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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.66 Belo Horizonte dez. 2013

 

ARTIGO

 

O conceito de sublimação: metas assexuais e valor cultural1

 

The sublimation's concept: asexual goals and cultural value

 

 

Kátia Botelho de Carvalho

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Pontifícia Universidade Católica-MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da investigação do conceito de sublimação na obra freudiana, a autora articula a ideia de que o valor cultural atribuído à vicissitude pulsional sublimatória se relaciona intimamente ao caráter assexual das metas pulsionais. Para tratar essa enigmática passagem, trabalha a dimensão paradoxal da satisfação pulsional percorrendo o caminho que vai do texto de Freud sobre a pulsão e seus destinos até a formulação de Lacan sobre o objeto a, pensando a sublimação como aquilo que confere ao Trieb uma satisfação diferente de seu alvo e articulando-a à noção de das Ding.

Palavras-chave: Sublimação, Valor cultural, Dessexualização da pulsão, Objeto a, Das Ding.


ABSTRACT

From the investigation of the concept of sublimation throughout Freud's work, the author articulates the idea according to which the cultural value attached to sublimatory instinctual vicissitude is closely related to the character of instinctual asexual goals. In order to treat this enigmatic passage, the author works the paradoxical dimension of instinct's satisfaction from the Freudian text Instincts and their Vicissitudes up to Lacan's formulation on the object a. Sublimation is understood as that which gives Trieb a different way of satisfaction from its target linking it to the notion of das Ding.

Keywords: Sublimation, Cultural value, Drive's desexualization, Object a, Das Ding.


 

 

A sublimação considera eticamente,
sem medo, a perda de sentido,
a qual se apresenta na gratuidade de suas obras.

POMMIER.

 

No decorrer de nossa investigação sobre o conceito de sublimação na obra freudiana, configurou-se progressivamente a ideia de que o valor estritamente cultural atribuído ao destino pulsional em questão estava intimamente relacionado ao que Freud designou como o caráter assexual das metas pulsionais. Não há como falar de um sem articulá-lo ao outro.

A partir da instalação do saber psicanalítico no mundo, ficou estabelecido que a cultura humana foi construída às expensas da satisfação pulsional. O texto de 1929 sobre o mal-estar na cultura apresenta a argumentação em torno dessa relação direta entre renúncia ao prazer e construção cultural. Mas não é só aí que se pode encontrá-la. Essa ideia primária está nos fundamentos da teoria psicanalítica e se estende ao longo da obra freudiana. Ver passagem nas Conferências de introdução à psicanálise (FREUD, [1933] 1996, p. 20).

Ali se mostra como a capacidade para sublimar está basicamente fundada na faculdade de permutar a meta sexual originária por outra, não mais sexual, mas, como Freud escreveu em diversos textos, "psiquicamente aparentada" (FREUD, [1908] 1996, p. 168) com ela, colocando à disposição do trabalho cultural grandes volumes de força, sem perda significativa de sua intensidade.

Já nos Três ensaios (1905) se encontra um curioso comentário de Freud acerca do tocar e do mirar, no item referente às fixações das metas sexuais. A cultura mantém a curiosidade sexual desperta, a partir justamente da imposição de cobrir o corpo, o que resulta para o sujeito numa aspiração a completar o objeto sexual mediante o desnudamento das partes ocultas. No entanto, e aí está a indicação da possibilidade de permuta, tal tendência ao desnudamento do corpo pode ser "desviada (sublimada) no âmbito da arte" (FREUD, [1905] 1996, p. 142), desde que o indivíduo possa redirecionar seu interesse pelos genitais para a forma do corpo como um todo.

Sabe-se que essa possibilidade de deslocamento das metas sexuais varia enormemente de indivíduo para indivíduo e em etapas diferentes na vida. A despeito disso, sempre será possível estender a sublimação a porções mais vastas, a partir das experiências de vida e do "influxo intelectual do aparelho psíquico" (FREUD, [1908] 1996, p. 169).

No estudo sobre Leonardo da Vinci, Freud afirma que:

[...] a maioria dos seres humanos consegue guiar porções consideráveis de suas forças pulsionais sexuais no sentido de suas atividades profissionais (FREUD, [1910] 1996, p. 72).

No capítulo VI, ele diz que:

[...] a maior parte das necessidades da pulsão sexual poderá sublimar-se, graças ao prematuro privilégio do apetite de saber sexual, em um esforço de saber universal, escapando assim do recalcamento (FREUD, [1910] 1996, p. 123).

Assim, importa ressaltar na operação de sublimação a singular plasticidade das pulsões sexuais, que são susceptíveis de ser substituídas umas pelas outras. Além disso, quando a satisfação de uma é frustrada pela realidade, a de outra pode ressarcir a primeira. A imagem plástica que Freud nos apresenta é que as pulsões sexuais se comportam entre si como uma rede de vasos comunicantes. Além disso, tanto as pulsões parciais quanto a aspiração sexual que as sintetiza mostram uma grande capacidade para mudar seus objetos, trocá-los por outros mais exequíveis.

Esta proclividade ao deslocamento e à adoção de substitutos facilita a atividade de processos que protegem o indivíduo de adoecer em consequência de frustrações e privações inevitáveis, o que favorece significativamente o desenvolvimento cultural. Entre esses processos está a sublimação:

Consiste em que a aspiração sexual abandone sua meta dirigida ao prazer parcial ou ao prazer da reprodução e adote outra que se relacione geneticamente com a renunciada, mas já não é ela mesma sexual, deve-se chamá-la social (FREUD, [1933] 1996, p. 315).

Aliás, há uma breve explicação do termo 'sublimação' apoiado no juízo geral, que situa as metas sociais num nível mais alto que as sexuais, porque no fundo são egoístas. De toda forma, fica clara a importância da mobilidade libidinal para se estabelecer a medida da capacidade de sublimar, que varia de indivíduo para indivíduo conforme o grau de libido insatisfeita que se pode tolerar, bem como o menor ou maior número de metas e objetos dos quais depende a satisfação pulsional sexual.

Parece oportuno considerar também a maneira como outros autores psicanalíticos trataram essa enigmática "passagem" das metas sexuais para metas não sexuais ou sociais, como Freud preferiu nomear. Lacan trabalhou essa questão no Seminário 11, na parte relativa à transferência e à pulsão (LACAN, [1964] 1979). No capítulo XIII, ele retoma a caracterização da pulsão que se encontra no texto metapsicológico de Freud ([1915] 1996).

Lacan assinala o fato de que o Trieb é algo que tem caráter de irreprimível, mesmo através do recalque. Trata-se de uma excitação [Reiz] proveniente do mundo interno, diferente de toda e qualquer estimulação vinda do mundo exterior. Caracteriza-se por uma força constante [konstante Kraft], cuja descarga se diferencia totalmente de algo que se relacione com o movimento, com uma força de choque [Stosskraft]. Essa constância do impulso proíbe qualquer assimilação da pulsão a uma função biológica, que se regula por ritmos. E acrescenta:

[...] ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, não tem subida nem descida (LACAN, [1964] 1979, p. 157).

 

A satisfação da pulsão e seu objeto

Quando se pergunta o que pode ser a satisfação [Befriedigung] da pulsão é que a questão do alvo [Ziel] se coloca e aponta para a problemática vicissitude sublimatória. Pois aqui, na sublimação, não se trata menos da satisfação da pulsão, ainda que Freud tenha dito que ela é zielgehemmt, inibida quanto a seu alvo. O que pode ser uma satisfação pulsional que não atinge o seu alvo? Neste ponto, é necessário citar o comentário instigante feito por Lacan:

Em outros termos — por enquanto eu não estou trepando, eu lhes falo, muito bem!, eu posso ter a mesma satisfação que teria se eu estivesse trepando. É isto que quer dizer. É isto que coloca, aliás, a questão de saber se efetivamente eu trepo (LACAN, [1964] 1979, p. 157).

Assim, conclui que o uso da função da pulsão não tem outro valor senão pôr em questão o que é da ordem da satisfação. Isso já aponta para o fato de que a satisfação é algo paradoxal, levando Lacan a colocar em jogo a categoria do impossível. Por um artifício engenhoso ele estabelece o real como o oposto do possível, definindo, assim, o real como o impossível, com base na sua particular leitura do texto freudiano, no qual o real aparece como obstáculo ao princípio do prazer. Assim, Lacan distingue o real por sua separação do campo do princípio do prazer, literalmente, por sua 'dessexualização', cuja economia admite 'algo de novo', ou seja, 'o impossível' (destaques nossos).

Essa é uma perspectiva interessante, surpreendente e promissora para recolocar a questão referente à nova meta pulsional, que é fundamental na operação de sublimação. Afinal, o que vem a ser a dessexualização de uma pulsão? Como algo que é sexual pode deixar de ser sexual? De fato, ao colocar o real como categoria que admite algo de novo, da ordem do impossível, não se está abrindo caminho para pensar a satisfação sempre paradoxal, ainda que impossível, e mesmo assim "quase possível", na sua dimensão sublimatória?

Seria possível ainda pensar no fato, também evidenciado no cotidiano de nossa clínica: se algo se satisfaz, há sempre uma impossibilidade de satisfação total, como se na própria pulsão algo se recusasse a se satisfazer. Esta suposição está em O mal-estar na civilização (1930). Ali, no quarto capítulo, que se caracteriza como especulação teórica, após comentar as restrições impostas pela civilização à vida sexual dos seres humanos, Freud faz a conjectura de que a vida sexual parece estar em processo involutivo, tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos. E finaliza com esta surpreendente afirmação:

Muitas vezes somos levados a pensar que não se trata apenas da pressão da civilização, mas de algo que está na essência da própria função, que nos nega a satisfação plena e nos incita a outros caminhos (FREUD, [1930] 1996, p. 103, destaques nossos).

Freud já nos indicava essa dimensão paradoxal da satisfação pulsional, o que nos leva de volta ao texto de Lacan, no qual se avança ainda mais, pela demonstração da categoria do impossível também presente no campo do princípio do prazer.

Ora, como se percebe tal presença? Pelo fato, já assinalado por Freud, de que a alucinação possa ser um modo de satisfação da pulsão. E mais, como nos diz Lacan: a pulsão apreendendo seu objeto, apreende de alguma forma que não é propriamente por aí que ela se satisfaz. Isso nos remete à importante distinção entre necessidade [Not] e exigência pulsional [Bedürfnis], mostrando que nenhum objeto que permite a satisfação da necessidade pode satisfazer a pulsão. Daí o exemplo interessante que Lacan apresenta sobre a pulsão, indicando justamente que não é pelo alimento que ela se satisfaz, mas por algo que se poderia nomear de "prazer da boca".

Freud, no texto metapsicológico sobre As pulsões e suas vicissitudes (1915), observa que o objeto da pulsão não tem nenhuma importância, na medida em que ele é o mais variável na pulsão: não está originariamente enlaçado com ela e pode ser tanto de natureza estranha quanto uma parte do próprio corpo. Aliás, como já dissemos, o objeto [Objekt] da pulsão pode sofrer uma variedade de "mudanças de via" [Wechsel], deslocamento que corresponde aos mais diversos caminhos pulsionais, entre eles, a sublimação. Importa de fato ressaltar que o objeto só está coordenado à pulsão em consequência de sua aptidão para possibilitar a satisfação.

Como "possibilitar" a satisfação? De que concepção do objeto da pulsão se trata para que se possa dizer que ele é indiferente, que ele é insignificante?

É aqui que Lacan faz sua contribuição original ao corpo teórico da psicanálise, inventando o que ele achou por bem nomear de objeto a, causa do desejo. Para dizer qual o seu lugar na satisfação da pulsão, ele apresenta a seguinte fórmula: a pulsão o contorna (LACAN, [1964] 1979, p. 160, destaque no original).

Contorna no sentido ambíguo de um contorno ou borda em torno da qual se dá a volta e, ao mesmo tempo, do verbo contornar, ou seja, resolver o problema com uma proeza, empalmando-o. Lacan pensou no verbo em inglês turn the trick. Dessa forma, retoma com precisão o que é fundamental em Freud, no nível de cada pulsão, a saber: o vaivém no qual ela se estrutura, o caráter circular do percurso da pulsão. No capítulo XIV do Seminário 11, chega inclusive a fazer o traçado hipotético da pulsão:

Vocês veem aqui, no quadro, desenhados um circuito pela curva dessa flecha que sobe e torna a descer, que atravessa, Drang que ela é na origem, a superfície constituída pelo que lhes defini da última vez como a borda, que é considerada na teoria como a fonte, a Quelle, quer dizer, a zona dita erógena na pulsão. A tensão é sempre um fecho e não pode ser dissociada de seu retorno sobre a zona erógena (LACAN, [1964] 1979, p. 169).

Desse modo, pode-se esclarecer esse mistério em torno da inibição ou desvio do alvo: como uma pulsão pode atingir sua satisfação sem atingir seu alvo, alvo definido pela função biológica da reprodução sexuada. Como a pulsão é parcial, seu alvo não é outra coisa senão seu retorno em circuito, fechando-se sobre um objeto que não passa da presença de um vazio, que pode ser 'disfarçado'indiferentemente por qualquer objeto imaginário, cuja instância, nos diz Lacan, só conhecemos na forma de objeto perdido — a minúsculo.

 

Pensando a sublimação a partir da noção de das Ding

Encontra-se no Seminário 7 um tratamento especial do assunto, pela vertente que articula o conceito de das Ding com o conceito de objeto. Assim, Lacan nos apresenta a sublimação como aquilo que confere ao Trieb uma satisfação diferente de seu alvo, que está definido como sendo o alvo natural e que, por isso mesmo, revela a natureza própria ao Trieb, que é se distinguir do instinto. Aí se introduz a noção de das Ding — como aquele campo com o qual os Triebe se relacionam, lugar dos Triebe — a ser distinguida do objeto enquanto imagem ou reflexo atrator do homem em sua embocadura no mundo, de modo que a 'coisa'está no âmago da economia libidinal. Lacan propõe, então, sua fórmula da sublimação como "aquilo que eleva um objeto à dignidade da coisa" (LACAN, 1988, p. 141).

Entendemos que se trata da revelação da 'coisa'para além do objeto, contudo a partir do emprego que se faz desse mesmo objeto. O exemplo que Lacan oferece é a disposição, extremamente graciosa, das caixas de fósforos vazias, encaixadas umas nas outras por um ligeiro deslocamento da gaveta interior, formando uma fita coerente sobre o rebordo da lareira e adjacências, na casa de seu amigo Jacques Prévert. Com isso se obteve um efeito ornamental, que na verdade não é o mais importante. Para Lacan nem mesmo a satisfação obtida pelo responsável desse arranjo era o que havia de mais substancial. O que importa é o efeito surpreendente de novidade, realizado por esse ajuntamento de caixas de fósforos vazias, fazendo aparecer o essencial, ou seja, a 'coisidade'da caixa de fósforos para além de sua mera existência de objeto. Assim o disse Lacan:

[...] uma caixa de fósforos não é de modo algum simplesmente um objeto, mas pode, sob a forma [Erscheinung] em que estava proposta em sua multiplicidade verdadeiramente imponente, ser uma Coisa (LACAN, [1959-1960] 1988, p. 143).

Para ele, esse caráter completamente gratuito, proliferante e supérfluo dessa coleção revelava a 'coisa'para além do objeto apontando, assim, uma das formas da sublimação, ainda que das mais inocentes. Lacan deixa escapar um comentário levemente irônico sobre o pouco que basta para satisfazer a sociedade, pois, a partir dessa criação totalmente despretensiosa, pode-se vislumbrar a dimensão de valor social que os produtos da sublimação engendram no corpus social.

De fato, ele foi levado a dar aquele diminuto exemplo do que está em questão na sublimação para mostrar como o "inventar um objeto numa função especial" pode gerar "estima, valorização e aprovação" na sociedade.

E se pode parecer que, com esse inocente exemplo, haveria um rebaixamento ou mesmo banalização da função sublimatória, gostaríamos de nos adiantar contra tal opinião. Se há algo que queremos ressaltar é o caráter de acessibilidade à operação de sublimação no aparelho psíquico da maioria dos seres humanos. Para isso, se faz necessário desvinculá-la da ideia geral e aceita de que só as grandes obras, mundialmente reconhecidas, são dignas de receberem a etiqueta "made in sublimation". Nesse sentido, o exemplo de Lacan é enfático. Vemos ali o prenúncio do caráter de enlaçamento social que as ações sublimatórias engendram.

Nessa perspectiva, como bem o assinala Gerard Pommier,

[...] a sublimação não é mais o fundamento de uma elite artística é um destino obrigatório da pulsão, uma criação necessária à existência (POMMIER, 1990, p. 193).

Ao dizer "criação necessária à existência", Pommier conceitua a sublimação como "o ato que permite ao sujeito se desfazer de sua identificação ao falo", ou, para dizer de um modo mais exato, como um ato que permite ao sujeito manter sua identificação ao falo a distância e, ao mesmo tempo, mostrá-la na obra (POMMIER, 1990, p. 193). Desse modo, o autor entende que o ato de criação possibilita o afastamento do sujeito daquele desejo estranho, enigmático (do Outro materno) que o capturou, desviando-o da alienação primeira e do destino sexualizado, do qual seu corpo inteiro foi investido no instante em que é identificado ao falo. Isso se explica pelo fato de a pulsão ser um efeito de linguagem e, portanto, responder pela demanda do Outro materno, buscando satisfazê-la.

Assim se pode entender a dessexualização da pulsão: pelas mesmas vias que o sexualizaram, seja o olhar, seja a voz, seja o toque, seja o cheiro, o sujeito que cria retrocede no curso do que o submergiu, constituindo, a distância dele, "...a obra que ocupa o lugar do que ele era para o Outro, aquele do falo" (POMMIER, 1990, p. 195). Ao se desembaraçar de sua posição fálica, através do processo ativo da sublimação, pode-se observar o que vinha sendo, para nós, o enigma da dessexualização do corpo. Pode-se pensar que aquilo que se perde na forma de renúncia a um gozo sexual se recupera alhures, no prazer chamado estético, graças à obra. Ao promover um distanciamento, a obra ratifica a separação, na medida em que ela é, paradoxalmente, a ocasião de um prazer que se constitui em torno de uma falta ou de um vazio. A obra, sendo efeito de uma renúncia, "circunda-a ao renegá-la".

E eis-nos de volta ao aforismo lacaniano da sublimação: "elevar o objeto à dignidade da Coisa" (LACAN, 1988, p. 141). O que define a sublimação é a possibilidade de o objeto, definido a partir da relação narcísica (imaginária), recobrir o campo de "das Ding", campo visado pela pulsão, sem, no entanto, encobri-lo totalmente. Se a sublimação é um modo de satisfação da pulsão, distinto da satisfação produzida, por exemplo, no sintoma, é justamente porque ela pode encontrar seu alvo em outro lugar — nas formas valorizadas histórica e socialmente — que o de sua visada primeira, o campo de "das Ding". Esse campo é marcado pela intensidade das paixões que presentificam o registro da pulsão de morte e que, ao mesmo tempo, tem sua contrapartida no imperativo erótico que provê o fundamento estético — como sugere Maria Inês França em Psicanálise, estética e ética do desejo —, fundamento que é "brilho resplandecente", ponto central da economia do desejo que emerge do vazio de objeto (FRANÇA, 1997, p. 188).

Das Ding, o inatingível 'bem supremo', é aquela primeira coisa que se separa de tudo o que entra no campo simbólico, a partir da nomeação e articulação significantes. É a perda potencialmente orientadora de nossas buscas. Apesar de ser estruturalmente irrepresentável, ela permite a fecundidade do erotismo, que recria a partir do vazio deixado pela perda inaugural, fundando a possibilidade de nascimento do sujeito, desejante. O vazio será o modo por excelência da representação de das Ding, embora não se confunda com ele, pois ambos têm em comum a característica de "padecerem de significantes". Será, então, possível reconhecer o brilho de das Ding nos objetos criados no circuito da sublimação, o que explica o aforismo lacaniano de que tais objetos permitem alcançar a dignidade da coisa na medida de sua relação de exterioridade íntima, de extimidade com esse vazio. É nisto — no fato de o objeto estar situado com referência a das Ding — que se pode conceber a sublimação como capaz de produzir satisfação, a partir da função plástica da pulsão, em direção ao horizonte da Coisa. Isso permite reconhecer na sublimação, a "marca da articulação significante". É por estar profundamente marcada pela articulação do significante que a tendência (Trieb) pode encontrar satisfação na mudança de seu objeto. Lacan insiste nisso:

[...] essa relação propriamente metonímica de um significante ao outro que chamamos de desejo não é o novo objeto, nem o objeto anterior, é a própria mudança de objeto em si (LACAN, [1959-1960] 1988, p. 352).

Retomando a definição de Freud de sublimação como satisfação sem recalque, podemos agora entender com Lacan que há aí, explícita ou implícita, uma passagem do 'não saber'ao saber, ou seja, um reconhecimento de que o desejo nada mais é do que a metonímia do discurso da demanda.

Dessa maneira, a questão da renúncia pulsional, no âmbito da sublimação, poderia se traduzir em realizações valorizadas socialmente, na medida em que a renúncia implicada na sublimação é consoante ao desejo, isto é, é uma satisfação coordenada pelo significante, portanto, por ele limitado.2 Daí o lugar fundamental que a sublimação ocupa no pensamento freudiano em relação à oposição inclusiva do individual/coletivo, a partir da capacidade de Eros engendrar enlaçamento social. Para França (1997), a outra satisfação própria da sublimação é mediadora dos laços sociais, na medida em que "o objeto elevado à dignidade da Coisa" não se torna necessariamente sublime, ao contrário, sua função é de alguma maneira desvelada "como uma potência insistente e cruel" (FRANÇA, 1997, p. 151). Tal potência remete ao "eterno retorno do mesmo", no sentido da aproximação de algo insuportável, do avanço na direção de um vazio central, de algo enigmático, daquilo que há de mais Unheimlich no desejo.

Ainda assim, a sublimação adquire uma aprovação "pública", ou é introduzida num espaço socialmente aceitável. Para John Rajchman, em Eros e verdade, a sublimação é, por assim dizer, o "espaço público" da "outra satisfação", cujos efeitos a psicanálise desvenda nas intrincadas patologias de nossa vida. A sublimação veicula inclusive aquilo que Freud chamava de "valor secundário", quer dizer, o fato de se poder conquistar fama e fortuna a partir do desvio pulsional de tendências perversas que noutros indivíduos precisariam ser recalcadas. Rajchman (1993, p. 86-87) chega a ponto de se interrogar por que a sociedade haveria de aprovar os objetos que fazemos dos desvios de nossas libidos, conferindo-lhes então um sentido basicamente inútil (no seu entender) de "elevação". Qual seria o "valor" disso?

Para responder a essa indagação, Rajchman (1993) segue um percurso que passa pelo tema da "perda do objeto" — que, para a psicanálise, é tanto evento quanto sina —, pela importância retroativa de darmos conta do que para nós significou perder esse objeto, a partir dos substitutos que encontramos ao longo de nossa vida. Chega, então, à formulação de "das Ding" em Lacan, para mostrar que a sublimação não representaria3 essa Coisa que em nossa perda nunca possuímos ou representamos; ela "recriaria" o vide (vazio) deixado por essa perda. Por ser essa perda "irrepresentável", mediante a recriação sublimatória se descobriria outro destino para a pulsão, que não o da angústia ou da depressão, o da perversão ou da neurose. Formula, assim, a definição de sublimação como "reencontrar essa coisa que não se estava procurando", de tal modo que nossas "criações" viriam nos surpreender, revelando algo de singular sobre nós. Tal surpresa e tal revelação permitiriam a descoberta de um estilo que nos fosse mais próximo e precioso do que qualquer outra coisa que pudéssemos tencionar possuir. Acaba, assim, por forjar a ideia de que a

[...] sublimação é o espaço público em que esses dialetos ou estilos singulares se encontram e se entrecruzam (RAJCHMAN, 1993, p. 88).

Cada criação significante oferecendo-se como vislumbre fulgurante da Coisa, a ser desfrutada "um por um", e todos ao mesmo tempo.

Como diz Rajchman (1993), é esse o valor da sublimação, pois, através de suas criações, a civilização permite uma satisfação desse réel que é incomensurável com o "valor" de nossos ideais ou nossos bens.

Através das vias tortuosas encontradas pela pulsão em seu caminho inevitável para a satisfação, uma cultura humana se construiu passando pela estética (nas belas-artes) e sua relação com aquilo que é fundamentalmente unheimlich, quer dizer, aquilo que em nosso Eros discorda de nosso ethos ou nossa maneira de "habitar" o mundo.

 

Referências

CARVALHO, K. B. A sublimação como um destino da pulsão no tratamento psicanalítico. 2001. 149 fl. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Faculdade Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.         [ Links ]

FRANÇA, M. I. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997.         [ Links ]

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LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1979.         [ Links ]

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MANDIL, R. A. Entre ética e estética freudianas: a função do belo e do sublime n'"A ética da psicanálise", de J. Lacan. 1993. 209 fl. (Dissertação, Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1993.         [ Links ]

POMMIER, G. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.         [ Links ]

RAJCHMAN, J. Eros e verdade; Lacan, Foucault e a questão da ética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Endereço para correspondência
Rua Aimorés, 462/520 – Funcionários
30140-070 – BELO HORIZONTE/MG
E-mail: kaboca@terra.com.br

Recebido em: 04/06/2013
Aprovado em: 14/06/2013

 

 

Sobre a Autora

Kátia Botelho de Carvalho
Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL-Fórum BH). Professora Adjunto da PUC Minas.

 

 

1 Texto construído a partir do cap. 2 de minha dissertação de mestrado (CARVALHO, 2001).
2 Ver, a propósito, a excelente discussão sobre sublimação e valor cultural em MANDIL, 1993, p. 54.
3 Destaque no original.