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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.66 Belo Horizonte dez. 2013

 

ARTIGO

 

O que resta de Auschwitz? O que resta à psicanálise?

 

What remains of Auschwitz? What remains to psychoanalysis?

 

 

Maria Cristina Martins Moura

Aleph - Escola de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de Auschwitz, apreende-se que a memória das experiências horripilantemente vivas, impossíveis de serem ditas, não foram esquecidas. Em virtude do assolamento do simbólico pelo real, falta um tecido significante que possa descrever tal experiência. Por isso, muitos relatos foram acompanhados de síncopes, desmaios e crises de choro, demonstrando por meio do desaparecimento temporário do sujeito sua impossibilidade de dizer. Resta à psicanálise a-bordar o que resta de Auschwitz com o resto, que, na vertente analítica, se apresenta como a causa de desejo.

Palavras-chave: Memória, Resto, Real.


ABSTRACT

From Auschwitz's point of view, it is apprehended that the memory of horrifying experiences lived, impossible to be told, have not been forgotten. Because of the havoc of the symbolic by the real, a significant tissue is missed, which could be able to describe such experience. Therefore, many reports were accompanied by syncope, fainting out and crying spells, demonstrating through the temporary disappearance of the subject his or her impossibility to tell. It remains to psychoanalysis ap-proach what remains of Auschwitz with the rest, that, due to the analytic branch, is presented as the cause of desire.

Keywords: Memory, Rest, Real.


 

 

A partir do convite endereçado ao Aleph - Escola de Psicanálise para compor a mesa sobre o tema O que se faz quando se faz psicanálise, neste momento tão importante para nós, psicanalistas, que é a comemoração dos 50 anos do CPMG, me ocorreu propor uma analogia entre O que resta de Auschwitz, título do livro de Giorgio Agamben, e O que resta à psicanálise.

O nome "Auschwitz" (segundo Jenne Marie Gagnebin, que faz a apresentação do livro de Agamben) não é simplesmente o símbolo do horror e da crueldade inéditos que marcaram a história contemporânea com uma mancha indelével; "Auschwitz" também é a prova, por assim dizer, sempre viva de que o nomos (a lei, a norma) do espaço político contemporâneo — portanto, não só do espaço político específico do regime nazista — não é mais a bela (e idealizada) construção da cidade comum (pólis), mas sim o campo de concentração:

O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra[...] Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico jamais realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação. (Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, cit. P. 175, 177/178, Pelbart, Peter Pál, Vida Capital, São Paulo, Iluminuras, 2003)

Esse campo, que se abre no mundo a partir do regime nazista, levando a experiência da vida crua, nua, despojada de qualquer mediação, concerne à psicanálise.

O que resta de Auschwitz não significa, então, aquilo que ainda poderia sobrar, permanecer desse terrível acontecimento, algo como um famigerado "dever de memória", uma horripilante lembrança de uma expressão cujos usos e abusos são conhecidos. O resto indica muito mais um hiato, uma escansão, uma lacuna, mas uma lacuna essencial que funda a língua do testemunho, daquele que o diz, que testemunha com o seu dizer, que o diz mais do que o próprio dito, em oposição às classificações exaustivas do arquivo.

Resto é um conceito teológico-messiânico. Nos livros do Antigo Testamento, o que nos salva não é todo o povo de Israel, mas um resto. O resto não parece remeter a uma porção numérica de Israel. Resto é a consistência que Israel assume no ponto em que é posto em relação com a salvação ou com a eleição. Assim como o resto de Israel não é todo o povo nem uma parte dele, mas significa precisamente a impossibilidade, para o todo e para a parte, de coincidir consigo mesmos entre eles; e assim como o tempo messiânico não é nem o tempo histórico, nem a eternidade, mas a separação que os divide; assim também o resto de Auschwitz — as testemunhas — não são nem os mortos, nem os sobreviventes, nem os submersos, nem os salvos, mas o que resta entre eles.

Assim sendo, esse obsceno horror de Auschwitz, além de vividamente nos alertar para o nunca mais, nos força a uma passagem importante na clínica psicanalítica, uma vez que a impossibilidade de dar testemunho já não é realmente uma simples privação, mas se tornou real, existe como tal, como sabemos com a psicanálise. Se o sobrevivente dá testemunho não da câmara de gás ou de Auschwitz — de que não é possível dar testemunho — se ele fala apenas a partir de uma impossibilidade de falar, então seu testemunho não pode ser negado. Fica provada, de modo absoluto e irrefutável, a possibilidade de palavra só pela impossibilidade de dizê-la. O fato de que não tenha sido pronunciada não significa que a experiência a que elas se referem não tenha existido. Dessa forma, assinala o ter lugar de uma língua como evento de uma subjetividade.

A partir da experiência de Auschwitz apreendemos que o exaustivo dever de memória de experiências horripilantemente reais, impossíveis de dizer, não é que foram esquecidas. É que diante do real da experiência, elas são impossíveis de dizer, por ser impossível transcrevê-las e traduzi-las todas.

Assim, o que resta funda a língua que sobrevive como possibilidade ou impossibilidade de falar e institui a verdade de sua fala no ato de dizer a dimensão de sua meia verdade, marcada pelo traço de sua estrutura e submetida ao horror do real.

No um a um, há que ouvir o resto de Auschwitz no que resta à psicanálise. A partir de Lacan talvez se possa dizer nesse momento da importância da passagem da escritura do nó borromeano de três para o de quatro, pois desloca o centro do discurso de uma dimensão simbólica para a do real.

Essa posição de Lacan modifica a noção de causalidade psíquica, que passa a ser determinada pela própria dimensão do real. Com essa outra escritura a conexão racional e linear de causalidade psíquica se rompe e faz ver outros paradigmas, como a teoria das catástrofes de René Thom e a teoria do caos de Ilya Prigogine.

 

 

O que René Thom conseguiu capturar majestosamente foi a importância que os parâmetros têm nos processos dinâmicos. Uma pequena mudança num parâmetro pode transformar um cenário de céu azul em tempestade. É o que mostra a figura com a nomenclatura da catástrofe.

Mas esse cenário diz respeito à intervenção do homem sobre a natureza. Entretanto, a verdadeira catástrofe ocorre quando um homem transforma o cenário de humano em inumano. Foi o que o shoah nos ensinou.

Com a proposta de pensar a psicanálise na contemporaneidade, tema deste encontro, para além do horror do que vimos, do que ouvimos e do que lemos e para além do intestemunhável podemos, então, interrogar:

Em que o que resta de Auschwitz resta à psicanálise? O que podemos apreender do limite de passagem da humanização para a desumanização, da contingência para a necessidade, da dor para o obsceno, do prazer para o gozo?

Com Lacan, em O sintoma apreende-se a passagem da palavra como significante à importância da palavra como voz, um deslizamento da força do significante à topologia dos nós. De tal forma que o sonoro será o deslizamento do significante a ser interpretado pelo analista, ao toque, onde o analista — ao tocar o real, que é como um caroço que, ao ser tocado, faz ressoar como algo diferente na estrutura — institui uma nova posição de sujeito.

Esses eventos evacuados de sentido interrogam o sujeito, com o que é do real, mas também o intimam a fazer algo como a arte de um artífice. Lacan os equivale ao "sinthome".

Lacan se vale da homofonia entre "sinthome" e "l'homme" e, por efeito de um deslizamento, ele chega a "LOM", um neologismo que criou, para dizer de um sujeito dividido. Afirma que o inconsciente, enodando-se ao sinthomem, que é a condição mais singular de cada um, vai se identificar a essa noção do LOM ao individual. Um LOM, embora o diga individual, não quer dizer indivíduo, mas se constitui como composto trinitário formado de elementos, em que cada elemento faz Um e é equivalente ao traço unário.

Talvez vocês se recordem de que em uma de suas conferências sobre Joyce, Lacan sustenta que LOM é constituído pelo saber inconsciente e, portanto, se articula com o Um, com o S1 e com o enxame.

"Esse S1, mesmo que não mais faça conexão com S2, vem representar 'verdadeiramente o sujeito... isso quer dizer [representá-lo] conforme a realidade'" (LACAN, 2007). Ou seja, a ex-sistência de S1 numa posição ex-cêntrica em relação à estrutura institui a divisão "trinitária" do LOM, que de acréscimo ainda passa a contar com um corpo e fala com o seu corpo.

Com relação ao Um, trata-se do um que não unifica ao estar em contato com a letra, com a escritura que determina e obriga o sujeito a fazer algo como um dever ético. Esse fato de estrutura impele LOM a fazer algo que não pode deixar de ser feito, por isso Lacan o relaciona à arte do artesão.

O sujeito inventa sua arte através de um saber fazer com... pedaços de real e com o saber inconsciente. Ou seja, através de uma constelação de falas impostas que não necessitam ser compreendidas, um elemento novo surge e ganha estatuto de um "significante novo", que não está ligado à vertente histórica do sujeito, à repetição e nem mesmo ao retorno do recalcado, mas algo que o LOM produz com sua arte como uma invenção.

O que resta à psicanálise diante disso?

Se nossa fundação está em Sigmund Freud, se nossa busca em Lacan nos acrescenta muito pela via da lógica e direção do tratamento, agucemos nossa escuta cotidiana do ronronar de cada dia. Busquemos o LOM em cada um de nossos analisantes.

Se a modernidade nos traz avanços tecnológicos, e eles são benéficos ao nosso exercer para que o outro não padeça em sofrimento, não recuemos dos avanços em prol da humanidade. No século XXI nos vemos diante de uma forma outra que não a revolução, ou subversão do significante mas a força da autoridade do significante, pautados na lógica da mínima diferença, descentrados do sentido e pautados na força voz.

O que resta de Auschwitz como lacuna essencial, uma escansão para que cada um possa "ter que se virar" com o intransmissível do que resta a dizer desse indizível horror.

Diante do impossível de dizer a partir de Auschwitz, resta à psicanálise operar com o resto, enquanto "a" causa de desejo. Mais além do submetimento experimentado ao outro, para além do excesso de desumanização, para além da impossibilidade da memória a ser recuperada, uma saída contingencial onde o real, ao ser tocado, faça ressoar como algo diferente na estrutura, capaz de levá-lo a uma nova posição.

 

Referências

AGAMBEN, G. O que resta de Auschivitz. São Paulo: Boitempo, 2008.         [ Links ]

JORGE, F. Hitler: retrato de uma tirania. São Paulo: Geração, 2012.         [ Links ]

KAFKA, F. Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.         [ Links ]

LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.         [ Links ]

LACAN, J. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência:
Rua Fernandes Tourinho, 737/707 – Funcionários
30112-000 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: mmartinsmoura@gmail.com

Recebido em: 04/06/2013
Aprovado em: 14/06/2013

 

 

Sobre a Autora

Maria Cristina Martins Moura
Psicanalista. Membro do Aleph – Escola de Psicanálise.