e lugar de uma verdade.

Essa é a principal razão pela qual me parece cada vez mais importante manter a porta aberta para a confrontação e o debate que, infelizmente, vêm sendo substituídos por um dogmatismo tanto na teoria quanto na prática. E se vocês convidaram, e acolhem hoje aqui, uma “estrangeira”, suponho que esta seja também uma preocupação de vocês, o que me dá o ensejo de agradecer mais uma vez o convite.

Pretendo me ater aqui a algumas pontuações, a partir daquilo que entendo terem sido as ofertas de Freud na Viena de fim de século, e a de Lacan numa Europa democrática do pós-guerra, para desembocar em algumas reflexões sobre a tarefa que nos incumbe – a de manter viva a psicanálise freudiana em suas funções terapêuticas e civilizadoras, uma vez que a responsabilidade do analista se situa, a meu ver, tanto no nível da clínica quanto no do social, uma vez que nenhum sintoma se forma sem essa implicação social, a condição que diga respeito ao real. Isso posto, é obvio que toda pontuação fala necessariamente do percurso de um autor, e no caso presente do meu.

Falar em psicanálise implica nos referirmos tanto a uma teoria que foi a primeira a postular a natureza sexual do indivíduo quanto a um método, o da cura pela palavra. Para a psicanálise freudiana o indivíduo não pode ser visto como uma mônada, pois, concomitantemente a sua natureza sexual, Freud postulou também sua natureza relacional na medida em que o indivíduo não tem como não manter uma relação vital com os demais humanos desde o início de sua vida e dos quais guardará uma memória inconsciente. Tal fato o torna um ser histórico e depositário da própria historia, o que explica que o tratamento da alma proposto por Freud tenha aberto um novo campo para a apropriação subjetiva.

O tratamento ofertado por Freud, na Viena fim de século, foi o de uma cura pela palavra através de um dispositivo que, ainda que tivesse suas regras, não possuía protocolo. Médico de formação, ele se propôs a curar lá onde a medicina fracassara, sua proposta inicial tendo sido, portanto, a de uma cura. Aos poucos ele foi relativizando sua própria afirmação e acabou fazendo uma distinção entre o chumbo da sugestão direta e o ouro puro da psicanálise. Nada contra, muito pelo contrário, se ela não tivesse se transformado, aos poucos e com o passar do tempo, numa verdadeira armadilha, entendida, por alguns, como recomendação de abandono do lado terapêutico da psicanálise, transformando-a numa busca filosófica ou mística, quando não numa mera viagem interior, e por outros numa questão de seleção, as diferentes escolas se propondo a garantir seus analistas e o ouro da psicanálise pura. Acontece que toda vez que me deparo com os significantes de pureza e seleção sinto frio na espinha, e creio que não é por acaso.

Quanto a mim, continuo pensando que a psicanálise é, e continuará sendo, uma psicoterapia ainda que não necessariamente praticada por médicos, ao mesmo tempo em que ela não se restringe a isso e deve ser entendida, também, como uma tentativa de encontrar uma outra via para o espírito, alargando os limites do pensável autorizado para um indivíduo numa determinada sociedade. Não fosse assim, por que alguém procuraria uma análise, num mundo que oferece tantas outras formas de psicoterapia?

Respondo a minha própria questão afirmando que quando um sujeito se depara com uma irrupção do real, com um sofrimento do qual nem os medicamentos, nem a vida familiar, nem a companhia dos amigos podem dar conta, e se vê obrigado a se deparar com sua vida psíquica, recorre a uma análise para tentar entender a complexidade de sua relação consigo próprio e com o mundo. Ao recorrer a um analista, ele faz a aposta de que ao dizer, falar e interrogar um sofrimento que lhe pertence e o constitui, este poderá ser acolhido. E ainda que ele seja o único juiz de seu percurso subjetivo, cabe ao analista tomar parte ativa nesse processo e tomar para si a responsabilidade de uma abertura para a qual a escuta flutuante e a neutralidade benevolente não me parecem suficientes, na medida em que o analista precisa se deixar afetar por aquilo que ouve, até porque só falamos quando nos sabemos realmente escutados. Como diz Levallois (2007), para que um analisando possa se apropriar de sua história e assumir a responsabilidade por sua vida, deixando aflorar seus pensamentos recalcados, é preciso que o analista aceite se deixar surpreender, uma vez que o caminho que leva a esse objetivo se situa nos antípodas da lógica médica.

Retomando e concordando com Zygouris (2003)4, eu diria que a oferta de Freud foi a de encontrar um sentido para os sintomas, e ao reconhecer tanto as exigências pulsionais do indivíduo quanto as da renúncia pulsional da civilização, sua clínica foi a do excesso pulsional e do conflito, cabendo ao analista a tarefa de auxiliar o sujeito a lidar com ele, de modo a se tornar capaz de sublimar e evitar que o Ego se deixe esmagar pelas exigências do superego.

Com sua oferta, Freud operou um descentramento da ordem do mundo para a realidade psíquica, o que por sua vez implicou num descentramento do ser do mundo para o ser do desejo, colocando a implicação do sujeito com aquilo que lhe acontece, uma vez que enquanto ser histórico e de memória ele é forçado a um perpétuo remanejamento de seu passado, à condição de não darmos ao inconsciente uma significação de instância inacessível e totalitária.

Quanto a Lacan, sua oferta não foi de cura e sim de um novo saber, Silicet, sustentado por novos conceitos. Numa Europa democrática do pós-guerra, num momento em que a Psicologia do Ego reinava soberana e pretendia transformar a clínica psicanalítica numa particularidade da clínica médica e cujo objetivo declarado era o de capacitar o indivíduo a melhor se adaptar à sociedade, o movimento de retorno a Freud, proposto por Lacan, renovou teoria e clínica psicanalíticas, antes de, por sua vez, vir a ser corroído pelo vírus da ideologização que ele foi o primeiro a denunciar.

No que diz respeito à obra lacaniana, quero aqui fazer duas pontuações que me parecem muito importantes. A primeira diz respeito a seu aforismo de que o inconsciente é o social e a segunda à distinção que ele estabeleceu entre necessidade, demanda e desejo. Com seu aforismo ele explicitou ainda mais o que já estava em Freud, ou seja, a recusa da clássica distinção entre individual, singular e coletivo e social, postulando uma transindividualidade primordial, através da qual o sujeito é, por definição, marcado pela História, e não apenas por papai e mamãe. É em todo caso o que leio em Função e Campo da Palavra (1953)5, onde Lacan define o inconsciente como “essa parte do discurso concreto enquanto transindividual que não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (p.260) ou, logo a seguir, onde afirma que “o inconsciente é esse capítulo de minha história que está marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado, mas que a verdade pode ser reencontrada na maioria das vezes, estando inscrita alhures” (p.260).

Quanto à distinção entre necessidade, demanda e desejo, poderia dizer que lá onde Freud privilegiou o conflito e fantasia, ele privilegiou o acontecimento, acontecimento psíquico, o que concordando, novamente, com Zygouris (2003) me permite definir sua clínica como sendo a da falta, do sujeito e do desejo. Ao distinguir principalmente necessidade de desejo, ele chamou nossa atenção para o desejo enquanto motor da atividade humana, definindo-o desejo do Outro. Afirmar que o desejo é desejo do Outro significa que o objeto do desejo não responde a nenhuma necessidade, que ele não é da ordem da natureza e sim da cultura. O desejo permite fazer a ponte entre o coletivo e o singular, de modo que podemos tranquilamente afirmar que assim como a revolução é um acontecimento coletivo, o sonho é um acontecimento psíquico singular. O que me importa salientar aqui é que ambos são provocados pelo desejo, sendo que tanto um quanto o outro são coisas que nos acontecem sem responder a nenhuma necessidade, ainda que a reivindicação da maioria das revoluções seja a satisfação das necessidades.

A satisfação das necessidades e a consequente felicidade é, aliás, uma das questões recorrentes da humanidade que, ao longo de sua evolução, jamais deixou de pensar o mundo e o seu lugar no mundo, imaginando, teorizando e sonhando inúmeras maneiras de melhorar sua humana condição. Infelizmente somos obrigados a constatar que apesar dos progressos da biologia, medicina, genética e neurociências, o sofrimento humano persiste, o que não é de nos surpreender se lembrarmos que Freud já nos alertara para o fato de que há um mal-estar na civilização, que ele é estrutural e não conjuntural, como muitos puderam pensar, e que diz respeito àquilo que o sujeito vive como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o outro e com o mundo, vivido como uma dificuldade de ser. Eis a razão pela qual é impossível conduzir os humanos em direção a uma felicidade coletiva, ainda que eles nunca tenham deixado de sonhar com um mundo de paz e harmonia onde todos vivessem reconciliados com todos e cada qual consigo próprio.

Aqui, mais uma vez, duas pontuações se impõem. A primeira se refere a Freud, que sempre nos alertou para o fato de que barbárie e genocídio são características próprias do humano, de modo que a famosa besta humana de Brecht nada tem a ver com a animalidade e sim com o homem habitado pela pulsão de morte. Para ele, o conflito entre Eros e Thanatos atravessa tanto o processo individual quanto o civilizatório, e não por acaso, no prefácio de Moisés e o Monoteísmo6, um de seus últimos textos, chamou nossa atenção para o pacto firmado entre progresso e barbárie. A segunda se refere a Lacan, o primeiro a fazer uma análise freudiana da herança de Auschwitz, acontecimento maior, individual e coletivo, posterior à metapsicologia freudiana que, segundo Zaltzman (1999)7, marcou o desmoronamento da civilização em sua função de defesa do indivíduo contra o reino da morte, desmoronamento esse que, a partir de então, passou a fazer parte da herança da realidade humana.

Ao tirar as conclusões da subversão do mal-estar operada pelos campos de extermínio, Lacan se deu conta de que o discurso da ciência reforçaria necessariamente a segregação, visto que o desenvolvimento tecnológico só poderia se dar em detrimento do sujeito. Foi essa percepção que lhe permitiu, muito antes dos outros, prever o agravamento dos processos de segregação, afirmando que o nazismo, longe de ser um acidente monstruoso, deveria ser visto como o precursor de um processo desencadeado pelo remanejamento dos grupos pela ciência, que faria com que “nosso futuro de mercados comuns encontrasse seu equilíbrio na extensão cada vez dura dos processos de segregação8(LACAN, 1967, p.29).

Triste previsão que vem se confirmando como ele imaginara, justamente devido à própria ciência que, apesar de suas pretensões antirracistas, acaba reforçando o que se propõe a combater. O discurso da ciência, entendido como laço social instaurado pela ciência, ao querer o bem do outro e pretender que ele seja igual a qualquer custo, reforça os processos de segregação, pois quanto mais se exige a igualdade do outro, mais este insiste em se manifestar como totalmente diferente do que se esperava. O terrorismo atual, fundamentado em reivindicações religiosas e identitárias de uma extrema violência, tem em comum com a experiência dos campos o fato de querer abolir a noção de humano fazendo dele outra coisa.

A história vem, portanto, dando razão quanto a isso às previsões lacanianas, corroboradas pelos interessantes estudos de Agamben (1997 e 1999), filósofo italiano discípulo de Foucault, para o qual o campo de extermínio deixou de ser um fato histórico, uma anomalia do passado, para se tornar a matriz escondida do espaço político em que vivemos. Segundo ele, ao introduzir um traço específico, o da impossibilidade de um recurso a uma Lei, que ocuparia o lugar de terceiro, o campo se tornou o fenômeno emblemático de nossa modernidade.

Quanto a nós, não vivemos mais, como Freud, num Império austro-húngaro decadente, no qual ainda prevaleciam família patriarcal, soberania monárquica e culto da tradição, e tampouco, como Lacan, numa França do pós-guerra na qual, como lembra Roudinesco (2011)9, os intelectuais ocupavam um lugar preponderante no seio de um Estado de direito marcado pelo culto de uma República universalista e igualitária. Tudo isso ficou para trás, assim como ficaram para trás as ideologias do progresso que marcaram o século XX, veiculando a louca esperança de livrar o homem de seus sofrimentos por meio de uma nova Providência que repousaria sobre a certeza científica, em constante progresso, e não mais sobre as respostas equívocas ou o silêncio do Outro. Ao prometerem a plena e satisfatória realização do desejo, prometeram o impossível. E como não há como ser feliz agora e já, não é de admirar que o sujeito contemporâneo, ao se dar conta que não tem como obter a plena satisfação que lhe foi prometida, desertou o político e se instalou no ressentimento.

O mundo no qual vivemos nesse início de século XXI, é o de um capitalismo selvagem, globalizado e uniformizado que se caracteriza pelo individualismo e pragmatismo e no qual, quanto mais o discurso científico se exercita no sentido da uniformização, tanto mais o disforme tende a se manifestar, e esse disforme estritamente particular é o gozo, aquilo que faz do outro um outro que só me resta odiar já que põe em xeque minha maneira de gozar que tanto idealizo.

As ideologias do progresso ficaram certamente para trás, ainda que me pergunte se já fizemos o luto dos sonhos de fraternidade que, de certo modo, elas veicularam. Tenho a impressão, concordando com Hassoun (1999)10 , que, na impossibilidade desse luto, vivemos tempos melancólicos, caracterizados pela suspensão do desejo, apatia, crueldade e gozo para com o outro e consigo próprio. Sem ilusões desembocamos no mundo do politicamente correto, em que a ilusão suprema parece ser a ausência de ilusões, a destruição de qualquer ilusão de um mundo melhor, a glorificação da ilusão sem ilusão de um mundo apolítico. No lugar da ilusão nos encontramos num mundo do pseudoconsenso em que todas as coisas são equivalentes, o que nos leva a deslizar imperceptivelmente em direção a esse rochedo do real em toda sua barbárie. Nessa sociedade de pseudoconsenso, que deixou de ser atravessada e perturbada pelo desejo, foi se estabelecendo uma cumplicidade entre um discurso social que faz acreditar que a ordem simbólica não traz em si a inelutável decepção e o sujeito sempre tentado a fazer a economia do trabalho psíquico necessário para assumir a insatisfação fundamental que caracteriza nossa condição humana. Foi assim que talvez, sem nos darmos conta, passamos de um regime dominado pelo desejo para um outro dominado pelo gozo.

A ficção social dominante nos tempos de Freud era a religião, a ponto de Freud se sentir no dever de debater com ela em O Futuro de uma Ilusão11, esperando que um dia ela viesse a ceder seu lugar para a ciência. Cedeu, ainda que, como é bem sabido, o resultado não tenha sido exatamente aquele que, por um momento, Freud imaginou. As religiões monoteístas de modo geral, e a cristã em particular, na medida em que era a religião dominante na época, estabeleceram uma continuidade direta entre suas representações, dogmas, proibições e a subjetividade dos seres humanos, postulando uma culpabilidade originária comum a todos os mortais, que Freud retomou em seu mito do pai da horda no qual os filhos matam o pai e sentem um sentimento de culpa.

Aos poucos, essa subjetividade culpada, produzida pela religião, foi sendo substituída por uma nova subjetividade, fruto de uma nova ficção, a científica, que como tentei mostrar se tornou dominante em nossos dias e acabou libertando o sujeito de sua relação direta com a culpa. O discurso da ciência realizou a passagem de uma subjetividade culpada para uma não culpada, visto que desenvolveu um saber livre de toda e qualquer referência aos valores e interditos. E como lembram as autoras do livro de quem surrupiei o título, é obvio que não é a mesma coisa nascer numa sociedade que clama que somos todos pecadores e noutra que afirma que tudo é possível, assim como é diferente nascer numa sociedade que nos dá um manual de como viver e numa que se contenta em nos dizer que é preciso ter sucesso na vida sem nos dar nenhuma bússola de como fazê-lo.

O indivíduo contemporâneo, libertado dos sistemas de coerção e inscrição nas instâncias dos deveres coletivos, não suporta mais os entraves de suas potencialidades e, como a criança pequena, quer tudo agora e já. Mas isso é impossível, por mais que o discurso da ciência tenha levado a confundir o deslocamento do limite do impossível como sua evacuação. Hoje em dia vivemos de modo geral mais e melhor, perambulando livremente pelo mundo, transformamos nossos corpos e conseguimos até procriar quando a natureza já se opõe a isso, mas isso tem um preço: o de sermos permanentemente vigiados, formatados, avaliados, condicionados e robotizados, além do que convém lembrar que evacuar o limite do impossível muda nossa relação com o espaço e o tempo e, portanto, com nossa finitude.

Na sociedade preventiva em que vivemos, graças ao progresso da ciência, o risco deve ser evitado, e quando isso não é possível, deve ser pelo menos reparado. Quanto ao sujeito, numa situação em que a conjuntura social deixa acreditar na realização plena e satisfatória do desejo e o sofrimento se torna intolerável, a queixa emana de um sofrimento qualificado de ilegítimo, uma vez que decorre daquilo que o sujeito se recusa a assumir, essa decepção fundamental. Afinal em nossos dias o mínimo que se espera de alguém é que ele não fique doente, até porque é preciso sarar rapidamente dessa doença que é a vida.

A ficção científica de nosso tempo supõe que nosso universo mental é governado por leis químicas, biológicas e genéticas, com o objetivo de criar um indivíduo autônomo, autorreferenciado, fora de toda e qualquer filiação ou transferência, para poder avaliá-lo tranquilamente e concomitantemente adestrá-lo. Afasta o ser falante da própria subjetividade, aquela que a religião tinha promovido implicando o sujeito em sua falta. O sujeito da religião e o sujeito da ciência são feitos de massas diferentes visto que lá onde a religião pedia ao sujeito que se debruçasse sobre a própria subjetividade para denunciar seus pecados, do sujeito da ciência se espera que ele se afaste da própria subjetividade para gozar sem entraves, e caso não consiga sempre resta a possibilidade de se transformar em vítima, figura que vem se tornando a metáfora de nossa condição moderna, basta aliás atentar para a crescente valorização das vítimas em nosso mundo, sejam elas de dramas pessoais ou coletivos, presentes ou passados.

Essa posição subjetiva vem se generalizando em nossa contemporaneidade e se caracteriza pelo fato de a vítima viver exclusivamente no registro da demanda, exigindo reparação e ressarcimento pelo objeto perdido, ainda que tal objeto não exista, uma vez que sua demanda é sempre de outra coisa – de amor e reconhecimento – e, portanto, impossível de ser satisfeita. A demanda da vítima é sem limite, ao passo que o desejo encontra seu limite no objeto que o causa.

O que essas duas ficções, a religiosa e a científica, têm em comum é que nenhuma das duas tem interesse em se debruçar sobre os desejos inconscientes ou sintomas do humano, campo reservado ao discurso psicanalítico que nem por isso se propõe a restaurar uma culpabilidade moral, ou apontar para um desejo imoral como faz a religião, e sim de reconhecer esse estranho saber feito de desejos e fantasmas que condiciona nossa culpabilidade e nossa existência, saber esse que, desde Freud, nomeamos inconsciente.

Nesse sentido, ambas as ficções participam do recalque de nossos fantasmas inconscientes, uma vez que a clínica psicanalítica continua nos mostrando todos os dias que a culpabilidade constante gerada pelos desejos inconscientes não é menos exorbitante do que aquela que reinava soberana nos tempos da ficção religiosa, até porque o princípio do tudo é possível, ao contrário daquilo que poderia pensar o leigo, não autoriza ninguém a gozar em paz. Muito pelo contrário, pois se Deus não existe, longe do tudo é permitido afirmado por Dostoievski, nos deparamos, de fato, com o nada é permitido.

E como tudo isso se reflete na nossa clínica? Certamente através dos novos sintomas, assim como em novas demandas, outro quesito com o qual todos parecem concordar. Não há como negar que a depressão virou o sintoma-mor de nosso tempo, a ponto de até os veterinários estarem receitando antidepressivos, acompanhado pelas adicções, anorexias e bulimias, automutilações, etc. Quanto às novas demandas, constato, e não sou a única a fazê-lo, que cada vez mais recebemos demandas de pessoas que perante um luto ou uma separação nos procuram como se fossem ao médico ou ao psiquiatra, como se a tristeza mais banal tivesse se tornado uma patologia que necessitasse uma prescrição, seja de antidepressivos, seja de análise, ou das duas coisas ao mesmo tempo. Elas parecem incapazes de suportar o tempo de cicatrização de uma ferida e anseiam ser curadas imediatamente, e pouco importa se a cura está disponível na farmácia da esquina ou em nossos consultórios. Na dúvida apelam para ambos. Será que os indivíduos se tornaram mais frágeis perante a dor, ou será que é a sociedade que não sabe mais lidar com processos lentos? Não sei responder, apenas constato.

Há os novos sintomas, as novas demandas, mas certamente também uma nova escuta, uma vez que nós, analistas, também somos dependentes das ficções sociais do mundo em que vivemos, porque nunca é demais lembrar que a psicanálise, além de uma terapêutica do sujeito, é também uma teorização da relação que este mantém com o mundo, razão pela qual as transformações sociais interessam à psicanálise tanto em sua teoria quanto em sua prática.

O sujeito contemporâneo tende a atribuir tudo que lhe acontece de ruim ao mundo exterior e se vê emaranhado numa série de determinismos, como se ele não tivesse nada a ver com aquilo que lhe acontece. É frequente que os analisandos venham nos procurar com uma interpretação já pronta, da qual o sujeito está ausente, as causas do mal-estar sendo atribuídas ora aos ascendentes, ora a uma pane na transmissão, ora a um gene. Como salientam Floc’h e Pellé (2008), que as causas sejam imaginárias ou genéticas, familiares ou históricas, elas se situam sempre fora do sujeito, como se o indivíduo contemporâneo sentisse uma necessidade subjetiva de interpretar tudo que lhe acontece a partir de uma origem externa. Tal atitude tem evidentemente a “vantagem” de desresponsabilizar um sujeito, incapaz de qualquer implicação subjetiva.

Em psicanálise o sujeito do inconsciente é justamente aquele que irá se opor àquilo que o determina objetivamente. Para a psicanálise, o que se inscreve para um sujeito e vai contar para ele, dizem as autoras, não é nem pode ser da ordem do determinismo causal, ainda que isso não queira dizer que não existam determinantes uma vez que não resta dúvida que a origem social, a história familiar, ou os traumatismos vividos desempenham uma função. O que a psicanálise contesta é a transformação de um determinante em causa, uma vez que isso pertence ao registro do imaginário.

Afirmei acima que iria me interessar sobre como as ficções sociais de nosso tempo interferem na escuta do analista e chegou a hora de fazê-lo. A ideologia da vitimização a qual me referi se reflete, a meu ver, também na oferta, escuta e interpretação do analista que, ao assumir a ideologia da exigência de felicidade de nosso tempo, pode acabar oferecendo terapia light ou diet no lugar de análise. Não por acaso, os pacientes respondem suportando cada vez menos o sofrimento e a dor, ainda que estes nada tenham de patológico, sendo meras expressões da crueldade da vida. E concordando novamente com Zygouris (2003), no texto já citado, penso que enquanto analistas não podemos nos dar ao luxo de confundir uma infelicidade ordinária, e que faz parte da vida, com uma patologia, razão pela qual precisamos ficar alerta para não nos tornarmos meros técnicos da felicidade. As infelicidades fazem parte da vida e nem todas requerem necessariamente uma análise. O excesso de atitude compassiva do analista pode reduzi-lo a um mero acompanhante na descida para o inferno.

Assim como uma análise não pode se resumir ao setting, tampouco pode se contentar em ser mera assistência psíquica. O trabalho analítico, ainda que tenha que reconhecer o impacto do trauma, não pode se reduzir a uma mera reparação. Em tempos do politicamente correto, sempre segundo a autora com a qual só posso concordar, o analista precisa ousar ser politicamente incorreto já que sua função não pode ser nem a de criar vítimas, nem a de manter o sujeito nessa posição a vida inteira e sim fazê-lo pensar e se implicar no que lhe acontece, por mais que o modelo sustentado por nossa sociedade aja no sentido da des-responsabilização do sujeito, atribuindo, como já disse, tudo que acontece ao sujeito a determinantes externos.

Se a psicanálise não deve se transformar numa mera terapêutica da compaixão, em face do naufrágio da família e dos casais, penso que é igualmente perigoso, se não mais, que ela continue sendo o que muitos fizeram dela, uma tecnoanálise, onde qualquer sofrimento acaba sendo ouvido como gozo histérico e a única resposta possível é a não resposta sistemática. Seu objetivo tampouco deveria ser o de restaurar uma civilização em declínio, como alguns analistas vêm fazendo, ao palpitar de modo abusivo e conservador sobre a crise de autoridade que estaria atingindo nossas sociedades democráticas, confundindo, a meu ver, as leis fundamentais da humanidade com as leis jurídicas de determinada sociedade, uma vez que isso vem nos levando de volta aos tempos ideológicos da psicanálise.

Retomando o que foi dito até agora e me dirigindo para a conclusão, se a oferta de Freud foi a cura pela palavra e a de Lacan a de um saber “outro”, somos obrigados a reconhecer que, hoje em dia, a cura é oferecida também por outras disciplinas, assim como o outro saber, uma vez que não há como negar que as neurociências oferecem sim um outro saber. A oferta de psicoterapias não cessa de crescer em nossas sociedades democráticas e neoliberais, uma vez que é do interesse do poder público curar rapidamente todo aquele que sofre, nem que para tanto seja preciso mantê-lo na alienação. Do ponto de vista do estado, tudo isso é muito coerente e posso entender perfeitamente que não seja do interesse do poder público trabalhar contra seus próprios interesses de modo que um belo dia o sujeito resolva acordar querendo mudar o mundo, em vez de se adaptar a ele. E assim mesmo movimentos de indignação muito bem-vindos começam a pipocar cá e lá nesse mundo.

Se ofertar psicoterapias com selo de qualidade é do interesse do estado, para que em vez de cidadãos enraivecidos tenhamos vítimas que precisam ser tratadas e acalmadas para serem capazes de pensar positivamente, o que me surpreende positivamente é que, apesar de uma oferta tão variada, alguns muitos ainda optem por esse processo longo, caro e muitas vezes doloroso que é a psicanálise. Os que fazem essa escolha, dispondo-se a interrogar o próprio sofrimento, querendo saber como é que foram parar aí, encarando a própria vida como um enigma, recusando-se a ver seu sofrimento psíquico assimilado a uma doença, abrindo mão de serem “curados” rapidamente, merecem analistas a altura, analistas que se recusem a ser cúmplices do discurso de cientificismo dominante de nossa época e se disponham a dedicar tempo aos seus pacientes para que a realidade psíquica sempre singular e imprevisível possa ser ouvida.

Os que optam por uma análise, ao interrogar o próprio sofrimento, não só rememoram como se fazem testemunhas de sua própria história, razão pela qual, como diz Levallois (2007), precisam que o analista tenha o cuidado de relacionar a história individual que escuta com a História do mundo. Caso contrário abandonará o analisando numa solidão que, em vez de ajudá-lo a construir sua singularidade, criará nele um sentimento ilusório e tóxico de estar condenado a uma solidão de exceção, pois se descobrir “banal”, como teria dito Freud, é assumir a singularidade da condição humana e abrir mão do sentimento, não isento de gozo, de ser o único a ter vivido determinado horror.

A civilização, por mais que seja uma criação humana, jamais responde como gostaríamos aos nossos humanos desejos, o que não nos impede de continuar reivindicando uma vida melhor, capaz de dar conta da nossa dor de existir. Enquanto seres de linguagem, somos forçados a continuar esbarrando no rochedo de nossa condição, visto que o sofrimento humano não tem como ser absorvido pelo progresso, e o enigma que a vida representa para nós humanos faz com que nossa ex-sistência passe, necessariamente, pela cadeia significante, razão pela qual continuaremos, sempre, produzindo novos sintomas, uma vez que eles são sempre uma forma de resistência ao desejo desse Outro que supostamente quer nosso bem, assim como continuaremos a nos surpreender com nossos lapsos e atos falhos e tentaremos decifrar nossos sonhos. Graças a essas manifestações o inconsciente continuará sendo, ainda bem, politicamente incorreto.

Por isso tudo, gostaria de terminar dizendo que, apesar de tudo que se diz por aí, acho que a psicanálise ainda tem um belo futuro pela frente, sob a condição de não nos esquecermos que sua natureza hipotética, ainda que não impeça as convicções, condena a pretensão dogmática que diz a Verdade. A crise que ela atravessa pode até ser salutar se, graças a ela, formos capazes de pensar menos dogmaticamente e mais livremente, de modo que ela possa voltar a ser o pensamento livre e corajoso que foi em seus primórdios.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
Rua Piauí, 335/112 – Higienópolis
01241-001 – SÃO PAULO/SP
E-mail: caty@osite.com.br

RECEBIDO EM: 30/03/2012
APROVADO EM: 20/04/2012

 

 

Sobre a Autora

Caterina Koltai
Socióloga. Psicanalista. Professora da graduação e pós-graduação em ciências sociais da PUCSP.

 

 

1Trabalho originalmente apresentado na Conferência de Abertura da XXIX Jornada do Fórum de Psicanálise do CPMG, em setembro de 2011.
2FLOC’H, I. et PELLÉ, A. L’ inconscient est-il politiquement incorrect? Paris: Érès, 2008.
3LEVALLOIS, A. Une psychanalyste dans l’histoire, Paris: Campagne Première, 2007.
4ZYGOURIS, R. Seminário de 2003, in site Radmila Zygouris.com.
5LACAN, J. Fonction et champs de la parole et du langage en psychanalyse. In Ecrits, Paris: Seuil, 1966.
6FREUD, S. Moise et le Monothéisme. Paris: Gallimard, 1972.
7ZALTZMAN, N. Homo sacer: l’homme tuable in la resistance de l’ humain. Paris: PUF 1999.
8LACAN, J. Proposition de 9 octobre 1967, Silicet I. Paris.
9ROUDINESCO, E. Lacan envers et contre tout. Paris: Seuil, 2011.
10HASSOUN, J. Actualité d’un Malaise. Ramonville Saint Anges: Érès, 1999.
11FREUD, S. L’avenir d’une Illusion. Paris: PUF, 1971.