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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.63 Belo Horizonte June 2012

 

O músico já nasce músico? No litoral de música e psicanálise: questões

 

Is the musician already born as such? In the littoral of music and psychoanalysis: questions

 

 

Messias Eustáquio Chaves

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor propõe, no presente artigo, discutir questões relativas à música e ao desenvolvimento da aptidão musical, a partir da teoria psicanalítica, buscando responder a algumas perguntas, tais como: o músico já nasce músico? Qual a relação do sujeito do inconsciente e de seu desejo com a criação musical? Qual a relação da fantasia do sujeito (amor – desejo – gozo) com o ato criativo musical do sujeito?

Palavras-chave: Sujeito, Inconsciente, Desejo, Linguagem, Música.


Abstract

The author proposes in the present article, to discuss questions relating to music and to the development of musical aptitude, from the psychoanalytical view point, trying to answer some questions, such as: is the musician born as musician? What is the relation between the unconscious subject and his/her desire in musical creation? What is the relation between the subject fantasy (love-desire-enjoyment) and the subject´s creative musical act?

Keywords: Subject, Unconscious, Desire, Language, Music.


 

 

A expressão “o músico já nasce músico” tornou-se conhecida e circula entre pessoas diferentes, em lugares diferentes, em momentos diferentes, em épocas diferentes. Parece um aforismo, soa como uma frase musical de três compassos e produz uma dupla interrogação: trata-se de uma verdade absoluta ou da verdade de uma metáfora? A resposta a essa pergunta, pela via da psicanálise, aponta para a existência de verdades metafóricas, inventadas e inscritas pelo simbólico. A verdade é sempre uma meia-verdade. A verdade absoluta, aquela que seria do real, se ela existe, ela é inatingível, inapreensível, indizível, incalculável, impossível de ser atingida e enunciada como tal, em forma absoluta, pois todo “cientista” é antes de tudo sujeito e, para a psicanálise, o sujeito é dividido, barrado em sua subjetividade, em seu desejo, em sua inteligência, mesmo que seja uma “mente brilhante”. A este real, cuja função principal é escapar de uma captura subjetiva, conseguimos abordá-lo, arranhando-o com letras, fonemas, sílabas, palavras, transformando estes pedacinhos de real em signos, em significantes, construindo o campo simbólico da linguagem, da representação, do sentido e da ordem cultural, no campo dos seres falantes.

Dizer algo como arranhar o real, esfacelá-lo, cortá-lo com dentes e garras, pisá-lo e deixar marcas – menções à pré-história humana, à entrada do homem na linguagem –, são metáforas, tentativas de, pelo menos, poder dizer, apreendendo-o, a este real, com ideias e pensamentos, com as fantasias e o fazer artístico, criando uma pintura, uma escultura, um texto, um poema, uma peça teatral, uma peça musical, um filme. Enfim, as artes têm uma função importantíssima na construção da cultura humana, de expressar dizendo ou de dizer expressando (como na ópera, no teatro, no cinema) o que é possível de dizer desse real, desde sempre enigmático, fugidio. A música, por sua característica é – de todas as artes, e para muitos autores –, a mais complexa e mais enigmática. Ela nos traz questões – interessantes, profundas, instigantes – que nos convidam à pesquisa, ao estudo e à elaboração de um discurso que dê conta de formular hipóteses na busca da construção de um saber sobre o homem e seu inconsciente e, em seu inconsciente, o sujeito, a fantasia e o desejo desse sujeito.

Há pelo menos uns cinquenta anos ouvimos falar sobre as teses concernentes à aquisição da linguagem pelo homem. Em geral, elas se concentram em dois seguimentos principais: a determinação biológica, por um lado, e a determinação simbólica, por outro lado, cada uma defendendo o seu ponto de vista. A primeira concentra-se nos estudos da biologia e da neurociência, já a segunda se concentra nos estudos antropológicos, etnológicos, linguísticos, psicológicos e sociológicos. Há cinquenta anos, alguns linguistas, apoiados na determinação biológica, seguem a teoria da gramática universal, segundo a qual a linguagem é inata no ser humano e já está programada no cérebro. Isto é, o nosso cérebro, desde a gestação, já nos dá tudo.

Na contramão desta teoria, outros linguistas, antropólogos e etnólogos, apoiados na determinação simbólica, defendem a tese de que a linguagem é um artefato criado e moldado pela cultura, pela cognição e pela comunicação entre os seres humanos. A humanidade sobreviveu e evoluiu em seu percurso civilizatório, por ter conseguido se equipar com a linguagem. Ela é uma ferramenta criada por nós, que foi descoberta com o uso da capacidade cerebral e corporal. A ferramenta mais importante, pois é ela que nos faz humanos. Ela permite reconhecer que o outro é capaz de pensar e falar como nós, de entender, de responder.

Segundo estudos de Richard Dawkins1, uns 200 mil anos atrás, houve mutação no gene FOXP2, o que possibilitou o início de uma grande transformação genética que preparou o caminho para que, entre uns 40 e 50 mil anos atrás, o “homo sapiens sapiens” – homo sapiens moderno – pudesse se constituir como um ser de linguagem, facilitada pela formação de uma garganta adequada para possibilitar a fala. O homo erectus não podia falar e uma das razões é porque não tinha pleno desenvolvimento do aparelho fonador. Restos fósseis achados na Caverna de Dordonha, na França, mostraram evidências que levaram a datar o surgimento da linguagem primitiva em torno de 50 mil anos atrás. Este foi o salto para os artefatos, as pinturas rupestres das cavernas, as marcas e traços de uma escrita primitiva nas paredes das cavernas, objetos artísticos feitos de barro e pedra, objetos musicais feitos de ossos e de madeira. Segundo Dawkins, houve um grande salto com o desenvolvimento da linguagem, pois antes não havia nenhum artefato. Isto sugere que o homem primitivo aprendeu primeiro a desenhar o animal, para depois poder falar do animal. Aprendeu primeiro a criar sons musicais, para depois poder falar de música. Levou muito tempo para construir o fazer social-cultural, para depois e ao mesmo tempo elaborar um discurso sobre a cultura.

Na concepção da psicanálise2, o cérebro e um feixe de nervos não são suficientes para fazer o homem. O homem é o resultado de um enlaçamento entre a sua constituição biológica, a sua constituição psíquica e a sua constituição social. Sob esta ótica, o que de fato determina e constrói a humanidade é o efeito de um laço biopsicossocial. Trata-se de uma amarração estrutural que não privilegia o biológico em detrimento do psicológico e nem o psicológico em detrimento do social. Teríamos aqui uma relação possível com a elaboração lacaniana dos três registros: RSI – Real, Simbólico e Imaginário. Para Lacan3, não há prevalência de um registro sobre o outro. O ser humano seria o resultado da amarração destes três, cada um exercendo a sua função.

Em relação à gestação de um futuro bebê, na passagem de embrião para feto, entre a 9ª e 11ª semanas, espera-se que o aparelho auditivo já esteja completamente formado e que o feto escute os sons vindos do mundo interno (endopsíquico) da mãe e também do mundo externo, ressoando ao seu ouvido através do líquido amniótico, excelente condutor de som. O feto ainda não escuta o som melódico da fala da mãe ou de uma música do jeito que escutamos. Isso só vai acontecer depois do nascimento. O que chega ao seu aparelho auditivo é o som como matéria, apenas a materialidade do som, a voz material do som, ressoando as “barulhagens” internas e externas através do corpo da mãe: as batidas do coração da mãe, sua respiração, os movimentos do seu intestino e de sua locomoção, a materialidade de seu timbre vocal, as ressonâncias de sua ansiedade e demais vivências emocionais, sons de carros, da natureza, trens de ferro, aviões, apitos, construções de prédios, discos tocando, dentre outros sons.

Se ao feto chegam os sons do timbre da voz da mãe, ele capta e registra a materialidade desta voz, a voz como Coisa, produzindo uma plataforma material (uma matriz), um pedaço de real, fora da palavra, mas se colocando apto a recebê-la, após o nascimento, no tempo da constituição do sujeito (bebê), no campo do Outro da linguagem e da fala materna neste lugar. Segundo Lacan4, “a voz é este real do corpo que o sujeito consente perder para falar; a voz é este objeto caído do órgão da fala”.

Segundo Vivès,

Conflito entre o real da voz em sua dimensão de apelo ao gozo (sendo a música tecno uma de suas formas possíveis) e a voz, como vetor da fala, em sua dimensão de apelo a tornar-se (a vir-a-ser um sujeito). A música tecno convoca essa dimensão do real. O timbre é o que escapa ao poder de simbolização, aquilo que permanece intraduzível. Ao tentarmos definir o timbre da voz, este sempre se esconde sob as palavras. Esta é uma abordagem o mais próxima possível do real da Coisa sonora5.

Torna-se necessário distinguir a voz ligada ao significante, à palavra, por menor que seja (exemplo: o dó, o mi, etc, nomeado por um sujeito), cujo som da voz implica na junção do timbre (a materialidade da voz) com o significante dó ou mi, e a voz como puro timbre, pura matéria, puro som gutural, ou puro som da materialidade de uma batida do coração da mãe, de uma goteira batendo numa lata, de uma árvore que quebra, de um sax emitindo um fá, uma clarineta emitindo um lá. Este é o som que chega ao ouvido do feto, no interior do corpo da mãe. Após nascer, estando no exterior do corpo da mãe e já como bebê, a fala da mãe tem uma qualidade totalmente diferente, pois o som da voz que agora lhe chega aos ouvidos é o resultado da junção do timbre com a palavra, com a fala, com o discurso da mãe, do pai, dos avós, e outros humanos. Sabemos que é pouco a pouco que o bebê vai se constituindo como sujeito falante no campo da linguagem e da fala. Quando o professor de música toca o fá no piano e diz “essa é a nota fá”, ele acaba de nomear, ele faz a junção da voz com o significante em sua mente e em sua fala. No útero materno existe um tempo do registro da voz como Coisa (das Ding) e depois do nascimento existe um tempo do registro dos significantes (amarrando o som das palavras com o timbre da voz). Este tempo varia de criança para criança e vai depender da amarração topológica do Real, Simbólico e Imaginário.

Segundo Urania Tourinho Peres:

Um bom exemplo do que estou dizendo podemos encontrar de uma maneira muito apropriada em Mozart, quando ele descreve que na cabeça dele vem tudo junto, que ele escuta tudo junto, ao mesmo tempo, e que é uma delícia, não podemos deixar de nos lembrar do júbilo do bebê ao contemplar sua imagem unificada no espelho. Daí, a hipótese de um predomínio do especular sonoro, em que simbólico e real ganham força sobre o imaginário do sentido. A música não se propõe a um sentido, mas pode estar aberta a qualquer sentido. A música, assim como a pulsão invocante, fala de uma proximidade maior com o inconsciente6.

Conforme vimos anteriormente, os dois primeiros anos de vida de um bebê são extremamente importantes na constituição do sujeito humano. A disposição hereditária para a linguagem, inegavelmente, já existe há milhares de anos, mas ela sozinha não faz a constituição da linguagem propriamente dita: o traço unário, a letra, o signo, o significante, a palavra, a escrita, a fala, o discurso. Essa linguagem propriamente dita se constitui ou se constrói no campo do grande Outro, ou seja, no banho de linguagem de outros seres humanos no entorno do bebê. Não só a linguagem da palavra, da fala, mas também a linguagem musical, a linguagem da dança, a linguagem do gesto, a linguagem do olhar, a linguagem afetiva, a linguagem figurada, e outras mais. Se um bebê, com o cérebro bem formado e nenhuma lesão na região dita “localização da linguagem no cérebro”, for isolado de qualquer ser humano, por muitos anos, ele não desenvolverá a fala, seja a língua qual for naquela região da Terra. Restarão apenas os neurônios e a sua disposição hereditária. Metáfora das sementes que – sem terra, água, calor e os cuidados do homem – não passarão de sementes com as suas disposições hereditárias, localizadas ou até mesmo numeradas e guardadas para sempre.

Não há nada fácil na formulação teórica das hipóteses e das descobertas científicas já realizadas no período da gestação do embrião e do feto humano, tanto quanto sobre o que acontece no primeiro ano de vida do bebê. Cada área de conhecimento costuma defender suas ideias com certo radicalismo e até mesmo com uma atitude preconceituosa em relação às outras áreas. Geralmente, se faz muita confusão sobre “ciência” e “científico”, tomando ambos os termos como algo diferente: um substantivo, o outro adjetivo. A definição de científico é aquilo que se refere à ciência, ou seja, que tem o rigor da ciência; do método científico. Sublinhamos esta palavra “método”, pois é disso que se trata. Não há ciência pura, pois o método é criado e aplicado pelo sujeito humano, um ser imperfeito. A psicanálise utiliza-se das contribuições da antropologia, da matemática, da lógica formal e da topologia como uma forma de dizer o indizível do tempo lógico na constituição do inconsciente humano, tanto quanto do desejo e da fantasia do sujeito deste inconsciente, subjugado às leis da linguagem musical, da linguagem da palavra, da linguagem da fala. Seria da conjunção das três que surgiria a sonoridade do discurso?

Pensemos num coral de quatro vozes – baixo, barítono, mezzo-soprano, soprano – quatro vozes diferentes, cada uma tendo um som típico da sua altura e do seu timbre. Contudo, materialidade sozinha não faz um discurso musical. Torna-se necessário que ao timbre se ligue a organização inteligente de notas musicais (criadas pelo compositor) e a organização da poética do canto (numa música cantada), cuja sonoridade está embutida nas palavras, na rede de significantes, produzindo efeitos de significação. O músico diz: “a voz do meu violino”, “a voz do meu sax”, “a voz do meu violão”, etc. O que cada um diz quando diz isso? Diz que seu instrumento tem voz, que cada nota é uma voz, que há várias notas, várias vozes. Isso pode ser comparado a um feixe de nervos, sabendo que um feixe de nervos não faz um homem, assim como as notas, tomando-as separadamente, não são suficientes para fazer uma música. As notas (vozes) precisam estar inteligentemente organizadas numa linguagem musical (discurso), construídas segundo a lógica dos sons, que estão submetidos às leis do tempo, do espaço, da melodia, do ritmo, do modo, do fraseado, do acento, do desenho harmônico, dos ornamentos e algumas coisas mais. Esses sons organizados e estruturados numa música (seja ela sem canto ou com canto) implicam na presença da voz, da letra, e dos significantes do sujeito compositor, pois a música é um efeito do sujeito que a criou, e sem ele não existiria música jamais.

Voz / Letra / Significante. Primeiro tempo, a materialidade do timbre da voz, lugar do gozo da Coisa, das Ding. Segundo tempo, a pulsão invocante, chamamento ou convocação à dança e à letra, lugar do litoral. Terceiro tempo, nascimento do significante, da fala, da palavra. Segundo Freud: “a pulsão é um conceito entre o somático e o psíquico”7.

Para Lacan,

A letra não seria o literal ao fundar o litoral? A letra não é, em comum, litoral? A borda do buraco, como de abordagem da letra, não seria o que ela desenha? A letra diz, ‘ao pé da letra’, quando todas as suas interpretações se resumem ao gozo. Entre o gozo e o saber, a letra constituiria o litoral8.

Alain Didier-Weill9 fala do tempo da voz, do tempo da dança e do tempo da fala. A estas, acrescentamos o som junto ao tempo da voz, o ritmo junto ao tempo da dança e a melodia junto ao tempo da fala. Ao nascer, o grito do bebê é a sua primeira emissão de voz, do timbre da voz. Com o tempo, a voz vai se associando às primeiras letras (as vogais) e, depois, às consoantes, e depois começa a formação de significantes (fonemas, sílabas, palavra, fala), e depois, de frases, e depois, de discurso. Isso leva tempo. Tempo de desenvolvimento biopsicossocial. Nossa hipótese é a de que a música, estruturada como tal, só seria possível a partir do tempo da fala, quando o bebê começa a falar e cantar. Depois, ele passaria a inventar, a compor, sem saber que está compondo, criando ritmos melódicos e dançando estes ritmos. Isto o ajudaria no desenvolvimento da inteligência e das aptidões.

Sobre o conceito – pulsão invocante –, fundamental para o desenvolvimento do nosso tema, Lacan teria dito apenas o suficiente, parecendo ter concedido a honra de desenvolvê-lo ao seu discípulo Alain Didier-Weill. Segundo Lacan10, “ela é a única que tem o privilégio de não poder se fechar”. O ouvido está sempre aberto ao som. Ele fazia a comparação com a pulsão oral (a boca abre e fecha), com a pulsão anal (o ânus abre e fecha) e com a pulsão escópica (o olho abre e fecha).

Qual seria a relação destes conceitos com a música? O que o pulso rítmico tem a ver com a pulsão? O que a criação musical tem a ver com o sujeito, o seu desejo, a sua fantasia, enfim, com a subjetividade humana? A música existiria sem que houvesse o sujeito humano, o sujeito compositor? O que vem antes: a música ou o sujeito?

Para Lacan,

“No vivente humano, a pulsão é um gundbergriff, um conceito fundamental. A pulsão (Trieb) não é o instinto e não é, também, apenas o impulso (drang), pois além deste, a pulsão possui mais três elementos, ou seja, a fonte (quelle), o objeto (objekt) e o alvo (ziel). A pulsão reúne estes quatro termos nela mesma. Parece natural, mas não é tão natural assim”11.

A música – como todas as artes – é um dos efeitos de sujeito e do ato criativo deste sujeito. O sujeito do inconsciente vem antes e a música como efeito vem depois? Ou é o contrário? Será que o desenvolvimento do aparelho auditivo e a captação dos sons vieram antes e foram eles, os sons, que paralelamente ao desenvolvimento do aparelho fonador, possibilitaram o desenvolvimento das palavras, do canto e da música? Alguma forma de música certamente existe desde a origem do “homo sapiens sapiens”, uns 50 mil anos atrás. Provavelmente, humanos tocaram em flauta feita de bambu, de osso de grandes aves e fizeram sons rítmicos com pedaços de pau. Com o tempo foram descobrindo cada vez mais novas formas de criar sons e organizá-los na forma de músicas. Certamente, improvisaram sons rítmicos, dançaram e cantaram numa linguagem ainda bastante primitiva.

Tirar sons foi uma condição para desenvolver primeiro a linguagem musical, possibilitando o advento da linguagem da palavra? Ou ao contrário, primeiro houve a aquisição da fala, como pré-condição à linguagem da música? Ou ambas vieram juntas (como sugeriu Mozart), topologicamente juntas, como resultado de um desenvolvimento de vozes, letras e palavras, efeitos sonoros integrados, que numa constituição em tempo lógico, deram origem à linguagem como tal, tanto na criação de músicas (estruturas musicais) quanto na criação da palavra (estruturas de linguagem escrita e falada), sendo ambas, música e palavra, pertencentes a uma mesma linguagem, esta universal, que estrutura os sujeitos humanos diversificadamente, encaminhando-os às várias línguas e às várias escritas, conforme cada região da sua origem constituinte e estruturante como humano: africano, indígena, chinês, árabe, alemão, francês, inglês, espanhol, português, russo, etc.

No campo do ?rriscado – S(?) –, poderíamos concluir, de acordo com nossa discussão até o momento, que o músico se faz ao ser convocado pela pulsão invocante e ao ser direcionado pela força do seu desejo. Isto implica em descobrir as tendências ou aptidões musicais presentes na disposição hereditária e, também, ser movido pelo desejo de aprender, desenvolver este dom. O dom é algo invisível e inaudito, que surge como um botão de flor, em atos instantâneos, revelados em improvisos sonoros, de vozes-letras musicais, esperando que o desejo de criar leve o sujeito a compor, a organizar os sons em escalas e transformá-las numa peça musical. Gostar de ouvir música nem sempre coincide com gostar de fazer. Acreditamos que o dom viria através da disposição hereditária, mas sua transformação em talento aconteceria no tempo da constituição do sujeito do inconsciente, de seu desejo, de sua fantasia, de sua imaginação. Este talento para a música vai aparecer na infância, quando a criança brinca e improvisa com os sons, como fazia o menino Mozart, que ouviu – desde o período de gestação – o pai tocar instrumentos musicais o dia inteiro: semelhante ao que aconteceu com vários outros compositores.

Contudo, estas manifestações não são suficientes em si mesmas para fazer um músico. É preciso que além do dom e da demonstração de talento musical, a criança tenha um forte desejo de aprender música, buscando transformar seu dom e seu talento numa obra de arte que seja sua, do seu desejo e da sua subjetividade. A metáfora é a de que o botão de rosa seja o dom, e abrindo em pétalas se constitua em saber musical multifacetado. Energia, desejo, fantasia, ação. O instrumento e o som, a palavra e a fala são suas formas de comunicação e de transmissão. O canto e a música são suas declarações de amor poéticas e musicais.

O amor dá o tom à poesia
e a música encarna-o na sonoridade do dizer.
(Messias E. Chaves, no campo do ?rriscado)

 

Bibliografia

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PERES, Urania Tourinho. Por que o menino Mozart brincava com os sons? In: Dimensões do despertar na psicanálise e na cultura. Denise Maurano, Hedoneida Neri, Marco Antonio Coutinho Jorge (Org.). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p.95.         [ Links ]

VIVÈS, Jean-Michel. Por que os adolescentes preferem escutar música tecno a escutar seus pais? In: Dimensões do despertar na psicanálise e na cultura. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.         [ Links ]

WEILL, Alain-Didier. Invocações. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Domingos Vieira, 348/803 – Santa Efigênia
30150-240 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3241-6837
E-mail: mesquioves@gmail.com

RECEBIDO EM: 28/03/2012
APROVADO EM: 04/05/2012

 

 

Sobre o Autor

Messias Eustáquio Chaves
Psicólogo. Psicanalista. Membro do Circulo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Autor de vários artigos publicados na revista Reverso do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Aluno de Música da Fundação de Educação Artística (FEA), a partir de fevereiro de 2006. Autor de 52 composições (MPB), das quais 13 foram arranjadas e apresentadas nas XXVII, XXVIII e XXIX Jornadas do Fórum de Psicanálise do CPMG, no Colégio Padre Machado, na Faculdade de Psicologia da Newton Paiva, e no Unibh, respectivamente.

 

 

1 DAWKINS, Richard. A grande história da evolução. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
2 FREUD, Sigmund. Interpretação dos Sonhos, Totem e Tabu, Psicologia das Massas, Mal-Estar na Civilização, Moisés e o Monoteísmo. In: ESB. Rio de Janeiro, Imago: 1974-1977.
3 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 22: RSI – ainda não publicado. Texto transcrito de gravações do seminário. Autor desconhecido.
4 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
5 VIVÈS, Jean-Michel. Por que os adolescentes preferem escutar música tecno a escutar seus pais? In: Dimensões do despertar na psicanálise e na cultura. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
6 PERES, Urania Tourinho. Por que o menino Mozart brincava com os sons? In: Dimensões do despertar na psicanálise e na cultura. Denise Maurano, Hedoneida Neri, Marco Antônio Coutinho Jorge (Org.). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p.95.
7 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
8 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Lição sobre Lituraterra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p.110 e 113.
9 WEILL, Alain-Didier. Invocações. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
10 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.190.
11 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.160-161.