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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte dez. 2012

 

ARTIGO

 

Desamparo e masoquismo na clínica com mulheres1

 

Helplessness and masochism in the clinic with women

 

 

Cassandra PamplonaI; Helena Melo DiasII, III; Ana Cleide Guedes MoreiraI,III

IUniversidade Federal do Pará
II Universidade do Estado do Pará
III Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A clínica sobre o modo psicopatológico masoquista nos remeteu, neste artigo, ao conceito de desamparo elaborado por Freud. Na clínica com mulheres que vivenciaram na infância crueldades e castigos infligidos pela figura materna, observa-se que diante da possibilidade de ser abandonada pelo objeto amoroso, produz-se intenso sofrimento psíquico que as remetem ao sentimento de desamparo. Nestes casos, esse masoquismo associado ao desamparo apresenta peculiaridades que afetam a difícil passagem pela castração e, consequentemente, da condição de menina a mulher.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicopatologia fundamental, Masoquismo, Desamparo.


Abstract

Our clinical work on psychopathologic masochist led us to the concept of helplessness such as developed by Freud. In clinical work with women who have experienced in childhood cruelties and punishments inflicted by the mother figure, we observed a intense mental suffering that relates to the feeling of helplessness due to the possibility of being abandoned by the love object. In such cases, masochism associated to helplessness shows peculiarities that affect the difficult passage through castration and hence to the condition of becoming a woman.

Keywords: Psychoanalysis, Fundamental psychopathology, Masochism, Helplessness.


 

 

A partir de nossa investigação clínica sobre a relação mãe e filha e suas implicações, levantamos a hipótese de um modo de subjetivação psicopatológico masoquista e nos centraremos, neste artigo, no conceito de desamparo elaborado por Freud e revisado por Birman (2005), para pensá-lo em sua articulação com o masoquismo feminino. Observam-se, com frequência, na clínica com mulheres, as fantasias construídas em torno da relação mãe e filha que reiteradamente comparecem na fala dessas pacientes, com a emergência da memória infantil. A figura materna se faz mais presente quando se configuram relações amorosas conflituosas e virulentas com parceiros que, em alguns casos, tornam-se algozes, agredindo, ofendendo, violentando-as moral e psiquicamente, o que põe em destaque o que Freud denominou de masoquismo feminino (FREUD, 2007; PAMPLONA, DIAS, MOREIRA, 2008). Diante da possibilidade de ser abandonada pelo objeto amoroso, é produzido intenso sofrimento psíquico que remete à revivescência do sentimento infantil de desamparo. Nestes casos, em que reiteradamente recorrem na vida adulta a modos de relações amorosas que atualizam essa vivência marcante de sofrimento psíquico, supomos que a manifestação masoquista dessas mulheres pode ser compreendida à luz do desamparo associado ao medo da perda do amor originário, entendendo-se a mãe como o primeiro objeto de amor tanto do menino quanto da menina, e considerando ainda o desamparo enquanto fonte do medo da perda do amor daqueles que representam proteção e abrigo (PAMPLONA, DIAS, MOREIRA, 2009a). Como afirmou Freud, “o objeto (é) uma proteção contra toda situação de desamparo” (FREUD, 1996, p.192).

Primeiramente, é importante observar que reconhecemos com Freud, desde 1897, na Carta 69 a Fliess, ao identificar as mentiras histéricas de sedução, que não se trata de fatos concretos de maus-tratos, mas sim de construções fantasísticas originadas do conflito edipiano e do rochedo da castração que fomentam a difícil relação mãe-filha. Todavia, Freud nunca deixou de tomar em consideração os efeitos traumáticos e, ainda em 1937, em Análise Terminável e Interminável, afirma que a base da etiologia de todo distúrbio neurótico contém um fator de ordem constitucional e outro de origem traumática.

No trabalho intitulado O Problema Econômico do Masoquismo, Freud (1927) vai apresentar o masoquismo sob três formas. Em relação ao primeiro – o erógeno – observa um prazer-derivado-da-dor, que também acompanha as duas outras formas do masoquismo. O masoquismo moral, considerado a forma mais importante de expressão masoquista, se manifesta por uma sensação de culpa, em geral, inconsciente. Tanto nas formas do masoquismo feminino quanto no masoquismo moral, os atos reais são apenas a execução lúdica de fantasias, lembra Freud:

Seus conteúdos manifestos podem ser: amordaçado, amarrado, surrado de forma dolorosa, ser açoitado, maltratado, obrigado à obediência inconteste, sujado e humilhado. Em casos mais raros, e apenas com grandes restrições, também incluem mutilações. É fácil interpretar que, na verdade, o masoquista quer ser tratado como uma criança pequena, indefesa e dependente e, acima de tudo, como uma criança desobediente e má” (FREUD, 1927, p.108).

Partindo dessa concepção freudiana, supomos que os maus-tratos na infância contribuíram para a constituição de um modo de subjetivação psicopatológico masoquista, nos casos dessas mulheres na vida adulta, que acabam por desencadear um sofrimento psíquico no qual a necessidade de punição se faz presente. Vejamos o caso que chamaremos aqui de Roberta, que vimos longamente investigando, e foi tratado anteriormente no trabalho Masoquismo e maus-tratos na infância (PAMPLONA, DIAS, MOREIRA, 2009b).

 

Caso clínico

Roberta tinha 28 anos, solteira, com formação superior, morava com os pais, embora tivesse residido fora de seu Estado de origem, quando realizou Pós-Graduação. Filha do meio com dois irmãos homens, já casados e que residiam no mesmo prédio dos pais. Ao procurar atendimento sua principal queixa era vivenciar reiteradamente situações conflituosas com o namorado – divorciado, doze anos mais velho –, além de agressões verbais e constantes conflitos com sua família nuclear. Roberta atribuía a si mesma o que nomeou como “descontrole emocional”.

Falar do pai era retratá-lo como uma pessoa de pouca conversa, exigente, extremamente autoritário, crítico, controlador e prepotente, que nunca foi carinhoso com os filhos, e do qual ela admite ter um medo enorme. Segundo ela, o genitor era um “desajeitado afetivo”, um “coronel” que mantinha com a esposa uma relação de dominação. A submissão de sua mãe a incomodava bastante e a via como uma “Amélia”, que era constantemente desrespeitada, tanto pelo marido quanto pelos filhos, inclusive por ela, atitudes que a revoltavam, mas também a levavam a sentir-se culpada.

Enriquez (1999) aponta o trabalho freudiano Bate-se numa criança, como inaugural sobre o masoquismo, do ponto de vista da gênese das perversões sexuais, cuja fantasia enquanto fonte de prazer e satisfação sexual (sádica e/ou masoquista) se traduz na vergonha e na culpa que a acompanham. Nessa psicopatologia a relação entre os sexos e as gerações é concebida apenas em termos de dominação-submissão. Isso pode ser assim traduzido: “ser golpeado pelas palavras, tocar e ser tocado pelas palavras, gozar, sofrer corporalmente as palavras, são para o masoquista meios de satisfazer seus mais indestrutíveis desejos inconscientes” (ENRIQUEZ, 1999, p.103 e 112).

Na dinâmica familiar de Roberta parecia existir um discurso de desqualificação feminina no qual a mulher era sempre colocada na posição de desmerecimento, de menos-valia, tanto pelo pai quanto pelos irmãos, o que se repetia na relação de Roberta com o namorado que não a respeitava, muitas vezes mandando-a calar-se, em discussões acaloradas. Sabemos que “é pela inibição do pensamento imposta [por aqueles a quem amamos] que se efetua, com maior segurança, o recalque da sexualidade e a submissão moral das mulheres – mas, a que preço!” (MILLOT, 1987, p.29).

Esse discurso cultural também brasileiro da “mulher Amélia” – mulher submissa, pronta a ceder ao desejo do outro – fez-nos refletir sobre o trabalho “Diferentes momentos da evolução feminina” (FUKS, 2002), no qual a autora ressalta, na reconstrução da história das mulheres ao longo dos séculos, a dominação social do masculino sobre o feminino e analisa a posição ocupada pelo homem:

As atividades valorizadas são as exercidas pelos homens; o masculino é designado por valores positivos e o feminino, por valores negativos. Uma única função escapa a essa desvalorização sistemática: a maternidade – mas nem por isso a mulher deixa de ser uma ‘outra’, inferior e subordinada, tendo valor apenas a descendência que ela gera” (FUKS, 2002, p.106).

No complicado romance familiar e nas suas relações amorosas, Roberta já vivenciou inúmeros rompimentos, seguidos de pedidos de desculpas, em uma compulsiva repetição masoquista. Ela parece confundir o prazer de ser amada com a dor de ser desprezada, como se, ao deixar-se humilhar, manifestasse a criança que ainda habitava Roberta, que gostaria de ser tratada como desobediente e má, por suas fantasias ambivalentes com relação a seus objetos.

A conduta de sua genitora intensificava seus conflitos e parecia apontar para uma dificuldade dessa mãe em lidar com suas próprias questões edípicas, além de revelar a violência a que também pode ter sido submetida. Roberta parece deslizar entre identificações inaceitáveis cujos atores são o ‘pai-coronel’ e uma ‘mãe-Amélia’, embora negando tal evidência. Repetia sintomas maternos dos quais parecia nada saber, embora já revelados durante o tratamento, o que nos leva a pensar no que Freud chamou de ‘imitação histérica’, que é originada de uma semelhança de elementos conservados no inconsciente (FREUD, 1987, p.163) e que mais tarde conceituou como identificação.

No percurso da análise, Roberta recuperou lembranças infantis plenas de pathos e violência, como a de uma ocasião em que a mãe estava no banho, e ela e o irmão começaram a brigar por causa de um restinho de farinha de tapioca que disputavam. Quando já se engalfinhavam, a genitora saiu do banheiro enrolada numa toalha e virou na boca da menina um copo inteiro de farinha. Nesse instante Roberta pensou que iria morrer: sem fôlego, engasgou-se, teve que ser socorrida pela mãe que ficou muito assustada com o que, furiosa, fizera. Mas para Roberta era difícil reconhecer e admitir a violência materna, que efetivamente colocou sua vida em perigo, nesse episódio de maus-tratos que, sem dúvida, constituiu uma situação traumática de desamparo, no sentido freudiano (FREUD, 1926-1925/1996, p.191).

Mas a violência vivida na família não se restringia aos maus-tratos maternos, e numa cena que ela relatou com dolorosa dificuldade, estava com uns seis anos, quando foi abusada sexualmente pelo avô paterno, que sentado na cabeceira da mesa, lugar de poder na família, e com ela de pé ao seu lado, por debaixo da toalha passava a mão por seus genitais, enquanto ela ficava atônita e estarrecida, sem saber o que fazer por um período que lhe pareceu interminável, até que alguém a chamou e ela se deslocou. Guardou isso como um segredo penoso que só veio revelar anos depois em sua análise. Nesse ponto claramente identificou-se com sua mãe, revelando ainda que o avô tentara beijar sua mãe à força, razão por que foi expulso da casa por seu pai.

Roberta trazia, repetidamente, um sentimento de menos-valia, de pouco amor próprio e inferioridade, indicando dificuldades na constituição de um narcisismo que lhe permitisse entrar em contato com seus próprios sentimentos hostis, decorrentes das sucessivas agressões familiares que relatava, as quais, mesmo sob transferência, a levavam a resistir tenazmente em fazer avançar sua análise, sempre colocando a analista no lugar daquela que seria capaz de defendê-la, refugiando-se na posição infantil de vítima desamparada diante do outro violento. Desse modo, Roberta evidenciava a satisfação de um sentimento inconsciente de culpa, que se satisfazia na injunção superegoica de sofrer para ser amada. Isso irá repetir na relação com o namorado, quando anunciou que pretendia se casar e abandonar a análise, idealizando que nesse casamento iria encontrar a solução de sua vida.

Birman, no capítulo intitulado “A sustentável leveza do psicanalista: variações sobre o desamparo e a feminilidade”, ressalta:

Na posição masoquista, o sujeito se agarra e se cola a um outro, oferecendo a este, em contrapartida, seu corpo como objeto de gozo, para assim evitar, custe o que custar, a tragicidade da experiência do desamparo. A solidão que esta experiência implica é insuportável para essas individualidades, de forma que elas preferem se agarrar à fábula fálica do outro do que suportar o real da angústia. Portanto, o que caracteriza a subjetividade masoquista não é o desejo primário de ser humilhado, ou tampouco o desejo de sentir dor. Estes são desejos que o perpassam, sem dúvida, mas de maneira secundárias, derivações que são da impossibilidade de suportar o desamparo” (BIRMAN, 2005, p.47).

 

Considerações finais

Este parece ter sido o único caminho que Roberta se permitiu seguir: submeter-se ao outro. Escolhendo casar-se, mesmo sabendo de antemão as dificuldades e o sofrimento que já enfrentava nesse par, nada foi empecilho à sua busca de um objeto para se fundir, negando a angústia e o sentimento de desamparo que, para a psicanálise, são fundamentos psicopatológicos irredutíveis da condição humana.

 

Bibliografia

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.         [ Links ]

ENRIQUEZ, M. Nas encruzilhadas do ódio: paranóia, masoquismo, apatia. Trad. Martha Gambini. São Paulo: Escuta, 1999.         [ Links ]

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). ESB, v.IV. Rio de Janeiro: Imago, 1987.         [ Links ]

FREUD, S. Carta 69 (1897). ESB, v.I. Rio de Janeiro: Imago, 1987.         [ Links ]

FREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924). Escritos sobre a psicologia do inconsciente, v.III; 1923-1940/Sigmund Freud; [coordenação geral da tradução Luiz Alberto Hanns; trads. Claudia Dornbusch...[et al.]; consultores da teoria da trad. João Azenha Jr. e Suzana Kampff Lages]. Rio de Janeiro: Imago, 2007.         [ Links ]

FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926[1925]). ESB, v.XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.         [ Links ]

FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937 [1936]). ESB, v.XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.         [ Links ]

FUKS, L.B. Diferentes momentos da evolução feminina. In: ALONSO, S. L.; GURFINKEL, A. C.; BREYTON, D. M. [Orgs.]. Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo. São Paulo: Escuta, 2002.         [ Links ]

MILLOT, C. Freud antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.         [ Links ]

PAMPLONA, C.; DIAS, H.; MOREIRA, A.C. Masoquismo feminino e maus-tratos maternos. Trabalho apresentado 3º Congresso Internacional de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Niterói – RJ, 2008. Publicado em http://www.psicopatologiafundamental.org.         [ Links ]

PAMPLONA, C.; DIAS, H.; MOREIRA, A.C. Masoquismo e a noção de desamparo na clínica com mulheres. Trabalho apresentado no Colóquio Internacional sobre o Método Clínico, em São Paulo, 2009a. http://www.psicopatologiafundamental.org.         [ Links ]

PAMPLONA, C.; DIAS, H.; MOREIRA, A.C. Maus-tratos na infância e masoquismo. Trabalho apresentado no 6º CONPSI - 6º Congresso Norte e Nordeste de Psicologia. Belém/Pará, 2009b.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Boaventura da Silva, 361/1404 – Reduto
66053-050 – BELÉM/PA
E-mail: cassandra.pamplona@gmail.com

RECEBIDO EM: 17/09/2012
APROVADO EM: 20/09/2012

 

 

Sobre as Autoras

Cassandra Regina de Amorim Pamplona
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP. Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental/LPPF/ UFPa.

Helena Maria Melo Dias
Psicóloga. Psicanalista. Professora Adjunta III da Universidade do Estado do Pará/UEPa. Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/AUPPF. Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental/LPPF/UFPa.

Ana Cleide Guedes Moreira
Psicóloga. Psicanalista. Professora na Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará/UFPa. Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/AUPPF. Diretora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental/LPPF/UFPa.

 

 

1 Este trabalho foi apresentado na XXX Jornada de Psicanálise do CPMG, em 21/22 de setembro de 2012, Belo Horizonte/MG.