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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.65 Belo Horizonte July 2013

 

Algumas reflexões sobre a psicanálise em nosso tempo

 

Some reflections on psychoanalysis in our time

 

 

Laéria FonteneleI, II; Caroline Gonzaga TorresII; Rebeca EscudeiroII

I Universidade Federal do Ceará
II Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Seção Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo reflete sobre o avanço de discursos sobre a produção de novos sintomas e levanta a questão de que eles incorporam ao universo conceitual da psicanálise noções relacionadas à perspectiva que privilegia a descrição de sintomas em detrimento da etiologia, consoante o DSM IV. Para o exame desse problema, retoma alguns dos nexos entre sintoma e diagnóstico, presentes nessas vertentes, além das relações entre sintoma e estrutura. Conclui advertindo: anexar à psicanálise noções não legitimadas por sua clínica pode contribuir para seu descaminho.

Palavras-chave: Psicanálise, DSM, Sintoma, Estrutura.


ABSTRACT

This paper reflects the progress of speeches on the production of new symptoms and raises the question that they incorporate the conceptual universe of psychoanalysis, notions related to the perspective that privileges the description of symptoms in detriment of the etiology, according to the DSM IV. Retakes, some links between diagnostic and symptom, present in those strands, and also the relationship between symptom and structure. It concludes by warning: attaching to psychoanalysis, illegitimate notions by their clinic can contribute to their evasion.

Keywords: Psychoanalysis, DSM, Symptom, Structure.


 

 

Os problemas enfrentados pela psicanálise em nossos dias são, em parte, diversos daqueles que se impuseram à época de Freud e de Lacan; por outra parte, da mesma natureza. Esses problemas se devem não apenas ao modo como se dá a estruturação do aparelho psíquico e aos obstáculos que ele apresenta ao trabalho analítico em seu propósito de desalojar os sujeitos de sua posição sintomática, mas também à dificuldade de a psicanálise ser assimilada pela cultura sem resistência.

Por outro lado, em cada época os obstáculos a serem enfrentados pelos psicanalistas em sua prática podem ser creditados às contingências históricas, sociais e culturais, que incidem tanto nas dificuldades que se apresentam aos sujeitos em seus laços sociais e em suas condições materiais de existência, quanto nas saídas ofertadas pela cultura, em cada momento, para compensar o déficit de felicidade por ela mesma gerado. Em outras palavras, estamos nos referindo às formas e às magnitudes das frustrações impostas ao sujeito em cada época e às panaceias ofertadas por cada uma delas para minorá-las quando da impossibilidade de eliminá-las pela via realística.

Freud presenciou em sua clínica os constrangimentos pulsionais experimentados por homens e mulheres nos primórdios da modernidade: as consequências da mudança no ritmo de vida impostas pela Revolução Industrial; o avanço do capitalismo e do crescimento urbano e de seus impactos nos costumes e na vivência da sexualidade; bem como outros mais extremos e nocivos em suas consequências, como as guerras e o avanço do nazismo.

Lacan, por sua vez, se deparou com as dificuldades próprias da condição da cultura moderna e de seu progressivo aprofundamento. Vivenciou os movimentos artísticos e sociais em prol da liberdade política, social e sexual, bem como o alargamento dos costumes em geral. Não apenas vitórias puderam ser creditadas, mas também os preços pagos pela luta por fazer valer o desejo de realizar utopias então em voga. Lacan alertou para os problemas envolvidos com a progressiva construção de uma cultura sedimentada sobremaneira em simulacros e no valor imperativo que viria a assumir o discurso da ciência, tal como nos testemunha no seminário ...Ou pior.

Segundo Lacan (2012[1972-1973]), o império das aparências sobre o real tem por efeito a produção de discursos que negam as fraturas do ser em nome de sua obturação. Os poderes do eu são aclamados, as formas de gozo são vendidas de forma padronizada e renovadas através da reiteração do consumo de objetos que, entre outras coisas, dão a ilusão de distinção, elegância e poder, refletindo, com isso, imagens fetiches do ideal de perfeição.

O preço pago pela ilusão de bem-estar tão cultuada é o sepultamento do desejo, no que ele remete à singularidade de cada um, em nome do empuxo a ele; bem-estar que remete ao que Lacan (2012[1972/73]) nomeou com o termo “um-dividualismo”, escansão utilizada, no contexto desse seminário, em clara referência ao individualismo que era apregoado como uma das principais marcas do ataque ao enlace social na modernidade e que tem a sua radical incorporação nesse modo de gozo que remete ao autoerotismo, à obtenção de satisfação pulsional independentemente do outro.

Por seu turno, a sociedade de nosso tempo vive de forma profunda e radical as consequências da modernidade, e suas novas dificuldades são, sobretudo, a falta de perspectiva de vida, a queda dos ideais canônicos, o declínio das grandes narrativas e das utopias que marcaram a modernidade, bem como diversos outros fatores, entre eles, a consolidação do valor imperativo do discurso da ciência na regulação da dietética e da estética da existência do homem contemporâneo. Esses fatores evidentemente incidem no modo como se manifesta o que Freud (1988[1937]) denominou de supereu cultural. Considerar o supereu é de fundamental importância para o dimensionamento dos aspectos conjecturais presentes em nossa prática atual como psicanalistas.

Não se pode negar que tais aspectos concorrem para alterar a fenomenologia do sintoma, ou seja, seus modos de expressão, a forma como se oferecem ao olhar diagnóstico. No entanto, denominar tais alterações ou mesmo a prevalência ou magnitude de suas manifestações — inclusive em termos estatísticos, de “novos sintomas”, por incidirem de uma forma diversa em nossos dias ou porque “são mais frequentes” —, é algo que apresenta problemas ao exame dos nexos que envolvem o modo como a psicanálise opera em relação a eles e seus efeitos na cura, que está subordinada ao trabalho do psicanalista em assegurar o cumprimento da regra analítica, ao fazer operar a função desejo do analista (FREUD, 1988[1937]; LACAN, 1999[1958]).

Levando-se em conta a perspectiva estrutural inaugurada por Lacan (1987[1953];1985[1955-1956]), ou seja, a referência ao significante em sua relação com o inconsciente, não importa se um sintoma é novo ou velho. O que interessa é o modo como se dá o posicionamento dos sujeitos na sua relação com a verdade do seu desejo.

Freud, de certa forma, já advertira de outra maneira para isso, ao afirmar que, para a psicanálise, o que interessa quanto ao sintoma são o seu sentido, os caminhos de sua formação e o fato de que o seu desencadeamento está relacionado ao modo como ocorre a estruturação psíquica de cada sujeito, consoante as falhas observadas no processo de recalcamento responsável por ela. Não sem propósito, advoga que o recalque deixa sintomas em seu rastro (FREUD, 1988[1914]); sintomas que buscam, de uma forma disfarçada, a realização do desejo inconsciente.

Para Lacan (1979[1964]), tais rastros se relacionam à alienação do sujeito aos seus significantes fundamentais, portanto, ao seu afastamento deles e em suas consequentes operações pulsionais decorrentes do retorno de seus derivados. A esse respeito, retomando Freud, nos diz Assoun (1996, p. 85):

...o que o recalcamento neurótico realiza é a recusa da ‘tradução em palavras que devem permanecer conectadas ao objeto’. Tal é o neurótico como locutor do inconsciente: afastado de suas palavras na medida em que estas ficam coladas à sua coisa.

É importante, pois, considerar que existe a Estrutura — o próprio furo — e as estruturas clínicas, — o próprio furo e o processo de estruturação psíquica — ao modo neurótico, perverso ou psicótico — que é determinante para os mecanismos de produção do sintoma, muito mais do que os fatores desencadeantes, que só operam como tal a partir de suas confluências com os pontos de clivagem da estrutura do eu, decorrentes de sua própria edificação (FONTENELE, 2006; FREUD, 1988[1940-1938]).

Na contramão dessas diretrizes teóricas e clínicas estão psicanalistas que incorporam hoje ao seu discurso e à sua prática nosografias alheias às letras de Freud e de Lacan, no que diz respeito ao entendimento das afecções psíquicas e de suas considerações diagnósticas, entre as quais são as mais comuns: anorexia; bulimia; obesidade mórbida; toxicomania; depressão; síndrome do pânico; que, em nosso entendimento, levam ao abandono daquilo que a clínica psicanalítica tem de mais revolucionário e vigoroso: a consideração pela singularidade de cada caso e a necessidade de tomá-los sempre como se fossem os primeiros.

A adoção dessas terminologias não é inocente e rompe com o modo como Freud concebia o sintoma em sua relação com a neurose. Se fôssemos construir uma classificação das afecções psíquicas, fundamentada na teoria psicanalítica de Freud, ela seria dividida em duas grandes categorias: as neuroses de transferência ou psiconeuroses; e as neuroses narcísicas ou psicoses.

Com Lacan (1995[1956-1957]) a noção de estrutura levaria a uma classificação com três categorias, uma vez que ele acrescenta a estrutura perversa às categorias de Freud. Para Lacan, a consideração pelo diagnóstico diferencial das estruturas clínicas difere muito do diagnóstico baseado na identificação de sintomas que é, por exemplo, realizado a partir do instrumento multiaxial presente no DSM IV.

De origem americana, o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM IV) tem sua construção baseada numa proposta denominada de ateórica por seus idealizadores. Esse ateorismo levaria em consideração, segundo eles, a contribuição de todas as grandes correntes do saber psicopatológico, sem predominância de uma sobre as outras, o que incorreria na criação de categorias comuns, que poderiam ser tomadas por todos, facilitando a promoção do diálogo entre clínicos diversos, bem como o registro estatístico dos “transtornos mentais”, diagnosticados por profissionais da área em diversas partes do mundo.

De acordo com Ionescu (1997, p. 14), na abordagem ateórica, “o princípio fundamental é a ausência de referência a toda concepção teórica não demonstrada concernente à etiologia ou à patogenia”. Sendo assim, os autores do DSM tentam descrever as características clínicas e comportamentais da manifestação dos transtornos, a fim de defini-los. Uma consequência lógica do ateorismo etiológico é a adoção de um sistema multiaxial de avaliação, que prioriza os pontos de vista psicológico, biológico e social. Tal sistema de avaliação é composto por cinco eixos, e cada um se refere a uma classe de informações diferentes. Os três primeiros eixos são tipológicos, implicando categorias, e os dois últimos são dimensionais.

As características da proposta do DSM revelam o seu principal fundamento, o pragmatismo criado por Charles Peirce que foi determinante no percurso científico de William James e John Dewey; estes, por sua vez, influenciaram significativamente a psiquiatria americana, a qual, no que diz respeito aos seus direcionamentos, apresenta disputas, e a principal delas se refere ao movimento neokraepeliano, que se opõe à psicologia social, às psicoterapias dinâmicas e à psicanálise. Esse movimento, também conhecido como “colégio invisível”, teve como ápice a consolidação da proposta de ateorismo que se apresenta no DSM-IV (IONESCU, 1997).

As diversas exclusões ocorridas no manual demonstram incoerência no uso de critérios que as fundamentem. Se, por um lado, a exclusão de determinadas categorias, antes presentes no DSM III, se deveu à reivindicação de movimentos sociais (feministas, homossexuais, dentre outros) como foi o caso da retirada da categoria homossexualidade como sendo relativa a um “transtorno mental”; por outro, a exclusão das categorias freudianas de neurose e dos os aspectos conflituosos dos mecanismos de defesa do eu, oriundos das psicoterapias dinâmicas, que se observam no DSM IV, decorreram de disputas eminentemente políticas no âmbito da psiquiatria americana. (IONESCU, 1997). Isso atesta a falta de critérios científicos que sirvam de fundamentação rigorosa à proposição de modificações não só na classificação, como também na formulação de novas construções nosográficas para fins diagnósticos. Ora, se a pressão social tanto pode criar uma categoria nosográfica quanto extingui-la, testemunha-se o quanto são imprecisas as edificações conceituais que sustentam o saber sobre os “transtornos” e seu possível tratamento.

As citadas supressões, sobretudo a adoção do modelo sindrômico, têm por efeito a proliferação de novas realidades discursivas: transtornos de humor; transtornos de personalidade; transtornos alimentares; transtornos somatoformes; transtornos de identidade e de gênero, entre outros. Todos esses “novos transtornos” resultam não de considerações baseadas na escuta clínica dos sujeitos, e sim de uma metodologia que permite a criação de muitos outros deles ad infinitum, desde que sejam descritos e delimitados pela pesquisa empírica. Esse é um dos grandes problemas que levam à crítica desse pretenso ateorismo.

Além dessas, existem outras questões em torno da construção das classificações das doenças mentais em psiquiatria, que podem ser levantadas de forma mais geral. Braunstein (1987) salienta que a própria nomenclatura na classificação das doenças é problemática dada a imprecisão do que vem a ser uma doença mental ou um transtorno mental (problemas, desordens mentais) e ainda sua aplicação: o que viria a ser um sujeito transtornado mentalmente, problemático ou desordenado?

No que se refere à consistência teórica das classificações em psiquiatria, Braunstein (1987) levanta alguns aspectos que a impugnariam do ponto de vista científico, entre eles, a implícita presença em seu modo de construção do modelo classificatório de Lineu, elaborado para as espécies vegetais, e não para os humanos, revelando, assim, a inadequação da aplicação de critérios botânicos ao campo da psiquiatria, o que teria marcado de forma bastante evidente a medicina classificatória do século XVIII. Esta teria sido precedente ao método anatômico clínico, que teve a pretensão de isolar “a las enfermedades como especies naturales e incluirlas en un espacio clasificatorio homogéneo” (BRAUNSTEIN, 1987, p. 14). Mesmo remetendo a essas origens, as classificações psiquiátricas do século XIX e de parte do século XX sofreram grande influência de Kraepelin, “o Lineu da psiquiatria” (BRAUNSTEIN, 1987, p. 19).

Se o sistema classificatório de Kraepelin apresenta problemas que levam ao questionamento da coesão metodológica entre a classificação e seu objeto, a metodologia que permite a inclusão de novas categorias ou exclusão de categorias em vigor é, conforme pudemos atestar acima, ainda mais problemática. Nesse caso, não mais se trata apenas de compensar uma carência de solo epistemológico, — o que foi efetuado por Kraepelin por meio de diversos deslocamentos: “a falta de suelo lesional, suelo nocional. A falta de espacio corporal, espacio toxonómico. A falta de explicación, clasificación” (BRAUNSTEIN, 1987, p. 20-21) — e sim de uma produção discursiva ideológica.

Braunstein (1987) ressalta também que a tendência expansiva e a cobertura cada vez mais abrangente da classificação psiquiátrica americana terminam por configurá-la como um sistema que não permite o reposicionamento do sujeito frente ao seu sintoma. Dessa maneira, a busca do psiquiatra deve relevar toda a massa de acontecimentos singulares para alcançar o centro dos objetos classificados. Tal perspectiva caminha num sentido inverso ao da psicanálise, na medida em que ela visa a produção do sintoma com base no discurso do analisando, e não na observação fenomenológica de sintomas. Desse modo, a psicanálise coloca entre parênteses o sintoma, a síndrome e a enfermidade, a fim de redescobrir o sujeito que se oculta no olhar classificatório.

O método utilizado pela psicanálise provoca estranheza em tempos de DSM, pois as práticas diagnósticas nele amparadas resultam na identificação do sujeito com os significantes que o classificam, e o seu tratamento é realizado por meio de prescrição de psicofármacos, que venham tranquilizar não apenas o paciente mas também o seu médico. Para a psicanálise, o sintoma tem um sentido, um caminho de formação, que está atrelado à constituição do sujeito e que se encontra amparado em sua história particular. Os sintomas seriam formações substitutivas objetivando resolver um conflito gerado entre diferentes instâncias do aparelho psíquico que causariam prejuízos para a dinâmica do eu.

Em O caminho de formação dos sintomas Freud (1988[1916]) apresenta os sintomas como atos prejudiciais, inúteis a quem os têm e causadores de desprazer e sofrimento. Os sintomas seriam o resultado de um conflito que surge entre duas forças antagônicas: de um lado, a libido que busca se satisfazer; de outro, o princípio de realidade que incide sobre o sujeito trazendo-lhe a impossibilidade de se satisfazer. Sendo assim, a saída possível para libido é procurar vias alternativas de satisfação, por isso é compelida a tomar o caminho da regressão. Esse deslocamento da libido resulta na constituição do sintoma: “... as duas forças que entraram em luta encontram-se novamente e se reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado” (FREUD, 1988[1916], p. 361). Diferentemente, no caminho que leva à perversão, as regressões não provocam objeções por parte do eu, e a libido chegará a alguma satisfação real, ainda que não seja uma satisfação normal.

Além de apresentar um caminho de formação, o sintoma possui um sentido, como se observa em O sentido dos sintomas. Para Freud (1988[1916]), os sintomas apresentam um simbolismo particular que lhes fornece sentido, ainda que seja obscuro ou criptografado. O sintoma se estrutura à semelhança do sonho, representando de maneira simbólica um desejo insatisfeito. Desse modo, o sintoma não se refere a uma forma, e sim a um sentido resultante do caminho pelo qual se edificou. Isso demonstra a incongruência em se falar de novos sintomas ou de novas estruturas ou de estruturas de borda.

Em consequência desses fundamentos, o diagnóstico em psicanálise se ampara na escuta de significantes que possibilitam demarcar a localização do sujeito em relação ao objeto perdido do desejo e de suas relações para com os mecanismos que entraram em jogo em seu processo de estruturação psíquica. Nisso, o lugar ocupado pela subjetivação do conflito é fundamental e pode ser detectado a partir da posição em que o sujeito se coloca diante dos impasses que a realidade lhe apresenta e do modo como tal conflito afeta seus laços sociais em geral.

Em A cisão do eu no processo de defesa, Freud (1988[1940/1938]) nos oferece mais elementos para pensarmos do ponto de vista da estrutura a constituição do conflito psíquico, ao demonstrar que, em algumas circunstâncias, o eu se divide em duas correntes opostas: uma capaz de acatar a realidade (realidade da castração) e outra que a nega. A função sintética do eu é vulnerável, depende de condições específicas e é passível de sofrer uma série de perturbações. O sujeito sobre o qual a psicanálise incide é constitucionalmente dividido.

Diante disso, consideramos que o que se nos apresenta nos dias atuais é uma tomada do sintoma no lugar de sua relação com a estrutura, a qual (re)vela o sujeito. Com isso, o diagnóstico é amparado pela consideração de manifestações fenomênicas do sintoma sem a devida referência à escuta clínica, já que os manuais permitem o diagnóstico através de critérios descritivos e quantificáveis a serem colhidos a partir do que o paciente dá a ver de seus sintomas.

A utilização, portanto, no âmbito psicanalítico, das diversas categorias que caracterizam essas tendências diagnósticas atuais é totalmente incongruente, na medida em que, ao serem considerados como sintomas ou como quadros clínicos, independentes de qualquer consideração estrutural, nos levam a crer que há nisso algo da ordem de uma condescendência com o discurso do mestre. A exemplo disso, poderíamos citar o uso de um sintoma como definidor de um quadro clínico autônomo, levando a uma classificação diagnóstica baseada nos sintomas.

Ora, desde Freud e Lacan, sabemos que determinados sintomas, por exemplo, a anorexia, a angústia, o medo (ou pânico) são sintomas que podem estar presentes nas neuroses, nas perversões e nas psicoses, portanto não se prestam a uma definição etiológica. Tomá-los independentemente de seu contexto não seria fazer uma aliança com os eixos multiaxiais do DSM? Não seria ainda reduzir a prevalência de um sintoma em uma época a determinações sociais reflexivas e superficiais — tais como o imperativo social de um corpo magro como padrão de beleza e saúde; o exemplo dado a adolescentes por modelos esquálidas, entre outros como possíveis fatores desencadeadores da anorexia — que inclusive carecem de fundamentação sociológica rigorosa, ou mesmo a Freud e a Lacan, para os quais a complexidade da questão irá desembocar na compreensão de que o sintoma é construção que se dá na clínica analítica, e não existe fora do campo da fala e da palavra, a qual faz com que o sujeito possa vir a se manifestar. Lembremos que, para Lacan, o sujeito representado por um significante para outro significante, portanto, é fruto de seu dizer (LACAN 1985[1955-1956]; 1999[1957]).

Além da incidência, no campo psicanalítico, de uma forma não muito clara, da lógica multiaxial presente na perspectiva diagnóstica do DSM IV, tais discursos acarretam prejuízos incalculáveis para os destinos da clínica, pois fazem com que ela crie alianças com o discurso do mestre, que é avesso ao discurso analítico por manter o sujeito em sua alienação significante; daí Lacan o aproxima do discurso da psicoterapia, que para ele conduziria ao pior, ou seja, à compreensão.

Por tudo isso, consideramos oportuno retomar a advertência de Freud acerca dos perigos existentes em virmos a ceder com relação às palavras, pois isso nos levaria a ceder em relação às coisas. A incorporação de noções vazias de sentido clínico, com a pretensão de serem próprias às determinações sociais de nosso tempo, pode nos levar a traçar caminhos que nos conduzam a promover o descaminho da psicanálise em relação aos seus dois grandes fulcros: o inconsciente e a pulsão.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Caroline Gonzaga Torres
Rua 95, 1031 - 3ª Etapa - Conjunto Prefeito José Walter
60751-110 – FORTALEZA/CE
E-mail: torres.carolg@gmail.com

Recebido em: 28/02/2013
Aprovado em: 20/03/2013

 

 

Sobre as Autoras

Laéria Fontenele
Psicanalista. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Psicanálise da UFC. Diretora Adjunta da Revista de Psicologia da UFC. Diretora do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Seção Fortaleza.

Caroline Gonzaga Torres
Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela UFC. Associada ao Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Seção Fortaleza.

Rebeca Escudeiro
Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela UFC. Associada ao Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise - Seção Fortaleza.