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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte July 2013

 

Tratamento psicanalítico do bebê com risco de autismo. Uma clínica ao avesso?

 

Psychoanalytic treatment of the baby at risk of autism. A clinic in reverse?

 

 

Isabela Santoro Campanário; Angela Maria Resende Vorcaro; Jeferson Machado Pinto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de um caso de risco de autismo atendido desde os dois anos e meio em psicanálise mães-bebês, a autora traz subsídios à clínica psicanalítica precoce com crianças, tecendo considerações sobre a chamada “psicanálise ao avesso”.

Palavras-chave: Risco de autismo, Psicanálise mães-bebês, Psicanálise ao avesso.


ABSTRACT

From a case of risk of autism attended since the two and a half years in psychoanalysis mothers-babies, the author brings subsidies to early psychoanalytic practice with children, with considerations on the so-called “Psychoanalysis in reverse.”

Keywords: Risk of autism, Psychoanalysis mother-baby, Psychoanalysis in reverse.


 

 

Um relato do caso Rafael

Rafael é atendido pela Equipe Complementar Centro-Sul (Prefeitura Municipal de Belo Horizonte), em um grupo formado há cerca de sete anos, após a implantação do projeto de “Intervenção a tempo” no município. Para o funcionamento desse grupo há uma equipe composta de três profissionais (fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e psiquiatra infantil), que atuam junto a até três crianças e seus cuidadores. É um funcionamento interessante, que tem produzido ótimos resultados. Assinalamos que o encontro no grupo permite o deslizamento da palavra, tornando seus próprios participantes os autores de muitas das intervenções. Assim, por exemplo, uma mãe incide, pela palavra, em outras. Esses efeitos de um participante sobre o outro assumem a função de pontuar, interrogar, interpretar, construir e surpreender, permitindo manter o analista na posição de sustentar a operação discursiva. Além disso, esse funcionamento otimiza o tempo da equipe que é referência para uma regional de cerca de 250.000 pessoas, das quais quase 90.000 em área de risco (aglomerados), que utilizam o SUS como único meio de tratamento.

Mariana, a mãe de Rafael, refere sua perturbação desde o nascimento do filho: por medo de que fizessem mal ao olharem seu filho, estragava a campainha da residência para não receber visitas, mantinha o telefone celular do marido no silencioso para não atender os amigos e embrulhava a criança para que não fosse vista, quando tinha que sair com Rafael na rua. Nos primeiros meses de vida, a criança ficou muito isolada com a mãe, já que o pai trabalha parte do tempo no exterior. Aos poucos, os familiares (principalmente os avós maternos) forçaram a interação com criança.

Segundo relata, “quando ele nasceu ele era minha paixão, queria ele só pra mim. Rezava para Deus para ele nunca ter amigos ou namorada”. Extremamente desejado e planejado, ela considera, entretanto, que o casal não tinha maturidade para assumir um filho, como constataram diante de suas dificuldades em lidar com o problema da criança para dormir: “acabava por dormir de tanto que a gente sacudia”.

Com uma insônia insistente, Rafael frequentou várias consultas pediátricas e um especialista em sono, que chegou a medicá-lo no primeiro ano de vida.

Rafael tinha dois anos e meio quando sua mãe procurou atendimento em saúde mental infantil por apresentar atraso de fala (que quando existia era ecolálica) e dificuldade em manter a interação visual. Sem sustentar o brincar simbólico, apresentava brincadeiras repetidas e estereotipadas. Pediatras e especialistas consultados não detectaram problema algum. Por sua vez a mãe, pesquisando na internet, constatou sinais de autismo no filho e consultou um psiquiatra infantil, que o encaminhou à analista.

Esse diagnóstico de autismo, recolhido da internet e colocado em suspensão pelo psiquiatra incidiu como uma placa orientadora indelével. A despeito de a analista ressaltar sistematicamente que a presença desse quadro em Rafael se reduzia a traços leves, que ele contava com uma inteligência superior e que a criança vinha respondendo muito bem ao tratamento, o efeito da nomeação de autismo sobre seu filho era intensamente ampliado por ela. Assim, não reconhecia a afirmação da analista de que o trabalho da equipe visava que esse diagnóstico não se cristalizasse. Entretanto, Mariana afirmava: “Gostaria que ele tivesse câncer e morresse, assim não teria que dizer para as outras pessoas que tenho um filho autista.”

Rafael começou o trabalho no Grupo de Intervenção a Tempo com excelente resultado. Em apenas seis meses de tratamento passou a sustentar o olhar, a falar em primeira pessoa, a cantar canções e iniciar frases, reduzindo muito a ecolalia. Vinha ainda acrescentando a cada dia novos elementos e novas articulações simbólicas ao brincar. Entretanto, quando Rafael oscilava, regredindo em alguma conquista, a mãe, extremamente exigente, gritava.

Como a mãe não melhorava na mesma velocidade do filho, a equipe entendeu ser necessário que ela tivesse acompanhamento individual para a continuidade do andamento do tratamento de Rafael. Mariana passou, então, a ser atendida individualmente toda semana pela analista da equipe. O pai, em trabalho sistemático no exterior, apenas ocasionalmente estava presente ao tratamento. Afirmava inicialmente não saber brincar com o filho, mas, avaliando seu esforço, achava que isso havia mudado.

Apesar de toda a dificuldade, cabe ressaltar a fidelidade de Mariana ao tratamento, comparecendo a todas as sessões marcadas e procurando fazer o que lhe era sugerido. Procurou também o outro psiquiatra infantil, que se ocupa de casos de autismo, para confirmar o diagnóstico e fazer o tratamento duplicado: comportamental e psicanalítico: “Não quero deixar nada escapar”. Duas fonoaudiólogas, duas terapeutas ocupacionais e dois psiquiatras infantis, além de ter chegado a procurar outra psicanalista.

Rafael desenvolveu uma extrema simpatia e sistematicamente requisita a aprovação do outro. Esse comportamento incomoda muito a mãe, que reprovava sua conduta: “Por que ele não fica na dele? Por que tem que chamar a atenção? Parece um retardado, conversa com todo mundo”. Também o fato de ser muito sedutor, especialmente com as mulheres, perturbava a mãe: “Ele nem escolhe as bonitas”.

A analista problematiza, para a mãe, a insistência em atribuir ao filho o lugar de doente, retardado sem, entretanto reconhecer suas conquistas. Reafirma sempre que a criança ainda não está cristalizada em uma estrutura típica, que não apresenta mais um funcionamento autístico e que mais preocupante é essa insistente nominação dirigida à criança. Entretanto, nada demovia a mãe de uma reiterada reafirmação de que a criança é autista e retardada, ou seja, insuficiente.

Também irritava a mãe de Rafael a “fixação” desenvolvida por sapatos femininos, especialmente os de salto alto. Comenta a cor, o formato, elogia, compara. As mulheres ficam envaidecidas, e a mãe furiosa, muitas vezes chegando a bater no filho. Por isso, quando ele se interessa por um sapato olha para ela e, ciente da impossibilidade, lhe responde: “Sapato não! né, mamãe?”. Gostava também de brincar de boneca, mas foi impedido pela mãe, apesar das intervenções da analista, que asseguravam que tal interesse é legítimo. A mãe se interroga se ele nunca vai ter maldade: “Ele é mais ingênuo que crianças muito mais novas que ele”. A analista intervém pontuando que ele só tem três anos e meio.

A mãe se queixava também de que Rafael estava copiando muito a maneira de falar do irmão caçula e dos coleguinhas, e um deles tem problemas de fala. Nessas situações a analista lembrava que Rafael ainda não tem estrutura definida, estando num tempo de se servir do transitivismo para se identificar com outras crianças até formar sua identidade. Entretanto, a mãe parecia ter muita pressa numa definição que nomeasse seu filho.

Mariana imagina o que será de seu filho quando não puder mais estudar naquela escola, onde é bem aceito, e tiver que se adaptar em uma escola maior, onde será excluído, e todos vão perceber o seu problema. A analista intervém reafirmando que Rafael não mantém os sinais precoces de autismo, que desapareceram; ele se mostra aberto a novos modos de se relacionar. Mariana também chegou a solicitar à analista para conhecer um paciente autista adulto, na expectativa de assim reconhecer o futuro de seu filho. A despeito de a analista intervir insistindo que Rafael não é autista, esse significante faz borda ao real que o filho pode significar para ela: “O que ele é então?” é a resposta que, como interrogação, Mariana situava o que o filho poderá vir a ser, já que não suportava desconhecê-lo e inventá-lo.

Rafael ainda tem sono agitado, acorda chorando e passa para a cama dos pais apesar das orientações no sentido contrário. Mariana relata que, independentemente de Rafael, as coisas não estavam nada bem com o casal e que chegou a pensar em se separar.

Em uma sessão, Rafael decide fazer comida para os familiares. Pega uma panelinha e pergunta o que cada um quer comer: o pai, a mãe. Quando fica pronta a comidinha, dá de comer aos adultos, deixando muito claro o prazer experimentado por ele quando o pai e mãe se divertem com a brincadeira. Se utilizarmos aqui a concepção de Laznik (2004) referente ao circuito pulsional, poderíamos localizar Rafael fora do espectro autista, pois demonstra, com essa brincadeira com os pais, ter completado o terceiro tempo do circuito pulsional, ou seja, ao se fazer para o outro e provocar-lhe prazer, também usufrui disso.

 

Uma clínica ao avesso?

Temos como uma de nossas hipóteses de trabalho que, ao efetuar uma análise em crianças em posição de objeto, operamos uma clínica psicanalítica “ao avesso”. Esse termo já foi utilizado por Marie-Christine Laznik (1997) em Rumo à palavra, três crianças autistas em psicanálise, e o consideramos muito pertinente, na medida em que lidamos a hipótese de uma impossibilidade encontrada, pelo neonato, de se deixar afetar suficientemente pelo funcionamento da linguagem, a ponto de nele se engajar.

Assim, é do lugar de endereçamento de uma mensagem que o analista se posiciona, ao tratar de uma criança autista ainda bebê. Operando desse lugar, o analista testemunha, em ato, sua aposta no reconhecimento do valor significante da produção da criança, fazendo incidir o pacto simbólico. Afinal, reconhecer suas manifestações como da esfera da linguagem é a condição para a criança se reconhecer posteriormente como fonte dessa mensagem. Assim, em muitos momentos o analista assumirá o lugar de Outro primordial, para franquear que a criança advenha à ordem simbólica que lhe preexiste.

O trabalho com uma criança autista se faz ao avesso da cura analítica clássica: o objetivo do analista não é interpretar os fantasmas de um sujeito do inconsciente já constituído, mas de permitir o advento de um sujeito. Faz-se aqui intérprete, ao mesmo tempo em relação à criança e seus pais [...] este primeiro trabalho de tradutor vai permitir, aos pais, olhar a criança em seu brilho de chama aí onde então só viam dejeto. Desta forma, a mãe poderá reencontrar sua capacidade de ilusão antecipatória (LAZNIK, 1997, p. 11).

A autora salienta que muitas condutas estereotipadas e reações paradoxais podem ocultar o valor de ato ou de fala que a produção de seu filho poderia valer para eles.

É dessa mesma perspectiva que Colette Soler (1994) usa um termo semelhante, “psicanálise ao inverso” ou “psicanálise invertida”. A autora se refere a dois campos de psicanálise de crianças. O primeiro, que recebeu esse nome e nos interessa aqui tratar, se refere à criança congelada como objeto do outro. Nesse campo, o analista faria uma operação orientada do Real em direção ao Simbólico. No segundo campo, relativo à criança que já se subjetivou, o trabalho do analista seria voltado à diferença entre essa criança e o adulto, já que Soler denomina a palavra da criança como “irresponsável” (SOLER, 1994, p. 10), permitindo situar uma fronteira fluida entre a fantasia e a realidade que distinguiria a presença de uma dimensão fabulatória. Esse segundo campo escapa ao escopo deste artigo.

Vale notar que a suposição de uma operação analítica orientada do Real ao Simbólico, parte da ideia de que a criança esteja constrita ao Real e, portanto, excluída da dimensão Simbólica a ser alcançada pelo tratamento. Por isso, consideramos que essa definição exige incluir a dimensão do Imaginário, uma operação imaginária a ser mobilizada pelo analista: por habitar o Simbólico e se posicionar a partir dele, pode distingui-lo do Real e, portanto, intervir a partir de hipóteses lógicas sobre a localização da criança nesse registro Real, anzoleando-a dali. Assim, por não distinguir o que há de simbólico no funcionamento da criança, delimita as manifestações dela ao que, para ele, operam como Real. Cabe, entretanto, ressaltar que não negligenciamos a hipótese de que haveria aí um limite do próprio analista em reconhecer o simbólico na criança, por isso essa posição deve se manter sempre interrogada no tratamento.

Do nosso ponto de vista, o Real só pode ser localizado enquanto furo no Simbólico. O próprio Lacan considera que a ordem simbólica é tão imperativa, que nem mesmo os autistas escapariam dela: “Se uma criança que tapa os ouvidos, nos disseram, ao quê? A algo que está sendo dito, não está já no pós-verbal, já que do verbo ela se protege? (LACAN, [1967]1992, p. 12, grifos nossos). Assim, importa para Lacan a forma peculiar como esses sujeitos se situam na linguagem, evidenciando a existência desse registro também neles. Lacan situa a dificuldade “não do lado dos autistas, mas em nós, que não escutamos a linguagem fechada deles e não entendemos onde escutaram o que articulam” (VORCARO; LUCERO, 2010, p. 155).

Mesmo sem se situar num discurso, o autista não escapa ao campo da linguagem. Como afirma Bastos, o ser pode ser tocado pelo significante, ficando, entretanto, aquém da articulação que o transportaria entre significantes. “...com a perda do ser não se ganha automaticamente o sentido, pode-se ficar a meio caminho, hesitante entre um e outro, vale dizer, congelado” (BASTOS, 2003, p. 146).

A equivalência do autista ao real é originada na hipótese dos Lefort de que o Outro não existe para o autista; o Outro é presença real. A essa presença o autista responderia fazendo do vazio a sua máscara, fazendo-se um duplo do real. Efetivamente, eles afirmam que o autismo mostra ao falasser que o Outro poderia faltar: “Marie-Françoise nos confrontou com a ausência do Outro” (LEFORT; LEFORT, 2003, p. 181). Ou seja, foram os analistas que, sob o efeito dos autistas, se constrangeram com a ameaça de uma dissolução da dimensão simbólica. Que o autista provoque esse efeito não equivale a estar totalmente alheio à linguagem: o autista maneja a linguagem ao manifestar sua recusa a ela, como ensinou Lacan.

Vale notar ainda a afirmação de Soler (2007, p. 70) de que, no caso dos autistas, os analistas estão sempre no “como se” porque “somos realmente obrigados a interpretar comportamentos”. Soler (2007, p. 71) salienta sua impressão de que essas crianças “parecem ficar aquém do limiar de qualquer significação”. Constata-se, portanto, que o autista, mais do que qualquer sujeito, obriga o falasser a imaginarizar o lugar desde o qual ele situa o Outro. Dessa imaginarização nem o analista escapa. É o que pode convocá-lo a interrogar a posição desde a qual ele intervém nessa clínica (voltaremos a esse ponto).

Na perspectiva de esclarecer a condição da criança, Bernardino (2004, p. 76) sugere que devemos considerar algumas variantes em relação ao tempo na infância. Há um tempo do estabelecimento da estrutura, sincrônico, que implica a inscrição ou não do Nome-do-Pai, tempo lógico, que depende das condições particulares de cada um perante o encontro com a linguagem; existe um organismo submetido às contingências reais de um crescimento, que dá suporte imaginário ao sujeito que pode ou não advir.

A estrutura sincrônica vai se articular com elementos diacrônicos, a saber: o real do organismo submetido ao crescimento corporal e à maturação neurológica e sensorial, que dependem, no entanto, do desejo e da linguagem para se pôr em marcha; a imaginarização do Outro social que reconhece a criança de acordo com um referencial cronológico, situando-a em diferentes lugares perante a lei e as organizações sociais.

É por isso que Bernardino (2004, p. 80) propõe situar três momentos-chave na estruturação subjetiva, retomando os três tempos lógicos descritos por Lacan ([1961-1962]1986) em O seminário, livro 9: A identificação. O instante do olhar situaria o momento em que o olhar do Outro primordial marca um traço, inscrevendo um significante, possibilitando a vivência do estádio do espelho.

O tempo para compreender: a partir de um apagamento promovido pelo recalque originário, resultante da inscrição do Nome-do-Pai enquanto metáfora paterna se propicia um primeiro saber sobre o desejo próprio e sobre o desejo do Outro. É o tempo do Édipo e da latência.

Para a autora, o momento de concluir finalmente acontece quando o sujeito, diante da adolescência, conclui com a escolha do sinthoma.

Seguindo a autora, é nos hiatos desses tempos que o sujeito pode, ou não, emergir. Há nesses momentos a necessidade de remanejamento da significação do falo, de acordo com diferentes faltas, tendo como consequência que a inscrição do significante necessita de confirmações posteriores através de um agente que faz a função materna portadora de significantes e mais, que há uma abertura para a palavra e seus efeitos durante essas suspensões. A tese de Bernardino (2004, p. 81) é que, entre esses tempos, se encontrariam momentos de vacilação, como tempos de suspensão. Nos momentos de encontro com a falta significante do Outro, o sujeito fica paralisado, indefinido quanto ao seu lugar de falasser. A autora propõe situar essas paralisações em relação às operações psíquicas essenciais à constituição do sujeito, podendo se estabelecer impasses de patologias como defesa.

Tomaremos aqui apenas as duas primeiras escansões de que a autora fala, já que são as que mais interessam ao nosso trabalho. Na escansão entre o tempo mítico zero e o narcisismo primário, a não resposta do outro (semelhante) — que pode ter havido objetivamente sem ter sido localizada como tal pelo neonato e que por isso preferimos denominar como a ausência de localização dessa resposta — situaria o risco da fragmentação do Outro, podendo o autismo advir como defesa. Vale assinalar que, diferentemente da autora, supomos planos distintos de fragmentação, e não uma elisão plena do Outro. Na segunda escansão, entre a inscrição e seu apagamento, haveria o risco de foraclusão do Nome-do-Pai, podendo a psicose surgir como defesa. Essa é uma hipótese clínica que muito nos interessa, pois leva em conta o movimento pulsional e seus hiatos, além de permitir uma primeira aproximação para diferenciar autismo e psicose.

Partindo do princípio de que uma recusa a responder ao Outro é resposta pela qual o ser fisga o simbólico, sendo portanto assim fisgado na trama simbólica, pode-se supor a implantação de um primeiro significante no organismo, pois “o sujeito recebe sua primeiras assinatura, signum de sua relação com o Outro” (LACAN, 12/11/1958, inédito).

Esse olhar do Outro, devemos concebê-lo como interiorizado como um signo. Isso basta. Ein einziger Zug. Não há necessidade de todo um campo de organização e de uma introjeção maciça. Este ponto, grande I, do traço único, este signo de assentimento do Outro, da escolha de amor sobre a qual o sujeito pode operar, está ali em algum lugar no jogo do espelho. Basta que o sujeito vá coincidir ali em sua relação com o Outro para que este pequeno signo, einziger Zug, esteja à sua disposição. Pode-se distinguir radicalmente o ideal do eu do eu ideal. O primeiro é uma introjeção simbólica, ao passo que o segundo é fonte de uma projeção imaginária. A satisfação narcísica que se desenvolve na relação com o eu ideal depende da possibilidade de referência a este termo simbólico primordial que pode ser monoformal, monossemântico, ein enziger Zug (LACAN, [1960-1961]1992, p. 344).

Podemos supor que, no autismo, um significante primordial pode ter efeito, e em lugar de chamar o sujeito a funcionar como tal, teria petrificado o que há ali de sujeito. Havendo ali apenas um, o primeiro significante, ele perde sua condição de necessária concatenação para se posicionar como signo. Entretanto, essa posição pode ser problematizada na aposta da clínica com bebês: como franquear construções significantes a partir da relação com esse primeiro traço demarcado?

Para Neves e Vorcaro (2012) é necessário que o outro corrobore e reconheça as manifestações despontadas em respostas pelo infans ao que esse Outro causou. O sujeito é efeito do apagamento de traços, ou seja, de estranhezas vindas do Outro, pois transforma esse Outro em olhar, gesto, voz, para sair da indiferenciação e entrar no campo simbólico.

Na clínica com essas crianças em estado infans muitas vezes interpretamos os seus movimentos, falamos o que elas poderiam querer dizer, transformando o gesto de escuta num ato de fala. Através desses atos o analista opera uma imaginarização do que supõe real da criança, visando enganchar a criança na trama da ordem simbólica.

Ao se posicionar como endereço, supondo, nos movimentos do infans, a articulação de traços significantes, o analista estabelece algum sentido para eles, transpondo sua condição de signo maciço ao registro da decantação significante concatenada. Caso o vivo aí se engaje, e ceda, sendo sintônico a esse anzolear, o sujeito poderá advir no intervalo entre os significantes, transformando-os em gestos inéditos e em atos. Isso porque, ao atribuir a signos a posição de traços significantes, confere-se a eles algum deslocamento e mobilidade, necessários para o funcionamento da linguagem, mesmo que estes estejam inicialmente congelados, como ressaltou Bastos (2003).

Outra leitura da inversão que essa clínica parece nos apresentar é explicitada na concepção de que escutar quem não fala, mais do que escutar, é ler imagens, balizada pela fala dos pais. A criança que não fala se apresenta como letra a ser lida pelo psicanalista (JERUSALINSKY, 2011; FERNANDES, 2010). Pode-se, portanto, considerar que, enquanto letra, haveria algum modo de bordejamento do real já incidente na criança. ou seja, há um ciframento já presente, mesmo que enigmático, e que deverá ser, ainda, em parte, transposto a outro registro. Ressalta-se que essa prática é válida para qualquer análise, posto que seu princípio é o de que a escuta é, efetivamente, uma modalidade de leitura.

Lacan (1974-1975/inédito) define o sintoma como letra, cifra de gozo. Desde Freud podemos ver que as formações do inconsciente apresentam uma estrutura literal a ser lida.
“O sintoma, é, portanto, uma letra. Se a psicanálise tem um efeito terapêutico é, além disso, porque existe esta equivalência generalizada entre as formações do inconsciente e a instância da letra: toda ação sobre a letra no nível da linguagem durante a cura terá, graças a esta equivalência, um eco sobre o corpo
” (POMMIER, 1993, p. 192).

Que na criança autista essa letra não possa ser decifrada pelo significante da própria criança amparada por seus pais, a presença do analista pode permitir desarrimar o gozo que nela está impedindo a circulação na linguagem. Portanto, a função do analista seria dissolver a letra congelada, cristalizada, construindo, com a criança, uma borda simbólica. Isso não se faz sem oferecer à criança uma outra versão que lhe permitirá constituir sua realidade psíquica, articulando o real da letra com conteúdos imaginários formalizados numa apresentação simbólica.

Resta ainda considerar que, desse lugar, o analista transita sempre numa pequena margem entre uma interpretação imaginária e uma intervenção devastadora, quando não expõe os pacientes a ambas. No que concerne à criança, na ânsia de transpor a criança ao registro simbólico pela via imaginária, o analista arrisca-se a reproduzir a invasão que ela já ressente como angústia a que responde com sua recusa a se deixar fisgar de novo, em que demonstra já ter sido fisgada. No que concerne aos pais, e à mãe especialmente, o analista pode repetir a devastação na qual a mãe se acha mergulhada, recrudescendo-a ainda mais, principalmente se adota uma posição culpabilizadora da patologia do filho. Dessa questão tática só uma invenção singular a cada caso pode dar conta. Seu efeito só será localizável posteriormente, quando então um saber poderá ser formulado.

 

Últimas sessões com Rafael

Rafael passa a demonstrar muita agressividade em sua relação com os outros. Bate sempre no irmãozinho que é considerado “o normal para a mãe”. Em uma sessão a mãe conta que Rafael unhou o irmão e que a mãe o unhou para mostrar que aquilo doía, dizendo: “Olha se você gosta que façam isto com você”. Ele enfrenta a mãe e a desafia, falando: “Eu gosto”.

A analista lhe aponta que, enquanto estiver sendo agressiva com ele física e verbalmente, é muito difícil para a criança fazer diferente em sua relação com os outros. Antes, ao contrário, era uma criança pacífica e passiva ao extremo. Se agora ele encontra esse modo de se manifestar, ele pode estar encontrando uma modalidade de identificação com a própria agressividade materna, já que é ela que responde assim a ele.

A analista tem conseguido trazer o pai para o tratamento, que chegou a vir numa sessão com Rafael, sem a presença de Mariana. Rafael imediatamente propõe um duelo contra o pai com dois pedaços de madeira, simulando espadas. O pai entra no jogo, deixando a sessão transcorrer ludicamente.

O discurso materno se mostra mais amoroso em relação a Rafael. Exemplo disso é o relato de uma viagem recente para uma visita a parentes. Mariana relata feliz que os dois filhos resolveram fazer uma bagunça compartilhada. Os dois filhos pegavam bombons, saíam da sala e logo voltavam, dizendo que queriam mais, com “cara de anjos”. Estranhando o fato de estarem comendo tanto chocolate, ela se dirigiu ao quarto em que os filhos permaneciam brincando. Constatou então que Rafael e o irmão, juntos, estavam rindo, se divertindo em pisar nos bombons. Brava, colocou os dois de castigo, mas pensou: “Agora acredito que esse menino saiu do autismo, acho que nenhum autista faria uma bagunça compartilhada assim, com tanta cumplicidade com o irmão, um protegendo o outro do castigo”.

Numa festinha oferecida pela mãe para comemorar os quatro anos de Rafael, os convidados deram continuidade ao canto do “parabéns” cantando: “Com quem será, com quem será, com quem será que o Rafael vai casar”.

A mãe fala: “Com a mamãe” e Rafael retruca: “Com a mamãe, não, com a Paula”, uma vizinha com a qual brinca, “entre tapas e beijos”. Rafael já demonstra claramente sua escolha por outra mulher, conta a mãe, com uma certa satisfação: “Achei bonitinho”, diz ela.

Pela primeira vez desde o início do tratamento da criança, Mariana e o marido decidem viajar a sós, deixando os filhos com a avó.

A analista comemora silenciosamente a volta de Mariana à posição identificada à “mulher”, tão necessária à constituição da realidade psíquica de Rafael.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Teixeira de Freitas, 800/101 - Santo Antônio
30350-180 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: isabelasantoro@uol.com.br

Recebido em: 15/03/2013
Aprovado em: 15/04/2013

 

 

Sobre os Autores

Isabela Santoro Campanário
Psiquiatra da infância e adolescência. Psicanalista. Doutora em psicologia. Autora do livro Espelho, espelho meu: a psicanálise e o tratamento precoce do autismo e de outras psicopatologias graves. Salvador: Ágalma, 2008.

Jeferson Machado Pinto
Psicanalista. Doutor em Psicologia. Autor do livro Psicanálise, feminino, singular. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Orientador de tese de Isabela Santoro Campanário.

Angela Maria Resende Vorcaro
Psicanalista. Doutora em Psicologia. Autora dos livros Crianças na psicanálise. Clínica, instituição, laço social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999 e A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997. Co-orientadora de tese de Isabela Santoro Campanário