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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte Dec. 2012

 

ARTIGO

 

A medicação enquanto impasse na clínica com crianças

 

Medication as an impasse in the clinic with children

 

 

Arnaldo Oliveira Rodrigues

Unimontes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A medicação tem grande importância para a cultura atual e tem se constituído em um sintoma da modernidade. Contudo, tem se tornado um impasse na clínica psicanalítica com crianças, uma vez que estas se encontram submetidas às capturas fantasísticas daqueles que delas cuidam. Assim sendo, este texto visa apresentar algumas considerações sobre a medicação enquanto impasse na clínica com crianças, situando a medicalização da vida e a mercantilização da saúde como os principais fatores.

Palavras-chave: Psicanálise com crianças, Medicação, Impasse, Medicalização da vida, Mercantilização da saúde.


Abstract

The medication is very important for the contemporary culture and it has become a symptom of modernity. However, it appears as an impasse psychoanalytic clinic with children, for those who care for them have caught them in an imaginary way. Therefore, this paper aims to present some considerations on medication as impasses in the clinic with children, which places medicalization of life and commodification of health as the main factors.

Keywords: Psychoanalysis with children, Medication, Impasse, Medicalization of life, Commodification of health.


 

 

“É a dor de existir que dá responsabilidade ao psicanalista – impotência, angústia, sintoma, mal-estar, desgraça”
(Jacques Alain-Miller, 1997)

 

Este trabalho é dedicado a um fato que faz parte do cotidiano de atuação dos profissionais psi: o fenômeno contemporâneo da medicação, em especial a medicação de crianças. Simonetti (2011) chama a atenção para o fato de o medicamento se constituir em um sintoma da modernidade, tendo uma alta valorização na cultura atual e engendrando processos por vezes perversos, tais como a medicalização da vida e a mercantilização da saúde. E isso se faz mais perigoso na medida em que as crianças não escapam a esta lógica, ficando submetidas às capturas fantasísticas daqueles que delas cuidam. Outro fator a ser considerado é a iminência do DSM – V, o que faz com que seja relevante refletir sobre a temática aqui apresentada.

É certo que o medicamento pode ser muito bem-vindo no decurso na vida de um sujeito, inclusive no momento em que ele esteja em análise. São situações – medicamento e psicanálise – que não se excluem mutuamente. Contudo, o foco deste texto está justamente no momento em que o medicamento se torna um impasse, vindo interferir negativamente no processo analítico. Antes de apresentar então a medicação como impasse, algumas considerações sobre os momentos em que ela é bem-vinda.

Primeiro: Pessini e Barchifontaine (1997), falando sobre os aspectos éticos na articulação medicina e humanização, afirmam que o homem é um ser que sofre, que sabe que pode sofrer e que por isso se preocupa. Um homem cuja doença é uma realidade psicossomática, pois “as manifestações de seus conflitos consigo mesmo e com o mundo podem assumir uma linguagem corporal. A doença seria, assim, uma espécie de linguagem cifrada, um último e trágico protesto do indivíduo contra uma situação adversa” (PESSINI, BARCHIFONTAINE, 1997, p.166).

Segundo: O conceito de pulsão apresentado por Freud engloba a dimensão somática, um conceito limítrofe entre o psíquico e o somático, interligados e interdependentes. Outro exemplo desta articulação é dado no texto Tratamento Psíquico (ou Anímico), em que Freud (1905/1996) assinala que a psicanálise é tratamento que pode ser aplicado tanto a perturbações anímicas quanto físicas, tendo como seu instrumento a palavra.

Estas duas pontuações servem para dimensionar que, em psicanálise, está sempre em questão a angústia e o corpo, vindo este a ser lugar de manifestações subjetivas, físicas e psíquicas. Grosso modo, pensando o medicamento na perspectiva do psíquico-corpo, ele está para o soma assim como a palavra está para o psíquico, melhor dizendo, para a subjetividade, para a emergência do sujeito.

É importante nos atermos à observação que Costa (2009a) faz quando diz que a constituição do sujeito em Freud e em Lacan se dá pela estruturação através do inconsciente, mas o inconsciente não é um órgão do corpo. Tal afirmação permite verificar que: sujeito é diferente de organismo, e se por um lado não há cura para o inconsciente, por outro, para o corpo, o órgão, o organismo há curas, medicamentos, drogas...

Ainda que o uso de substâncias não seja novidade para a civilização e que haja grandes avanços na farmacologia, o seu uso configura uma tentativa de remediar o mal-estar. Louvável é seu uso quando o sujeito está diante de um quadro de angústia paralisante ou para assegurar a manutenção da vida do paciente e viabilizar seu encontro com o analista (COSTA, 2009a).

Quando, então, a medicação se torna um impasse?

Passamos então ao segundo tópico: o impasse. Conforme dito no convite desta Jornada1, há diversas vertentes no impasse: “situação embaraçosa da qual é difícil sair bem; beco sem saída” (Dicionário Michaelis) ou ainda como oportunidade para fazer uso da criatividade e abrir com o analisante um caminho para o desejo deste. O impasse surge quando algo faz barreira à linguagem e, como sabemos, é justamente a experiência da fala que define o campo da análise e das psicoterapias de modo geral.

Conforme assinalado acima, o medicamento pode ser um aliado no tratamento ou ao menos não ser um empecilho. Isso está posto na origem da palavra phármakon, que designa tanto o veneno quanto o remédio. Todavia, ao psicanalista interessa prioritariamente uma terceira vertente, que é a do fazer falar. Esta é uma condição de análise que não exclui o medicamento, contudo, há que se ter sempre presente que o interesse do analista é o sujeito falante. É o que Quinet (2005) aponta ao mostrar que Freud estabeleceu apenas uma regra, a ser imposta, para a psicanálise: a associação livre, sendo esta a “única regra presente na experiência analítica” (QUINET, 2005, p.9).

Inclusive, esta regra está do lado do analisante e não do lado do analista. “Trata-se de uma regra correlata à própria estrutura do campo psicanalítico aberto por Freud. É a associação livre que marca o início da psicanálise e também o início de cada psicanálise” (QUINET, 2005, p.11). Do lado do analista não há regras, exceto os preceitos da atenção flutuante, da ética da psicanálise, regida pelo desejo do analista. Advém daí sua função, conforme apresentada em seu discurso: temos o analista na posição de objeto a, embasando-se nos S2 que o analisante vai apresentando de modo a fazer com que este sujeito produza seus S1, os significantes mestres de sua existência e também do seu mal-estar.

Chegamos então ao terceiro ponto: a medicação de crianças e o desafio que tal fato coloca à clínica. A medicação da infância (e adolescência) tem sido cada vez mais comum, principalmente no caso dos medicamentos para os sintomas mentais, tendo em vista “a disponibilidade de novos medicamentos e o crescimento do conhecimento sobre diagnóstico de transtornos emocionais nessa faixa etária” (OBID, 2004), apesar de a psicofarmacologia na infância e adolescência continuar sendo uma área com muitas questões em aberto.

Ocorrem hodiernamente os processos denominados por Simonetti (2011) como medicalização da vida e mercantilização da saúde. A medicalização da vida é “a tendência de enxergar, cada vez mais, características humanas como doenças, e, portanto como objetos para a medicina” e mercantilização da saúde é “a via complementar da medicalização. Se existe um remédio, façamos dele um produto. Essa é a marca de nosso mundo globalizado” (SIMONETTI, 2011, p.193).

Estes são os dois principais impasses quando se trata da psicanálise com crianças, também elas submetidas à medicalização de suas questões tendo em vista que o panorama atual globalizado é o de tomar qualquer coisa como objeto de consumo, como produto a ser vendido, exposto, consumido. O lugar que a criança ocupa, podendo ser ela mero objeto do gozo do Outro, também determina que uso será feito do medicamento no tratamento do sintoma que esta venha a apresentar. Tal fator é diretamente dependente da visão que ainda hoje se tem do infante como objeto.

Drummond (2007) assinala nos estudos de Lacan dos anos 70 e em outros estudos mais recentes a condição da criança na contemporaneidade como o objeto a liberado, como uma ficção para os pais e um objeto pulsional aparelhado pelo Outro de nossa época; uma época tal cujos sujeitos estão cada vez menos organizados pelo Édipo e pela significação fálica. Além disso, a criança guarda inscrições de tudo o que acerca dela é dito e do desejo ou do gozo do qual ela é produto; ela se estrutura na família e as palavras que ela não compreende têm um efeito em seu corpo, um deles inclusive pode ser o sintoma que demanda a escuta do analista.

Lacan (2003) no texto Nota sobre a criança apresenta os lugares que esta pode ocupar no romance familiar: como sintoma da estrutura familiar, o sintoma sendo, então, o representante da verdade do casal ou uma posição tendo a criança um sintoma decorrente da subjetividade da mãe, tornando-se um objeto dessa mãe e cuja função é revelar a verdade desse objeto. Assim, “a criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia. Ela satura, substituindo-se a esse objeto, a modalidade de falta em que se especifica o desejo (da mãe), seja qual for sua estrutura especial: neurótica, perversa ou psicótica” (LACAN, 2003, p.370).

O sintoma da criança surge no momento em que ela não encontra no campo do Outro os recursos necessários para enfrentar os impasses que se lhe apresentam, ocasionando a angústia, vindo o sintoma a ser sua “invenção” (PETRI, 2008), um recurso para fazer barreira à boca devastadora do jacaré, contra um amor que poderia matar e engoli-la. O sintoma, então, como esta estaca, este pequeno pedaço de pau, se apresenta para ser escutado e não necessariamente para ser retirado.

É interessante notar que a demanda de análise de crianças parte em sua grande maioria do Outro parental ou social: são os pais, os cuidadores, a escola, as instituições de acolhimento, quem primeiro diagnosticam um mal-estar na criança. São eles quem nomeiam primeiramente o sintoma e, a partir daí, demandam do analista uma resposta e uma cura para ele.

No entanto, bem sabemos que, para a psicanálise, o sintoma não se constitui em algo a ser retirado logo no momento em que se apresenta, ficando esta função a cargo da medicina e das psicoterapias, que prontamente se põem a atender ao Outro, independentemente da escuta da criança. A visão psicanalítica do sintoma é a de que ele fornece algum significado para o sujeito, contém sua verdade, e é uma construção na qual ele se reconhece e pede o reconhecimento do Outro. Apresenta uma dimensão de gozo para este sujeito e que somente será delimitado através da sustentação da transferência, desde que tal sintoma se transforme em questão e seja endereçada a um analista (PETRI, 2008).

Petri (2008) afirma que “na clínica com crianças as delimitações diagnósticas são menos claras para apontar ao analista os caminhos a seguir. A psicopatologia psicanalítica da criança propõe, em geral, os quadros de autismo, psicose, debilidade, perversão e neurose” e o diagnóstico deve ser cuidadoso para não se tornar em uma outra fonte de opressão e engessamento para a criança, devendo o analista lembrar que “o compromisso da psicanálise é com o sujeito, em toda a sua singularidade, e não com um sistema classificatório” (PETRI, 2008, p.95-96).

Cabe neste momento retornar à temática da medicação, pois é justamente esta a função do medicamento: seu fim terapêutico esperado é a retirada do sintoma. Grostein (2005) aponta que o medicamento é um dos mais importantes S1 da atualidade, mas pode ocupar o lugar de “um significante absoluto que impede o gozar no discurso” (VIGANÒ, 2002, apud GROSTEIN, 2005).

O impasse maior é a articulação da escuta da singularidade do sujeito diante da voracidade do Outro que demanda a cura do sintoma. Principalmente diante da oferta de medicamento para todas as situações da vida: se a criança está agitada, pode-se dar tal medicamento; se está triste, este outro; se não aprende, há este aqui. E juntamente com o medicamento há uma prolixidade de nomes, por vezes, insipientes diante do mal-estar real do sujeito: bipolar, psicótica, autista, TDAH... Nomes que, ao invés de se constituírem em norteadores para a conduta clínica dos profissionais da saúde e educação, acabam por gerar estigma e segregação da criança.

Diante desses impasses, o trabalho se mostra difícil, por vezes insustentável. O que fazer então para sustentar a clínica com crianças?

Lacan nos dá pistas quando diz que a clínica é o real enquanto impossível de suportar e mais ainda quando fala do desejo do analista. O desejo do analista é aquele embasado na ética da psicanálise, fundado na transferência e que coloca em marcha a fala do sujeito, um “desejo prevenido” que não se engana buscando a felicidade do sujeito, mas que permite localizar o lugar onde a criança está no desejo do Outro e permitir-lhe a construção de sua própria fantasia (COSTA, 2009b). De certa forma, é bem semelhante ao que Freud propõe quando fala da magia da palavra:

Agora começamos também a compreender a ‘magia’ das palavras. É que as palavras são o mediador mais importante da influência que um homem pretende exercer sobre o outro; as palavras são um bom meio de provocar modificações anímicas naquele a quem são dirigidas, e por isso já não soa enigmático afirmar que a magia das palavras pode eliminar os sintomas patológicos, sobretudo aqueles que se baseiam justamente nos estados psíquicos” (FREUD, 1905/1996, p.276).

Quanto ao fazer do analista na interface com o medicamento, há orientações gerais que nos são advindas da clínica do social ou clínica ampliada, tais como estabelecer parceria com os pais, enquanto favorecedores de mudança para as crianças; considerar a importância do trabalho em equipe interdisciplinar; a realização de encaminhamentos adequados, dentre outros. Quanto ao uso do medicamento especificamente, que este seja de forma racional e quando houver indicação precisa (OBID, 2004). No final das contas, o que define a pertinência do medicamento e como ele será articulado na clínica é o próprio caso: é no caso a caso que será possível definir qual o melhor caminho e as alternativas a serem adotadas. A criança vista como objeto não é nem escutada nem tida como ser falante (DRUMMOND, 2007), e a nós psicanalistas interessa (e muito!) o que ela enquanto sujeito singular tem a dizer.

Ao concluir este trabalho, vale retomar o que já foi dito acima, o medicamento é um importante aliado no tratamento do mal-estar dos sujeitos, independentemente da idade. Mas o que não deve ocorrer é a substituição da fala, da experiência da “conversa analítica” pelo medicamento, uma vez que, como psicanalistas, bem sabemos da importância do laço social e também da valorização da singularidade de cada sujeito; singularidade da qual somente temos conhecimento se a criança/sujeito se propõe a falar.

 

Bibliografia

COSTA, Germano Quintanilha. Um mal-estar não remediável: a psicanálise e a questão do sujeito. III Congresso Internacional do Conhecimento Científico. Campos dos Goytacazes. 2009a. In Perspectivas online. Disponível em: http://www.perspectivasonline.com.br/iiiCICC.php Acesso em: 12/07/2012, às 11h32.         [ Links ]

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SIMONETTI, Alfredo. Apêndice: o mapa dos remédios. In Manual de Psicologia Hospitalar: o mapa da doença. 6. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Avenida Jequitaí, 1254 – Centro
39340-970 – CORAÇÃO DE JESUS/MG
E-mail: ao.rodrigues@aol.com

RECEBIDO EM: 15/09/2012
APROVADO EM: 20/09/2012

 

 

Sobre o Autor

Arnaldo Oliveira Rodrigues
Psicólogo CRP 04/34944. Mestrando em Desenvolvimento Social – UNIMONTES.

 

 

1Este texto foi elaborado e apresentado em mesa-redonda na XXX Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Mnas Gerais, cuja temática foi “Os impasses da clínica psicanalítica”, realizada nos dias 21 e 22 de setembro de 2012, na Universidade FUMEC – Belo Horizonte.