SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.35 número65O corpo imóvel e sua imagem imortal índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte jul. 2013

 

Suicídio, religião e cultura: reflexões a partir da obra “Sunset Limited”

 

Suicide, religion, culture: reflections on the movie “Sunset Limited”

 

 

Anna Bárbara de Freitas Carneiro

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta reflexões sobre suicídio, religião e cultura, baseadas em contribuições de Freud e nos conceitos de Durkheim sobre o suicídio, tomando como espelho uma obra literária transposta para o cinema, que contrapõe um homem religioso desejoso de ajudar seus semelhantes com um agnóstico que quer se suicidar.

Palavras-chave: Religião, Cultura, Freud, Ateísmo, Suicídio, Durkheim.


ABSTRACT

This work presents reflections on suicide, religion and culture, based on the contributions of Freud, as well as the concepts of Durkheim about suicide, reflecting on a literary piece transformed in a movie, which contrasts a religious man willing to help his brother mankind with an atheist that is willing to commit suicide.

Keywords: Religion, Culture, Freud, Atheism, Suicide, Durkheim.


 

 

Muito antes de conceituar a noção da pulsão de morte e de teorizar o narcisismo, o luto e a melancolia, Freud se interessou pela questão do suicídio, abordada com frequência na Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras. Por iniciativa de Adler, foi organizada em 1910 uma reunião dedicada ao suicídio de crianças e adolescentes. Em seguida, Freud retornaria a esse tema, numa tentativa de relacionar a forma de suicídios e a diferença sexual. A escolha de uma forma de suicídio revelaria um simbolismo sexual mais primitivo; o homem se mata com um revólver, ou seja, joga com seu pênis, ou então se enforca, isto é, se transforma em algo que pende em todo o seu comprimento. A mulher, segundo ele, conhece três formas de se suicidar: saltar de uma janela, se atirar na água ou se envenenar. Pular da janela significaria dar à luz, atirar-se na água significa trazer ao mundo e se envenenar significa a gravidez. Assim, mesmo ao morrer, a mulher cumpriria sua função sexual na concepção freudiana. Freud também atribuiu certos suicídios de crianças ao medo de incesto (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Em seu artigo Luto e melancolia (1917), Freud apresentou o suicídio como uma forma de autopunição, um desejo de morte dirigido a outrem, que se vira contra o próprio sujeito. Nesse caso, o suicídio seria o ato de matar a si mesmo para não matar o outro. Assim, ele confirmou as três tendências suicidas definidas pela psicopatologia: desejo de morrer, desejo de ser morto, desejo de matar. O suicídio seria consequência não de uma neurose ou psicose, mas de uma melancolia ou um distúrbio narcísico grave: não um ato de loucura, mas a atualização da pulsão de morte através de uma passagem ao ato (acting out) (FREUD, 1917).

 

O futuro de uma ilusão: a religião como um modo de coerção da pulsão de morte e destruição

No texto O futuro de uma ilusão, Freud (1927) nos diz que a religião é a neurose obsessiva universal da humanidade. Tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai. O pai primevo constituiu a imagem original de Deus, o modelo pelo qual as gerações posteriores deram forma à figura de Deus.

Os crentes são em alto grau salvaguardados do risco de certas enfermidades neuróticas, pois sua aceitação da neurose universal poupa o trabalho de elaborar uma neurose pessoal. Os ensinamentos religiosos são considerados por Freud como relíquias neuróticas. As verdades contidas nas doutrinas religiosas são deformadas e sistematicamente disfarçadas; assim, a massa da humanidade não pode identificá-las. Ainda segundo Freud, o crente se encontra ligado aos ensinamentos da religião por certos vínculos afetivos. Outras pessoas, que não são crentes, obedecem aos preceitos da religião porque se deixam intimidar por suas ameaças e tem medo dela enquanto se veem obrigados a considerá-las parte da realidade que as cerca. São pessoas que desertam tão logo lhes é permitido abandonar sua crença no valor de realidade da religião.

Freud afirma que os dois principais pontos do programa de educação infantil consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura. Comenta que, quando o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. E pergunta ao leitor se acha que isso seria algo que conduz ao fortalecimento da função intelectual, esse campo tão importante de ser fechado pela ameaça do fogo do inferno. Afirma ainda que, quando um homem se dispõe a aceitar sem crítica todos os absurdos e contradições das doutrinas religiosas, não devemos ficar surpresos com a debilidade de seu intelecto. E que não dispomos de outra maneira de controlar nossas pulsões, a não ser por nossa inteligência. E pergunta: “Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições do pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência?” (FREUD, 1927, p. 55) E diz ainda:

"Enquanto os primeiros anos de vida de uma pessoa forem influenciados não só por uma inibição sexual mental, mas também por uma inibição religiosa, e por uma inibição leal derivada desta última, não podemos realmente dizer a que ela se assemelha" (FREUD, 1927, p. 56).

E acrescenta:

"...estamos justificados em ter esperanças no futuro — a de que talvez exista ainda a ser desenterrado um tesouro capaz de enriquecer a civilização, e que vale a pena de fazer a experiência de uma educação não religiosa. Se ela se mostrar insatisfatória, estou pronto a voltar a meu juízo anterior... de que o homem é uma criatura débil, governada por seus desejos instintuais" (FREUD, 1927, p. 56).

Freud adianta ainda que os que foram mais sensatamente criados, que não necessitam um intoxicante para amortecer a neurose, terão que admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e de sua insignificância na maquinaria do universo. Não poderão admitir ser o centro da criação, o objeto de um terno cuidado por parte de uma Providencia benevolente. Seria como deixar a casa paterna, onde estão abrigados e confortáveis. “Os homens não podem permanecer crianças para sempre, tem de, por fim, sair para a ‘vida hostil’” (FREUD, 1927, p. 24).

E acrescenta que os homens sem a religião não estariam sem assistência, que a ciência lhes ensinou muito e que aumentará seu poder ainda mais. E, em relação às ilusões, os homens de ciência estão mais bem equipados: “Visto estarmos preparados para renunciar a uma boa parte dos desejos infantis, podemos suportar que algumas de nossas expectativas mostram que não passam de ilusões” (FREUD, 1927, p. 27). E arremata dizendo: “Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar” (FREUD, 1927, p. 71).

 

O mal-estar na civilização e a religião como paliativo

Freud discute em “O mal-estar na civilização” (FREUD, 1929-1930) sobre a nossa certeza sobre o ‘eu’, que nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente destacado de tudo mais. Ele destaca que esse eu é continuado internamente, sem nenhuma delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente, o “isso”, à qual o “eu” serve de uma espécie de fachada. Em relação ao exterior, contudo, as fronteiras são bem demarcadas, exceto talvez o estado de amor, onde a fronteira entre o eu e o objeto ameaça desaparecer.

No entanto, em perturbações causadas por estados patológicos as linhas fronteiriças entre o eu e o mundo externo se tornam incertas ou às vezes incorretamente traçadas. Há casos em que partes do próprio corpo da pessoa, inclusive partes de sua vida mental (percepções, sentimentos, pensamentos) lhe parecem estranhas e não pertencentes ao seu eu; há outros em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas claramente originadas de si mesma, e que por isso mesmo deveriam ser reconhecidas pelo eu, dentro do “princípio da realidade”.

Freud situa a origem da atitude em um sentimento de desamparo infantil. Em relação à “unidade com o universo”, que constitui o conteúdo ideacional do “sentimento oceânico” (mencionado por seu amigo Romain Rolland) soaria, segundo Freud, como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como se configurasse outra maneira de rejeitar o perigo que o eu reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo. Da mesma forma, outras obscuras modificações da vida mental, como os transes e êxtases, poderiam ser consideradas regressões a estados primordiais da mente que há muito foram recobertos. E Freud termina o capítulo citando Schiller, jocosamente: “Regozije-se aquele que aqui em cima respira, na rósea luz!” (FREUD, 1929-1930).

A vida humana é em geral árdua demais, com muitas decepções, sofrimentos, tarefas impossíveis, e para suportá-la, necessitamos de medidas paliativas. Freud cita três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. A atividade científica constitui um derivativo, e as artes são ilusões, mas são efetivas psiquicamente, graças ao papel que as fantasias têm na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam o corpo e alteram sua química.

E a religião? Onde entraria nessa série? Freud nos diz que a religião estabelecida é um sistema de doutrinas e promessas que explicam os mistérios deste mundo; por outro lado, garantem ao crente que uma Providência cuidadosa velará por ele e o compensará, numa existência futura de quaisquer desapontamentos e vicissitudes que porventura ele tenha aqui nesta existência. Essa Providência assume a forma de um pai, ilimitadamente engrandecido, que compreende as necessidades dos homens, se enternece com suas preces e se aplaca com seus sinais de remorso. Essa atitude infantil é deplorável, segundo Freud, pois se trata de uma visão distorcida e limitada, que as pessoas defendem apesar de toda a evidência em contrário, ou melhor, sem a menor evidência da possibilidade de existência de um tal Deus. Freud cita Goethe: “Aquele que tem a ciência e a arte, tem também religião: o que não tem nenhuma delas, que tenha religião”. Essas frases demonstram a antítese entre a religião e as duas mais altas realizações do homem, e, em relação ao seu valor na vida, essas realizações podem se representar, se substituir mutuamente. Se privarmos de sua religião o ser comum, que não tem arte nem ciência, ele buscará alívio de sua angústia em outro local, nos bares, nas drogas, na violência.

Segundo Freud, somos movidos em nossa busca da felicidade pelo princípio do prazer, mas essa felicidade é difícil de encontrar. A infelicidade, por outro lado, é bem mais comum e persistente, tendo sua origem de três fontes: nosso corpo e sua decadência, as vicissitudes provenientes do mundo externo e as relações com os outros seres humanos. A tarefa de evitar sofrimento coloca a busca de prazer em segundo plano. A tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade é efetuada por um número considerável de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal.

 

A obra O Sunset Limited: nada é jamais branco ou preto

O filme, dirigido por Tommy Lee Jones em 2011, foi baseado na peça teatral homônima escrita por Cormac McCarthy. Ele consiste no diálogo de um professor branco e culto, White (interpretado por Tommy Lee Jones) e um ex-presidiário negro e iletrado, Black (vivido por Samuel Lee Jackson). Eles debatem sobre a vida e a morte, no apartamento do evangélico Black, após este salvar o professor ateu White, que ia se jogar à frente de um trem chamado “Sunset Limited”. Black se recusa a deixar White sair, e os dois falam da vida, da morte, de religião, de crenças, de sua infância, do percurso de ambos na vida. Por vezes, acreditamos que Black vai convencer White de não tentar o suicídio novamente, às vezes achamos que White convencerá Black que Deus não existe. Durante o desenrolar do diálogo, Black assume uma posição de analista, em sua escuta em uma poltrona, com White deitado no sofá, voltado para outro lado, discorrendo sobre sua infância, enquanto Black faz alguns apartes. Finalmente, após longa e convincente exposição do professor de que não seria possível sua conversão, Black o deixa ir embora, e o filme termina após o diálogo de Black com Deus, em que ele lamenta que Deus não tenha lhe dado as palavras necessárias para convencer o professor a não se jogar na frente do trem.

No final, nem Black foi capaz de convencer White da existência de Deus e do horror do suicídio, nem o discurso de White, apesar de ter propiciado sua partida, foi suficiente para destruir a fé de Black. Os dois persistiram em seu caminho, mas saíram mudados, mexidos. Daí o subtítulo do filme, “nada é jamais preto ou branco”, isto é, após interação tão intensa, eles já não eram os mesmos, suas inabaláveis convicções se misturaram, se tornaram cinza. E, se prosseguiram em seu caminho, do suicídio e da crença, foi talvez por escolha de sujeitos desejantes, foi por se submeterem à pulsão de morte e à de vida, respectivamente.

A religião e Deus, no caso de Black, servindo de suporte psíquico, a moldar suas pulsões, a lhes dar um freio, um caminho, no sentido da vida, de ajuda ao próximo, de controle do impulso de morte e destruição que ele viveu anteriormente, quando jovem delinquente e prisioneiro. Na enfermaria da prisão, após partir a cabeça de outro detento em uma briga por motivo menor, ele teve a “visão de Deus”, que falou com ele e lhe ditou as normas de seu futuro viver. Isto é, ele se converteu ou retornou a uma crença infantil, pois, apesar de não ter sido falado no filme, especulamos que essa vivência delirante somente seria possível por um retorno aos ensinamentos religiosos da infância.

 

Suicídio e civilização

O suicídio, definido como o “ato ou efeito de suicidar-se” e suicidar-se como “dar a morte a si próprio” ou “arruinar-se por culpa de si mesmo, perder-se” (FERREIRA, 1983) um ato tipicamente humano, aparece em todas as sociedades, deste os tempos primeiros. No entanto, diferenças marcantes existem entre a atitude das sociedades frente ao suicídio, na maneira pela qual ele é cometido, e na sua frequência em diversas épocas da história da humanidade (FUNK; WAGNALLS, 1971).

Na Europa antiga, especialmente na época do Império Romano, o suicídio era um ato aprovado e às vezes até honroso. Influenciados pela doutrina estoica, os romanos reconheciam muitas razões legítimas para o suicídio. Filósofos romanos como Sêneca consideravam o suicídio como o último ato de um homem livre.

No entanto, para Santo Agostinho o suicídio era essencialmente um pecado. Vários concílios da igreja católica definiram que aqueles que cometessem suicídio deveriam ser privados dos ritos fúnebres da igreja, bem como impedidos de ser enterrados em cemitérios “sagrados”, isto é, abençoados pela igreja. A lei medieval promovia o confisco dos bens do suicida, e os costumes da época permitiam a mutilação do corpo.

Na lei inglesa, todas as propriedades do suicida eram interditadas aos herdeiros, mas isso era frequentemente evitado pela alegação de insanidade, e a lei foi abolida em 1870. Na Inglaterra, um estatuto em 1823 permitia enterrar suicidas em terreno sagrado, mas os rituais não foram liberados até 1882. A atitude em relação ao suicídio nesse país foi mudando de avaliação moral para abordagem de tendência psicossocial.

O suicídio é hoje ilegal em muitos países; em outros, é condenado por meios não legais, geralmente religiosos, especialmente naqueles de maioria católica. No outro extremo, existem aquelas sociedades que valorizam o suicídio, como o Japão no passado recente, onde era honroso praticar o “hara kiri”, em que um indivíduo envergonhado se redime por seu fracasso através de uma morte ritual, onde o abdome é cortado por uma adaga. No entanto, a extensão do saber psiquiátrico no final do século XIX, caracterizando o suicídio como uma psicopatologia, como veremos a seguir, acarretou a depreciação de um ato sumamente valorizado na sociedade dos samurais. Porém, durante a Segunda Grande Guerra, pilotos japoneses camicase consideravam uma honra praticar missões suicidas, derrubando seus aviões sobre alvos inimigos.

É muito comum a associação do suicídio com a depressão, separações, fracassos na escola ou no trabalho. Ele é frequentemente visto como um escape do mundo ou de uma situação de doença terminal, ou pode ser uma reação de vingança contra pessoas ou instituições que teriam falhado frente ao indivíduo. Esses sentimentos frequentemente estão aparentes nas mensagens deixadas por suicidas. Uma ameaça àquilo que torna a vida aceitável, como saúde, bens materiais, presença de um ente amado, pode levar à crença de que o suicídio é uma fuga possível.

Foi observada alta taxa de suicídios na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial e após a Grande Depressão, que sucedeu a queda da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929. Também após a morte de ídolos como James Dean, nos Estados Unidos, e de um jovem príncipe em uma ilha do Pacífico, aconteceram suicídios de jovens adolescentes em grande escala. Suicídios podem também ser considerados formas de protesto político contra governos, leis ou situações.

Alguns autores acreditam que o aumento da longevidade nos países ocidentais influencia pessoas em faixas etárias mais avançadas, com doenças terminais, a cometer suicídio. As pressões sobre jovens estudantes pode também levar a um aumento do suicídio na faixa etária entre 15 e 24 anos, o que pode ser explicado também pela crescente urbanização, com sensação de perda das raízes, aumento da solidão e perda de sentido da vida. Embora as estatísticas de suicídio sejam falhas devido à subnotificação, o suicídio reportado triplicou nos Estados Unidos a partir da década de 1950 até os anos 1980, quando se tornou a terceira causa de mortalidade nessa faixa etária. Nas estatísticas recentes nesse país, por outro lado, vemos que predominam nos suicídios pessoas do sexo masculino de cor branca, e que o grupo de mulheres negras apresenta as menores taxas.

Excluídas doenças psiquiátricas ou somáticas que poderiam ser determinantes, o suicídio pode ser considerado, em algumas situações, uma livre escolha do sujeito.

 

Suicídio, sociologia e patologia

Rejeitado pelo cristianismo como um pecado, um crime contra si mesmo e contra Deus, ou como uma possessão demoníaca, o suicídio escapou à condenação moral no final do século XIX, transformando-se em sintoma de uma doença social ou psicológica, estudada com a objetividade de um olhar científico.

O instigador dessa ruptura foi Émile Durkheim (1858-1917). O suicídio, segundo Durkheim (1897), é um fenômeno social, que reflete a frouxidão das normas sociais; consequentemente, a coesão grupal e a solidariedade estão ausentes. Ele vê no suicídio o sintoma de um trauma cultural, a expressão de um conflito comunitário proveniente ou resultante de uma dissolução parcial, mas profunda das três forças coercitivas clássicas da civilização ocidental: a família, o Estado e a religião. Em sua teoria sobre o suicídio, ele acredita que a religião promove valores compartilhados, interação e limites sociais fortes que reduzem a sensação de isolamento e, ao mesmo tempo, estabelecem um conjunto de ideais pelos quais viver, constituindo-se um fator que ajuda contra o suicídio. Porém, o outro extremo também é verdadeiro. Onde vínculos afetivos e religiosos são muito fortes pode haver suicídio, como nos casos dos homens-bomba islâmicos.

No entanto, a abordagem sociológica de Durkheim não dá conta de uma dimensão essencial do suicídio, presente em todas as formas de morte voluntária: o desejo de morte, isto é, o aspecto psíquico do ato suicida. Por isso, sua visão não se aplica aos grandes casos de suicídio narrados pela literatura, como Emma Bovary, de Flaubert, e Werther, de Goethe. Na sociedade vienense do início do século XX eram numerosos os casos de suicídio entre os intelectuais, particularmente os judeus, para quem a morte voluntária era uma maneira de acabar com uma “judeidade” vivenciada à maneira do “ódio judeu de si mesmo”, de que Freud tinha consciência, como no caso de Otto Weininger. Quanto ao caso de Natham Weiss, jovem neurologista promissor que se enforcou, Freud o atribuiu a uma incapacidade de suportar o menor ataque a seu narcisismo (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Embora alguns estudos demonstrem que ter uma religião aumenta a culpa e aversão a esse ato, pensamentos suicidas significativos são encontrados em pessoas religiosas em quantidade maior do que em pessoas que se definem sem religião. Esse percentual elevado de ideação suicida entre os crentes pode ser explicado pela maior pressão psicológica pessoal e social a que eles são submetidos para ter uma melhor qualidade de vida, pois supostamente possuem a seu favor um ser onipotente que os ama, mas na prática isso não os deixa em um patamar melhor, aumentando assim a ansiedade. Talvez isso não aconteça com o ateu que vê mecanismos naturais e seu próprio desempenho como a causa de suas adversidades, evitando mais uma fonte de depressão oriunda do desejo de ajuda divina. Por outro lado, como num efeito colateral, o crente, embora mais depressivo, mantém esperança de melhora e temor em sua divindade que o desestimula a concretizar o suicídio. E o ateu, menos depressivo, mas sem essa “anestesia cultural”, pode ceder com mais facilidade à tentação de dar cabo à própria vida numa situação difícil, por exemplo, a dor de um câncer terminal ou o abandono familiar na velhice. Entendendo-se dessa forma, é admissível dizer que o ateu, mesmo tendo menos pensamentos suicidas e depressivos que o religioso, é mais vulnerável ao suicídio por não limitar tal ato pelo temor divino.

 

Discussão

O filme é intenso. O diálogo se mantém. Destaca-se a importância das palavras: “Não encontrei as palavras que me levariam até ao coração do professor”. O professor é o que sabe, o que tem as palavras. O filme fala sobre a escolha entre viver e morrer. A morte, sobretudo quando é atingida através do suicídio, traz sempre consigo um mal-estar, é um tabu. O filme mostra um solitário total: o homem branco, White, não tinha para quem deixar mensagem, um bilhete de despedida. Quando Black insiste com ele sobre amigos, White disse que tinha só um amigo que não era tão amigo assim, era mais uma pessoa com quem ele almoçava ocasionalmente. Quando fala na família, é com horror.

A religião permeia o filme o tempo inteiro: um com crenças, e outro sem crenças. White aparentemente tentou buscar sentido na cultura, nas artes, nos livros, mas ficou no desamparo: nada preencheu o vazio. Black, por outro lado, teve a revelação, que “o salvou”. Salvou de quê? Como? Ele pôde continuar vivendo. Achou um caminho. A vida ficou mais suportável. Amando e trabalhando. Uma religião muito bem posta: ele se dá aos outros. Não é dogmática, nem partidária. Black não se tornou um crente comum. Questionava a Bíblia, menciona estar em desacordo com o pecado original. Acredita na bondade original, que faz a pessoa ter fé. Teve um ganho narcísico, Deus falou com ele na prisão: o narcisismo é essencial para sobreviver.

O mundo de Black é o outro: o “irmão” que ele quer ajudar. Para White, o outro é o horror, o inferno. Mas, então, por que ele escolheu esta morte — pular na frente de um trem, o “Sunset Limited”, cheio de gente — ao invés de uma morte solitária, isolada? Estaria marcando uma busca de laço, um laço final?

Chama atenção o fato de White se horrorizar com a possibilidade da continuação da vida após a morte. Quer o nirvana, zero de energia, escuridão, solidão. Há um mal-estar que é constitutivo em White. White não tinha laços afetivos, não foi ver o pai moribundo, não queria encontrar a mãe de novo, no além-túmulo, tinha horror de pensar nisso. Édipo mal resolvido?

Black, por outro lado, é visceral, gosta da vida, gosta de cozinhar, gosta de ajudar seus amigos drogados. De onde vem a capacidade de ter fé? Essa capacidade que o Black tem, e o White não tem. Black passou por muito sofrimento. Nem tem coragem de dizer o que fez de pior.

Mas para o professor não havia argumento contra o suicídio. A base para não viver era muito forte. Ele suportou ter ouvido, suportou o diálogo, chegou a deitar no divã. Houve durante o filme uma mudança de papéis; houve o solilóquio. Mas ele estava em um estado depressivo e relata que com o tempo passou a ver tudo igual; pessoas e coisas eram iguais, sem sentido, sem significado. Durante o filme, ele mostra muita inquietude: toda hora quer ir embora, não se sabe para onde, se ele vai novamente tentar se matar.

Onde existiria algo que salvasse aquele homem? Ambos tocaram em uma terceira hipótese que desse aquele homem que dizia querer morrer algo que ele pudesse ser escutado: que a vida é um lixo mesmo; viver é muito perigoso, como diz Guimarães Rosa. Ou como Maiakovski: morrer não é difícil; difícil é viver. Difícil ofício de viver. Uma crença não é suficiente. O amor do outro não é suficiente. Momentos essenciais, em que o amor do outro não é suficiente para subjetivar a vida dele, são uma beirada de abismo. Ambos estão na beira do abismo: uma tentativa de sair, se a única coisa que eu tenho é a vida. Se todos vivemos numa beirada, um diz que não está suportando mais essas escorregadelas. No silêncio da morte, a palavra não cobre tudo. As palavras não cobrem tudo. O simbólico não cobre todo o real. Suicídio é levar ao máximo a possibilidade de escolha. Isso é que é incômodo, para Black, representando o espanto ante a escolha da morte feita por White. Se alguém morre, isso revela inequivocamente que eu também sou mortal. O que eu poderia ter feito por ele? Nada encobre isso. Black salva White de se jogar na frente do trem lotado de gente. Ele o tranca em seu apartamento. Serve café, comida. É o fio condutor. É o protagonista, é ele quem comanda a cena. No entanto, não convence o outro.

A saída de White é como a morte: não se sabe o que acontecerá. No final, ele ficou mudado, e Black ficou com sua fé fragilizada, menos confiante. E o final é um lamento. Deus deu as palavras certas, que convencem, para White, para quem não acreditava nele. O final é duro, sem tomar partidos, as forças estão equiparadas. O final do filme mostra cada um com sua alteridade. Com sua escolha.

 

Conclusões

O suicídio, segundo Roudinesco & Plon (1998), foi mais bem compreendido por filósofos e escritores, suicidas ou não, do que pelos psicanalistas ou sociólogos. Isso poderia ser decorrente do incômodo que o movimento psicanalítico sempre experimentou diante dos suicídios de membros da comunidade freudiana. Na concepção de método terapêutico, a psicanálise se viu confrontada com a concepção psicopatológica do suicídio, que o reduz a uma doença, e não a uma ética de liberdade que o valorize como expressão de uma escolha.

Sabendo que, quando um sujeito realmente quer tirar a própria vida nenhuma terapia consegue impedir que o faça, com frequência a psicanálise teve que confessar sua impotência em curá-los, embora inúmeros relatos demonstrem que a análise permitiu que melancólicos evitassem o suicídio.

A obra discutida neste trabalho mostra as escolhas dos sujeitos, os protagonistas, escolhas bem claras e calcadas em suas experiências de vida. Para um, a religião, na qual, como dizia Freud, “uma Providência cuidadosa velará por ele” e um Deus, na forma de Jesus, o ampara em suas vicissitudes. Para o outro, deprimido, sem laços sociais, sem amparo nem na religião, nem na ciência, nem na arte. O autoextermínio é o seu único caminho. Cada um segue seu caminho, sua escolha. Conforme Freud gostava de citar, de Frederico, o Grande, não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: cada um tem de descobrir por si mesmo de que modo específico pode ser salvo.

 

Agradecimentos

Agradeço a discussão com Eliana Mendes, Maria Helena Libório, Fátima Mota Busko, Felipe Gontijo, José Faria Filho, Luís Cláudio Dayrell, Dione da Rocha Gomes, Maria Aparecida Couto e Renata Ciotola, que tanto enriqueceu o presente trabalho.

 

Referências

DURKHEIM, E. (1897) Le suicide: étude de sociologie. Disponível em: http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=3&ved=0CEkQFjAC&url=http%3A%2F%2Fclassiques.uqac.ca%2Fclassiques%2FDurkheim_emile%2Fsuicide%2Fsuicide_Livre_1.pdf&ei=voi_UIXBM-630AG854GYCA&usg=AFQjCNFQ80TripPqoikjGtG9DH5ojdphyQ. Acesso em: 5 dez. 2012.         [ Links ]

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1983.         [ Links ]

FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 249-263. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 14).         [ Links ]

FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 15-63. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 67-153. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

FUNK; WAGNALLS. New Encyclopedia. Suicide. v. 24, p. 422-3, Funk & Wagnalls Inc., Estados Unidos, 1987.         [ Links ]

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Alumínio, 134/502 – Serra
30220–090 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: annaproietti@gmail.com

Recebido em: 20/03/2013
Aprovado em: 19/04/2013

 

 

Sobre a Autora

Anna Barbara de Freitas Carneiro
Médica. Escritora. Candidata em formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.