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Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.34 no.64 Belo Horizonte dez. 2012

 

ARTIGO

 

Filho é problema da mãe: um olhar que agita

 

Son is a mother's problem: a view that agitates

 

 

Patrícia Teixeira Ribeiro

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda a clínica psicanalítica com crianças e visa mostrar, por meio de uma vinheta, como elas nos dão indicações fundamentais que orientam o analista na direção do tratamento.

Palavras-chave: Psicanálise com crianças, Sintoma, Angústia, Vergonha.


Abstract

This paper talks about psychoanalytic clinic with children and aims to show, by a clinic vignette, how children give us fundamental indications that guide analysts in the direction of treatment.

Keywords: Psychoanalysis with children, Symptom, Anguish, Shame.


 

 

A clínica psicanalítica com crianças, de acordo com a orientação de Lacan, parte do princípio de que seus sintomas se relacionam com a economia de gozo do par parental. Dito de outro modo, ou eles indicam o que há de sintomático no casal ou dão mostras de que o filho realiza a presença do objeto da fantasia materna. Na primeira hipótese, a estrutura sintomática comporta uma dialetização instaurada pela incidência da função paterna. No segundo caso, os sintomas da criança desvelam sua posição de objeto do gozo de uma mãe que se apresenta como toda para o filho.

O início do tratamento é norteado pela localização do modo de gozo veiculado no sintoma da criança e pelo saber relativo à subjetividade dos pais que o analista recolhe nas entrevistas, buscando, especialmente, distinguir o valor fálico e o valor de gozo conferido pela mãe ao seu objeto-criança. O caso que ora abordamos permite verificar como, por meio do sintoma somático, o filho pode ser esse objeto que ‘dá corpo’ ao desconhecimento, por parte do Outro materno, da verdade da castração, conforme expressou Lacan (2003).

Trata-se de uma criança cuja organização familiar reproduz o modelo monoparental, tão comum em nosso tempo, na qual o pai não se faz presente. L, uma menina de seis anos, com sintomas somáticos – crises alérgicas graves associadas à alimentação e dores abdominais sem causa definida –, se vê às voltas com o trabalho de construção de uma distância simbólica que relativize a onipresença da mãe e o férreo controle de seu olhar. Somos parceiras em um percurso que visa permitir que a criança possa construir um saber que a separe da posição de objeto que tampona a relação de sua mãe com a falha feminina, o que implica não se colocar a serviço da libido materna.

 

Ver e não ver: esboço de um movimento de separação

É possível distinguir dois momentos nesse tratamento: em um primeiro, vemos o sujeito às voltas com a revalidação de sua entrada na dimensão simbólica e da perda que ela comporta, por meio de jogos de aparecer e desaparecer, paradigmático do processo de constituição do sujeito. A este se segue um segundo tempo, marcado pela subjetivação da diferença sexual, afirmando, portanto, o reconhecimento da falta fálica, cujo índice, nesse caso, é o surgimento da vergonha.

Segundo o relato da mãe, L. nasceu a partir de um breve relacionamento e atualmente a menina não tem mais qualquer contato com o pai. Ouço-a queixar-se repetidas vezes de como lhe é penoso cuidar sozinha da filha. Cita, como exemplo, as inúmeras noites em que passou em claro quando L era bebê, pois mesmo enquanto dormia o corpo da criança não parava de se agitar.

Mãe e filha vivem hoje em uma espécie de reclusão justificada por um comentário da avó materna que, para a mãe de L, tornou-se um aforismo: filho é problema da mãe. Essa frase com um tom superegoico a impede de deixar a criança aos cuidados de quem quer que seja para, por exemplo, eventualmente sair e se distrair. L vive sob o jugo de um olhar implacável de controle, pois nada pode escapar à boa imagem que a mãe precisa sustentar frente ao olhar do Outro. Ela também justifica sua presença constante junto à filha dizendo que precisa estar sempre de olho, atenta ao que a criança come, para evitar que tenha novas crises alérgicas.

As primeiras sessões de L se fazem com a presença da mãe, pois a menina se cola junto a seu corpo quando abro a porta para recebê-la. Aos poucos, L suporta entrar sem a mãe sob a condição de, eventualmente, abrir a porta para vê-la e, posso acrescentar, ser vista. Não por acaso este processo de separação é marcado por um jogo que insiste durante um longo tempo: ela me pede para brincar de esconder, desaparecendo do meu olhar para em seguida ser reencontrada.

Gradualmente, outros elementos vão surgindo e desenhando o romance familiar que L aos poucos vai construindo. Ela passa a trazer bonecas-filhas às sessões e me ensina como cuidar delas. Inicialmente são todas meninas, pois os meninos, conforme ela me explica, são muito agitados. Pergunto-lhe se alguém já lhe dissera a mesma coisa sobre os meninos e, sem hesitar, L afirma que sua mãe considera os meninos mais agitados que as meninas.

Tempos depois, às filhas imaginárias sucedem os filhos. É nesse momento também que se introduz o tema da vergonha. L passa a cuidar de seus filhos homens, dando-lhes comida, banho, porém, com uma ressalva: eu não devo vê-la trocando fraldas ou ficar por perto quando o filho estiver dormindo, pois isso pode agitá-lo. A agitação ao dormir é provocada por minha excessiva proximidade. Por outro lado, vê-los despidos causa-lhes vergonha e, consequentemente, agitação.

Em determinada sessão eu lhe pergunto se, assim como os filhos, ela também teria vergonha de alguma coisa. L se retrai e diz que jamais me falaria sobre isso, ao que eu aquiesço. No entanto, na semana seguinte, sua mãe me liga para dizer que L não quer mais retornar ao tratamento. Converso com a mãe e L retorna. Contudo, retornam também as dificuldades em se separar da mãe. Agarrada a ela e a um boneco, ela não me dirige a palavra até o momento em que passo a me interessar pelo “filho”. Imediatamente, ela se põe a falar dele, pois da vergonha deste outro ela precisa falar.

 

A vergonha e sua relação com o gozo

Em seu artigo de 1932, Freud (in CALDAS et al., 2012) considera o pudor um afeto tipicamente feminino, cuja função seria a de velar a falta fálica. Entretanto, Miller (in CALDAS et al., 2012) observa que, paradoxalmente, este mesmo véu do pudor que recobre, aponta para a existência de algo que captura o olhar, sublinhando assim seu valor fálico. Esse autor o distingue da vergonha considerando-a um afeto provocado pelo gozo, cuja função seria a de erigir uma barreira, uma defesa ao mais de gozar.

O que L deixa entrever é que o surgimento da vergonha produz uma redução do excesso pulsional, regulando um olhar que se apresenta intrusivo e, por conseguinte, diminuindo a angústia que agitava seu corpo. Lacan se distancia de Freud ao afirmar que a angústia não decorre da ausência de objeto. Ao contrário, ela surge “quando a falta vem a faltar, ou seja, quando há objeto demais1. Recentemente, a mãe de L comentou que as dores no corpo da criança desapareceram.

É curioso pensar na importância de uma análise sustentar o uso da vergonha como saída para um sujeito, em um tempo no qual impera a vergonha de não se ter gozado ainda mais, o que significa dizer que “o discurso [hoje] dominante determina que não se tenha mais vergonha de seu gozo2. A vergonha assim concebida é um dos efeitos da oferta que a ciência nos faz, em aliança com o imperativo de consumo ditado pela ordem capitalista, colocando no mercado, e ao alcance de todos, soluções de gozo antes limitadas ao terreno da fantasia.

Nesse caso, o surgimento contingencial da vergonha permitiu tomá-la como um operador no tratamento, em uma perspectiva distinta de um juízo moral calcado em ideais que, por essa razão mesma, desconheceriam as implicações subjetivas envolvidas nos sintomas da criança impedindo-lhe assim a busca por soluções particulares para seus impasses com a pulsão.

 

Bibliografia

FREUD, S. Feminilidade. In CALDAS, H.; MURTA, A.; MURTA, C. (Orgs.). O feminino que acontece no corpo. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p.15-47.         [ Links ]

LACAN, J. Nota sobre a criança. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.         [ Links ]

MILLER, J.-A. Mulheres e semblantes. In CALDAS, H.; MURTA, A.; MURTA, C. (Orgs.). O feminino que acontece no corpo. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p.49-89.         [ Links ]

MILLER, J.-A. Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan. Opção Lacaniana. São Paulo: Eólia, n.43, p.56-7, maio/2005.         [ Links ]

MILLER, J.-A. Nota sobre a honra e a vergonha In Opção Lacaniana, São Paulo, Eólia, n.38, p. 8-18, dezembro de 2003.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Avenida Cristóvão Colombo, 519/1303 – Funcionários
30140-140 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.:(31)3223-1859
E-mail: patriciateirib@gmail.com

RECEBIDO EM: 13/09/2012
APROVADO EM: 20/09/2012

 

 

Sobre a Autora

Patrícia Maria Teixeira da Costa Ribeiro
Psicanalista. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.

 

 

1MILLER, J.A. Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan. In Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n. 43, p.56-7, maio/2005.
2MILLER, J.A. Nota sobre a honra e a vergonha. In Opção Lacaniana, São Paulo: Eólia, n.38, p.8-18, dez./2003.