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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte jul. 2013

 

Nonadas: uma leitura de “Lá nas campinas”, de Guimarães Rosa1

 

Nonadas: Guimarães Rosa - Lá nas campinas’s analysis

 

 

Edson Santos de Oliveira

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Baseado na noção de letra em Lacan, o autor apresenta uma proposta de leitura do conto Lá nas campinas, narrativa de Tutameia, de Guimarães Rosa. A noção de letra supõe um reconhecimento da impossibilidade de a linguagem expressar o real. A letra, ao exigir cifração e decifração, funciona como fonte de possibilidade ficcional. Elementos como o silêncio, o som e a voz servem como instrumentos usados por Guimarães Rosa para evidenciar a supremacia do significante sobre o significado. Na linhagem de Joyce, Rosa constrói um escrito para não ser lido.

Palavras-chave: Letra, Lacan, Significante, Guimarães Rosa, Tutameia.


ABSTRACT

Based on Lacan’s notion of letter, the author presents a reading proposition of the tale Lá nas campinas (There in the meadows), a narrative in Guimarães Rosa’s Tutameia. The notion of letter supposes a recognition of language’s impossibility to express the real. Because the letter demands ciphering and deciphering it works as a source of fictional possibility. Elements as silence, sound and voice work as instruments used by Guimarães Rosa to evidence the supremacy of the signifier over the signified. In the lineage of Joyce, Rosa builds a written text not to be read.

Keywords: Letter, Lacan, Signifier, Guimarães Rosa, Tutameia.


 

 

Haroldo de Campos, ao dar um panorama de alguns escritores da literatura brasileira, usa a expressão “procedimento menos” ou “arte ‘pobre’” para caracterizar aqueles autores que escrevem de modo extremamente depurado (CAMPOS, 2006, p. 221). Essa “magreza estética”, eivada de elipses, lacunas ou até mesmo de redundâncias, segundo o crítico paulista, começaria com Machado de Assis, cuja escrita é marcada pela fragmentação, como se pode comprovar em Memórias póstumas de Brás Cubas, no texto econômico de Graciliano Ramos, passando pelos poemas-minuto e pela prosa cubista de Oswald de Andrade. Esse modo “pobre” de escrever pode ser encontrado também na prosa miúda de Dyonélio Machado, em Os ratos, sem contar a condensação poética dos versos de João Cabral de Melo Neto, o “procedimento menos” da elaborada escrita rosiana ou as narrativas de Clarice Lispector. Mais recentemente, poderíamos acrescentar à lista de Haroldo de Campos alguns textos de João Gilberto Noll, Sérgio Sant’Anna e Milton Hatoum.

O modo “pobre” de escrever, acompanhando o crítico, parece corresponder a uma escrita em ponto de letra, no sentido lacaniano, e é possível encontrar textos de Guimarães Rosa filiados a esse veio de “procedimento menos”. Antes de ler o conto, seria interessante fazer ligeiras considerações sobre a noção de letra, destacando a contribuição de alguns pesquisadores.

A noção de letra é, várias vezes, retificada por Lacan em sua obra. Tais retificações trouxeram dificuldades de interpretação para os estudiosos do pensador francês. Vale ressaltar que a palavra letra, na língua francesa, foi explorada estrategicamente pelo autor dos Escritos através de associações sonoras e semânticas. Por um lado, tais associações têm um efeito lúdico e estilístico, por outro, impediram o entendimento dessa noção. Assim, a palavra lettre está relacionada ao termo l’être (o Ser), a l’autre (o outro) e a lettre, no sentido de carta. (VALLEJO; MAGALHÃES, 1981, p. 73). Ressaltam ainda alguns pesquisadores que em Lacan a letra está relacionada ao significante em sua materialidade, embora não se confunda com ele.

Ana Maria Netto Machado (1988, p. 195) acompanha esse intrincado percurso da noção de letra na obra do psicanalista francês, dando-lhe uma boa sistematização teórica. Assim, após fazer exaustivos comentários e comparações de trechos dos seminários lacanianos, a pesquisadora conclui que a letra é o suporte do significante; está associada ao fonema no seu aspecto fônico e gráfico. A autora sugere ainda que a letra seja enfocada como uma transição entre o Real e o Simbólico. Ela é o elemento mínimo do significante que se combina com outros significantes, permitindo uma cifração/decifração do sentido na ordem do inconsciente.

Lacan (2003), ao descrever em Lituraterra a relação entre fronteira e litoral, deixa mais nítida a diferença entre letra e significante. Mandil (2003, p. 48) percorrendo o texto lacaniano, esclarece-nos essa diferença: a fronteira estabelece uma marca simbólica entre territórios homogêneos; o litoral mostra o encontro de dois mundos heterogêneos. O litoral separa mas também une o sólido (terra) e o líquido (mar). A letra como litoral conjugaria esses dois elementos através do furo. A viagem de Lacan, contemplando a planície da Sibéria, vendo sulcos entrelaçados com pequenos rios explica muito bem a noção de letra como litoral. A letra separa e ao mesmo tempo conjuga esses dois elementos.

Jean Claude Milner (1996) esclarece que a letra não é o significante. Em A obra clara, acentua que a separação entre letra e significante se dá no chamado segundo classicismo lacaniano. Nesse momento, Lacan já não está voltado para o simbólico, como na primeira etapa de sua obra, mas para o real. Afirma Milner (1996, p. 104):

Sendo deslocável e empunhável, a letra é transmissível: por essa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo de que ela é, no meio de um discurso, o suporte. Um significante não se transmite e nada transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se encontra, o sujeito para um outro significante.

Lúcia Castello Branco (2000), acompanhando o pensamento de Lacan e Serge Leclaire, traz uma contribuição interessante para ilustrar essa diferença:

De qualquer forma, sabemos, com Lacan, que a letra é ainda mais elementar que o significante, uma vez que ela se reporta ao escrito e ao que há de mais fundamental no escrito, em sua redução ao puro traço, à pura inscrição, à sulcagem da superfície/corpo sobre a qual se escreve e se inscreve um sujeito. Além disso, é a letra que faz a borda, o litoral, como nos ensina Lacan em Lituraterra (CASTELLO BRANCO, 2000, p. 23).

E continua a pesquisadora, na esteira de Serge Leclaire:

E o que borda a letra? A letra borda justamente o furo, justamente o buraco que suporta toda e qualquer construção simbólica, todo e qualquer signo. Em certa medida, a letra funcionaria, portanto, como uma sutura do buraco, ao mesmo tempo que, ao suturá-lo, marca uma inscrição, um traço, como um grampo no próprio lugar em que o afastamento se produziu. É a letra, portanto, que marca a diferença entre a palavra e a coisa ou, no dizer de Serge Leclaire, a diferença erógena propriamente dita: o espaço erógeno e o espaço das palavras não são da mesma ordem (CASTELLO BRANCO, 2000, p. 23).

Jefferson Machado Pinto (2005) também nos auxilia a compreender essa noção:

A letra é, assim, o ponto de interseção entre linguagem e gozo, mas mantém a tensão, dada sua própria característica de “alojar um gozo no vazio da escrita”. Ela revela o que não se dá a ler e que exige decifração, mas também cifração e fonte de possibilidade ficcional. O ficcional que interessa, exatamente por fazer valer a verdade durante sua própria construção, é o ancorado nos elementos que funcionam como propriedades residuais, incuráveis, sem plasticidade. O sujeito advindo dessa operação com a letra está sempre na dependência do ato, está sempre por vir (PINTO, 2005, p. 72).

A contribuição de Jefferson Machado é significativa principalmente quando ele afirma que a letra serve como “fonte de possibilidade ficcional”. Assim, na literatura brasileira, nessa tradição de escritores voltados para uma escrita “pobre” de “procedimento menos”, segundo Haroldo, poderíamos encaixar autores que teriam produzido alguns textos em ponto de letra, como é o caso de Guimarães Rosa, na obra Tutameia.

Em um dos prefácios de Tutameia, “Sobre a escova e a dúvida”, (ROSA, 1985, p. 163), Guimarães Rosa coloca um glossário e no verbete “tutameia” enumera vários significados. Além da palavra “nonada”, ele acrescenta outros vocábulos. Um deles é a palavra “nica”, que pode significar rabugem, bagatela e tem o sentido de traço que separa partes de um texto. Ora, o traço está ligado ao conceito de fragmentação. Assim, a ideia de fragmento, entendida como ninharia, não deve ser enfocada de modo pejorativo, conforme significação dada pelo próprio Guimarães Rosa no glossário. Tutameia poderia ser lido, numa perspectiva irônica, como “bagatelas de sentido”. Por trás dessa expressão, que aparenta despretensão, o escritor mineiro esconde um exaustivo trabalho de linguagem. É importante esclarecer que os contos dessa obra foram publicados na Revista Pulso, órgão que oferecia ao autor um espaço muito reduzido (duas a três páginas no máximo), o que levou o escritor a produzir um rigoroso trabalho de depuração textual.

Tutameia, texto do fragmento, pode ser lido com base na noção de letra, à luz da teoria lacaniana Dessa forma, o que caracteriza o último livro de Guimarães Rosa é uma poética centrada em cacos de significação, pedaços de frases que, na linhagem de Joyce, insistem na página para não serem lidos. Mais do que significados, as palavras têm canto e plumagem.

Tutameia, como afirma João Alexandre Barbosa, “passa a ser aquele ponto ótimo do qual é possível também reler o conjunto da obra rosiana” (NOVIS, 1989, p. 16). A pesquisadora Vera Novis demonstra que há frases e personagens do livro que só são esclarecidos se fizermos uma relação com outros textos. Várias “tutameias”, isto é, fragmentos textuais, se repetem na obra, e os quarenta contos podem ser sintetizados em poucos núcleos temáticos, já que cada história é uma espécie de pedaço da outra, como afirma a autora:

O personagem-narrador, não nomeado, de “O outro ou o outro” é Ladislau [...] , personagem também dos contos Intruge-se, Vida ensinada e Zingaresca. Essas estórias e mais Faraó e a água do rio, que também trata de ciganos, forma um conjunto. A esse conjunto e especialmente a “O outro ou o outro” liga-se ainda o prefácio Aletria e hermenêutica (NOVIS, 1989, p. 35).

Mais do que um mero exercício lúdico, a ordem alfabética dos títulos dos contos de Tutameia deve ser lida segundo a ideia de que cada texto é como um verbete, uma espécie de letra que se enquadraria num dicionário maior, o conjunto dessa obra, texto inacabado que sempre remete a novas e possíveis significações.

Não é sem razão que Guimarães Rosa, na epígrafe do livro, chama a atenção para a importância de uma segunda leitura: “Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luz inteiramente outra” (ROSA, 1985, p. 5). Nesse trecho, Rosa se refere ao significado que o leitor comum poderia encontrar. Há, no entanto, contos de Tutameia em que o sentido continua embaçado. O leitor lê, relê, mas o texto resiste. Assim ao se apresentar como um dicionário, o livro mimetiza a pluralidade semântica, a circularidade, a precariedade do sentido, sempre em constante indeterminação, traço típico da literariedade das grandes obras.

Dessa forma, a releitura acaba sendo uma nova escritura, já que o ato de ler é, por natureza, uma constante falta. Ler é decifrar o que foi esquecido, e nesse decifrar se instaura nova inscrição. Em cada frase de Tutameia encontramos alusões e estilhaços de narrativas. Não é gratuito nessa obra o uso freqüente de provérbios.

Texto fragmentado por excelência, o provérbio sintetiza uma vivência comunitária, reflete o gosto popular pelo sentencioso, dá respostas condensadas a situações e impasses do cotidiano sertanejo. O provérbio funciona como inscrição que traz valores sociais de uma comunidade, que elege a oralidade como forma de expressão.

Guimarães Rosa considerava Tutameia como “anedotas de abstração”. O vocábulo “anedota” acena para a oralidade e supõe a materialidade da voz. Já a palavra “abstração” aponta para a ideia de “considerar isoladamente um ou mais elementos de um todo”, como nos ensina o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1976, p. 13).

Dessa forma, cada conto dessa obra é como uma letra que precisa ser soletrada com outras narrativas, formando um livro sempre inacabado. Estamos, portanto, diante de textos “vazios” de sentido, que supõem uma combinação com outros contos, escrita condensada em forma de provérbios, muitas vezes reduzidos ou até invertidos, acenando para a indeterminação do sentido.

É importante frisar que no interior de algumas histórias, não há provérbio; reina apenas o silêncio dos personagens. Em outras, os provérbios surgem em abundância juntamente com expressões incompletas que precisam ser soletradas, preenchidas pelo leitor: “Olhem. O que conto, enquanto; ponto”, afirma o personagem-narrador da narrativa Curtamão (ROSA, 1985, p. 42). É esse ponto que nos interessa: letra, voz, corpo, traços, lacunas textuais que demandam leitura, leitura essa consciente de sua precariedade.

O conto Lá nas campinas (ROSA, 1985, p. 97) parece ter sido joyceanamente escrito para não ser lido. Trata-se de uma escrita lacunar, que pede um leitor atento, que nem sempre espera encontrar significados. Na esteira de Roland Barthes, estamos diante de um texto do gozo, que desconforta, que leva à perda do sujeito.

Nessa história temos apenas um esboço de enredo, como acontece em outros contos de Tutameia. Drijimiro, o protagonista, teve uma infância difícil. Viveu em diversas casas, se sentia sempre abandonado. Com muito esforço, conseguiu uma boa situação financeira. A única lembrança que o protagonista tem da infância é um resto de frase que pronuncia com frequência: “lá nas campinas”, espécie de letra que vai bordejando a falta, inscrita no próprio corpo: a orfandade. Em grego, órfão significa desprovido, abandonado. Essa falta quer ser preenchida, mas a infância vem à memória apenas em farrapos imagéticos: “... luz, o campo, os pássaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos barrancos...” (ROSA, 1985, p. 100).

Estamos diante de um texto da falta, texto da rememoração em que o passado é evocado através de um deslizar metonímico de significantes. Drijimiro é um oco que procura se completar. Órfão de pai, ele traz uma inscrição faltante que se projeta em significantes também vazios: “lá” e “campinas”. O primeiro vocábulo significa espaço indefinido; o segundo, campo aberto, que conota indeterminação. “Lá nas campinas”..., letra que escava o real do passado, falta que retorna, resíduo de significação que tenta em vão recuperar a infância na reconstituição do sujeito, rememoração que se dá como repetição diferencial.

Esse traço de orfandade leva Drijimiro a uma tentativa de se completar, mas o personagem esbarra no Real. Drijimiro é um ser perdido que quer se achar. O narrador afirma: “Ele era um caso achado” (ROSA, 1985, p. 97). É interessante notar que esse “se achar” é um significante que está presente em vários contos de Tutameia, como afirma Vera Novis (1989, p. 109): “Achar, em Tutameia, tem um sentido muito particular e é empregado em momentos muito especiais: a revelação da afinidade, o momento da comunhão”. É possível dar aqui outra direção à leitura de Vera Novis: em Lá nas campinas “se achar” parece estar ligado à ideia de se completar, mas no sentido de epifania, iluminação que escapa ao simbólico: “Tudo o mais, trabalhado, completado” (ROSA, 1985, p. 100).

“Lá nas campinas”... É através desse resto de frase, soletrado durante o conto, que o inconsciente de Drijimiro desabrocha em imagens epifânicas do passado: “Falou o que guardado sempre sem saber lhe ocupava o peito, rebentado: luz, o campo, pássaros, a casa entre folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos barrancos...” (ROSA, 1985, p. 100).

A ideia de iluminação súbita remete a um desejo de se achar. No entanto, a imagem do vocábulo “voçoroca”, buraco de erosão, acena para uma espécie de vazio existencial, inscrição enigmática na existência do protagonista. O que resta para Drijimiro são miriquilhos, olho d’água, filete, resto de uma frase perdida e jamais encontrada.

É interessante observar que o fragmento “lá nas campinas” vai encurtando à medida que se intensifica o processo de rememoração; esse resto de frase acaba se resumindo em uma palavra: “lá”, advérbio indefinido e que também é nota musical, isto é, letra de partitura, apenas som, significante siderante. Ora, o processo de rememoração nunca esgota o passado; como a linguagem, ele é sempre faltante. O narrador do conto acaba, assim, esbarrando num vocábulo monossilábico, um lugar indefinido, metáfora do real: “lá”.

Como afirma Vera Novis, “há nos contos de Tutameia dois núcleos temáticos básicos, a aprendizagem e a viagem” (NOVIS, 1989, p. 25). A aprendizagem pressupõe a iniciação. E é através da viagem que os personagens saem da ignorância e chegam ao conhecimento. Aproveitando a atenta leitura da pesquisadora, poderíamos aqui fazer um leve acréscimo ao seu raciocínio afirmando que esse conhecimento é sempre precário. Aprender é se sentir incompleto, e o completar-se é uma forma provisória de se achar.

Enquanto órfão, Drijimiro quer se completar lançando mão de um significante recorrente, um estilhaço de frase: “lá nas campinas”. O protagonista busca um passado que lhe escapa. Por meio desse pedaço de frase, ele encontra o grande Outro, a ordem da letra como alteridade absoluta, conforme ensina Lacan.

Além da aprendizagem, em Tutameiaa viagem é a caminhada dos personagens em direção a outra metade, ao outro, à iluminação, ao seu completamento, no que são orientados pelos mestres, modelos de completude” (NOVIS, 1989, p. 115). Drijimiro aprendeu com as viagens que andou fazendo: “Mas achava, já sem sair do lugar, pois onde, pois como, do de nas viagens aprendido, ou o que tinha em si, dia com sobras de aurora” (ROSA, 1985, p. 99).

O conto Lá nas campinas é uma viagem ao passado, uma tentativa de travessia existencial do sujeito. Processo semelhante se dá em Grande Sertão: veredas. Mas enquanto Riobaldo narra, buscando o autoconhecimento, recriando o ocorrido no momento da enunciação, através de um relato-aprendizagem, ancorado em um significado, Drijimiro tenta voltar ao tempo por meio de um fragmento de frase que vai se estilhaçando durante a história e que, no final, se resume em dois fonemas: “lá”. Riobaldo e Drijimiro tentam recriar o passado, mas o tempo é outro. O que resta é apenas a linguagem precária, que nunca reproduz plenamente o vivido. Lembrar é se perder na cadeia de significantes, na enunciação, para se encontrar, mesmo que nesse encontro o sujeito se depare com traços, tutameias do passado. E nesses traços se inclui também a voz.

Entramos em contato direto com a materialidade da voz logo no início do conto: “Está-se ouvindo. Escura a voz, imesclada; modula-se, porém, vibrando com insólitos harmônicos, no ele falar aquilo” (ROSA, 1985, p. 97). Percebemos nesse trecho uma descrição da voz, escrita oral que tenta acompanhar o corpo. Como o passado da infância, também a voz de Drijimiro é escura. E juntamente com a voz, as palavras são comparadas pelo narrador a um tatalar de bandeira: “Lá nas campinas... cada palavra tatala como uma bandeira branca”. Ora, tatalar significa fazer barulho, rumorejar. Drijimiro rumoreja o som das palavras, tatalando-as, soletrando-as, deslizando no puro significante. Pode-se afirmar que o conto inteiro é um tatalar, um rumorejar. Guimarães Rosa faz a língua rumorejar, colocando o sentido em ponto de fuga num gozo de linguagem, num sentido indiviso, impenetrável, inominável, enfocado como miragem, como propõe Roland Barthes (BARTHES, 2004, p. 95).

É interessante observar que nessa viagem que Drijimiro faz ao passado, o próprio nome do protagonista já é um signo motivado. Drijimiro é uma corruptela de Argemiro. Argemiro, pela frequência da pronúncia, acaba se tornando “Djimiro” ou “Drijimiro”. Ora, Argemiro é um nome que pode ser dividido em duas partes: “Árgilos”, em grego, significa argila e “miro” vem do latim “mirare”, olhar fixamente. Argemiro é, pois, aquele que olha fixamente para a argila, metáfora da origem do homem, do pó bíblico de que ele foi feito. E o conto nos confirma a análise do nome. No primeiro momento em que Drijimiro se lembra da infância, o narrador faz referência à palavra “oca”: “Vinha-lhe a lembrança — do último íntimo, o mim do fundo — desmisturado milagre. Só lugares. Largo rasgado um quintal, o chão amarelo da oca, olhos d'água jorrando e barrancos” (ROSA, 1985, p. 100, grifo nosso ).

A palavra “oca” é variante de “ocra” e significa argila. Drijimiro, ser órfão, oco, desamparado, é aquele que volta à argila, ao pó da terra, ao barro da criação, ao “lá” da origem. Drijimiro, personagem que se mira no espelho da linguagem em busca do pó, do nonada, da tutameíce, da nica que o constitui. Como a linguagem é precária e informe como a argila, resta ao narrador fazer uma intervenção na história. Reconhecendo ter perdido o fio da narrativa, ele aceita a impossibilidade do ato de narrar, mudando o foco narrativo do conto, da terceira para a primeira pessoa, desaguando no silêncio: “Então, ao narrador foge o fio. Toda estória pode resumir-se nisto: — Era uma vez uma vez, e nessa vez um homem. Súbito, sem sofrer, diz, afirma: — “Lá...” Mas não acho as palavras” (ROSA, 1985, p. 100).

 

Referências

BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.         [ Links ]

CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2006.         [ Links ]

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LACAN, J. Lituraterra (1971). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 15-25.         [ Links ]

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PINTO, J. M. Verdade e ficção em uma erótica pragmática. In: Aletria: Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte, v. 12, p. 69-75, abr. 2005.         [ Links ]

ROSA, J. G. Tutameia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.         [ Links ]

VALLEJO, A.; MAGALHÃES, L. C. Lacan: operadores de leitura. São Paulo: Perspectiva, 1981.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Av. Antônio Carlos, 6662 - Cidade Universitária - Pampulha
31270-901 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: edson-so@uol.com.br

Recebido em: 13/03/2013
Aprovado em: 15/04/2013

 

 

Sobre o Autor

Professor da UFMG/EBAP. Candidato em formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

 

 

1 Este artigo é uma reformulação da leitura de Lá nas campinas, conto analisado em minha tese de doutorado.