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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.35 no.66 Belo Horizonte dez. 2013

 

ARTIGO

 

A beleza ou a vereda que conduz à sublimidade

 

The beauty or the path that leads to sublimity

 

 

Maria Helena Ricardo Libório Barbosa Mello

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema da sublimação, destino pulsional, é apresentado neste artigo, sob a forma de carta, abordando o ato de criação pela via da vacuidade, desaguando no texto místico.

Palavras-chave: Sublimação, Amor, Letra, Amor cortês, Mística.


ABSTRACT

The theme of sublimation, one of the vicissitudes of the drive, is presented in this article, under the format of a letter, approaching the creation act through vacuity, ending up in the mystic text.

Keywords: Sublimation, Love, Letter, Courtly love, Mistic.


 

 

Irmãs,

Escrevo-lhes neste dia chuvoso, à tardinha, horário em que a luz é indecisa, e por entre as árvores se pode contemplar um tom de azul pertinente à experiência.

Escrevo-lhes a partir do trabalho de uma certa ultrapassagem da dor ao sublime, do ato ou efeito de atravessar um encontro com o oco.

É claro que esse exercício é sempre na solidão, embora os companheiros textuais estejam ao nosso redor. E há textos que são absolutamente contundentes, ardentes, fulgurosos. Esses nos interrogam. Copio para vocês o que me disse, certa vez, Marguerite Duras:

O ponto onde somos atingidas pelo desejo de nosso amante é naquela cavidade da vagina que ecoa como um oco em nosso corpo. Um lugar onde o pau de nosso amante está ausente [...] O local dessa posse é o local da absoluta subjetividade [...] (DURAS, 1989, p. 37).

Oco, vacuidade em posição terceira, entre a mulher e seu amante a produzir uma destinação amorosa além do sexo: "o extrassexo" de um amor.

Procuro com presteza o artigo de Dr. Jacques Lacan (1965) em sua Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, romance escrito em 1964. Aí encontro preciosidades que atingem num só golpe o que se refere ao feminino em seu recanto de sublime. Cito Dr. Lacan:

Arrebatada. Evoca a alma e a beleza que opera. Desse sentido ao alcance da mão iremos desembaraçar-nos como for possível, com algo do símbolo.

Arrebatadora é também a imagem que nos será imposta por essa figura ferida, exilada das coisas, em quem não se ousa tocar, mas que faz de nós sua presa (LACAN, [1965] 2003, p. 198.)

É também nessa ordem de vacância que encontraremos a dissimetria da diferença sexual. É ainda nesse sítio de vazio, de extimidade e estranheza, que Dr. Freud situa a Coisa, e, a partir desse elemento da estrutura psíquica, o Dr. Lacan elaborará seu seminário de 1959-1960, A ética da psicanálise, e nele, sua preocupação com um dos destinos da pulsão: a sublimação.

Irmãs, nós psicanalistas, ainda estamos atordoados com aquilo de que se trata a economia do gozo sublimatório.

Irmãs, machos e fêmeas, neste momento da escrita me encontro com o oco, o vazio, com essa tormenta em que a pena não desliza... Mancam as palavras, e a letra resiste a se desenhar.

A letra, grafia que desmente a "saída feliz" dos escritores, no dizer do Dr. Freud. Entretanto, num ponto preciso é preciso grafar por amor.

A letra, esse objeto que carece de valor de mercado, esse "inutensílio" que pulsa num ato de criação perante o intolerável do que está em Causa no vivente.

Recorro ao Dr. Lacan, esse homem que me encanta por colocar os seus escritos na posição do não-todo fálico e nos confiar o que ora lhes transcrevo:

Essa função [da letra] é incompatível com a manutenção da imagem narcísica em que os amantes se empenham em conter seu enamoramento [...] (LACAN, [1965] 2003, p. 202).

Qual função terá a letra no destino sublimatório? "Que a prática da letra converge com o uso do inconsciente" [...] (LACAN, [1965] 2003, p. 200).

A prática da letra exige lavrar com esmero e inquietação o oco, o vazio, o estranho, pois se trata não do encontro apaziguador da significação, mas de manter com exatidão o que é o significante, isto é, o que não significa nada. Estamos na ausência de um porto seguro onde possamos atracar nossa deriva. E a palavra poética está em nossa convivência, pois meus olhos se deitam num diálogo llansoliano que transcrevo para vocês:

[...] Há um momento em que a significação dispara
— a vida não vai para lado nenhum, mas eu quero ir.
— Então, fazes um traço.
— Sim. O texto são as marcas indeléveis e imperceptíveis de que falaste sobre o amor [...]
(LLANSOL, 1998, p. 97).

Desculpem... vou me ausentar. Meu olhar se deita numa massa verde que tem por moldura a janela em frente à mesa que escrevo. Silêncio.

 

2ª chuva

Canto gregoriano.

Meu Deus, de onde virá a Misericórdia, de onde virá a Bondade, de onde virá a Beleza? Estamos no campo da estranheza em que não é possível nenhum ufanismo.

Pergunta Lúcia Castello Branco:

É possível pensar na sublimação como uma forma de resistência? [...] à resistência como uma reação ao peso de viver, como diria Calvino (BRANCO, 2003, p. 36).

Supomos aí uma saída misericordiosa, na qual o sujeito está implicado com seu corpo. Posto-lhes, neste texto epistolar, o que o Dr. Lacan, em seu Seminário 7, nos dá a pensar sobre o ato de criação:

A noção de criação deve ser promovida agora por nós, com o que ela comporta, um saber da criatura e do criador, pois ela é central não apenas em nosso tema, o motivo da sublimação, mas no da ética no sentido mais amplo (LACAN, 1988, p. 150).

É para além da ingenuidade que o Dr. Lacan trabalha a vacuidade em que ela mesma objeto é elevada à dignidade da Coisa. É da queda do eu todo fálico, acontecimento dramático no qual o sujeito está mergulhado na dor sem sofrimento que é possível fazer o objeto falar. Elevar ao sublime é rastrear e se recobrir da Beleza elidida dos nossos romances narcísicos. E disso, nós da linhagem do além da celebração fálica bem o sabemos.

Fazer o salto de habitar a experiência de ausência, só às vezes possível:

[...] dar o passo de ir além do espelho, circunscrever o vazio da estranheza de das Ding, despojá-lo de qualquer gozo sabido e, assim, apelar para um Tu em cuja palavra o sujeito confia e a quem dá sua fé [...]. (JULIEN, 1996, p. 112)

Dar o passo. E o que é o passo senão o intervalo entre um pé que fica no ar enquanto o outro não se assentou no chão?

Nesse espaço em que se está no ar, na indecisão, é que podemos colocar a morte na vida. Aí ainda o Dr. Lacan, que no referido Seminário 7, nos mostra com dedo:

[...] a função do belo sendo precisamente a de nos indicar o lugar da relação do homem com sua própria morte, e de nos indicá-lo somente num resplandecimento (LACAN, 1988, p. 354).

 

3ª chuva

Minhas caras irmãs de linhagem, retomo a noção de "inutensílio" num rítmo, isto é, numa organização do movimento dentro do tempo, com volta periódica de tempos fortes e tempos fracos, ao modo do canto gregoriano, cantando nos séculos X e XI como expressão de solenidade e aflição.

Tal objeto, o canto, a mim me parece bem representar o corte com a filosofia do utilitarismo, pois que o objeto em questão, na ética da psicanálise, não se dispõe ao valor de troca, mas ao valor que cada um inventa como saída, "que não comporta exatamente a felicidade", com voltas periódicas de tempos fortes e fracos, expressando solenemente a aflição da perda daquele objeto especular que rompeu a tela da fantasia. A dramaticidade de tal acontecimento exige criação na agudeza estética característica do "inutensílio".

É por essa perspectiva que tentarei introduzir a importância do "amor cortês", tão caro à ética da psicanálise. Cito Dr. Lacan:

O que deve ser justificado não são simplesmente os benefícios secundários que os indivíduos podem extrair de suas produções, mas a possibilidade original de uma função poética num consenso social em estado de estrutura [...] E isso nos interessa da maneira mais direta, é que o seu pivô era o quê? Uma erótica. (LACAN, 1988, p. 180)

Não quero lhes cansar discorrendo sobre o que já está tratado por outros estudiosos, os quais foram minhas fontes textuais. Não obstante, atentemos para essa erótica cujo Amor só pode ser cantando.

O canto trovadoresco, dirigido à DAMA, a toma objeto feminino inteiramente dessexualizado.

E quem eram as Damas?

[...] as Damas. Nada de donzelas, pois essas não possuíam ainda o poder, nada de ingenuidades, porque os trovadores endereçavam seus cantares a mulheres casadas (impossíveis). Mais do que impossível e mais do que casada, A Mulher.

O amor seria verbo mais-que-perfeito. A mulher seria a domina. E mais, "os poetas ainda desfeminizavam o objeto de suas homenagens, adotando o termo conhecido midons: mi dominus = meu senhor"
(ANDRADE, 2006, p. 253).

Na estrutura dessa erótica interessam

[...] as normas nas quais são reguladas as trocas entre os parceiros desse rito singular — de recompensa, clemência (misericórdia), graça — Gnade — [...] felicidade (LACAN, 1986, p. 182).

A ética da psicanálise trata de uma outra vertente que, pela via da lógica, o Dr. Lacan nos ensina a passagem pelo não-todo, isto é, pelo não-todo fálico do discurso: posição do feminino.

Quando considera a estrutura erótica do "amor cortês", o Dr. Lacan faz um giro de pensamento ao apreciar a letra mística. É na letra ilegível do feminino que se deixará arrebatar pela sublimidade do abandono a um AMOR que jamais fará UM fusional.

 

4ª chuva

Levantei a cabeça. Olhei para fora. Deparei-me com aquela massa verde de vários tons emoldurada pela janela em frente à mesa em que lhes escrevo. "Chovia no texto", para tomar uma expressão de Llansol.

Chovia, e um perfume de fertilidade exalava da terra.

Presenteio-lhes com uma escrita chamada "mosaico de citações", cenas textuais que me penetraram e que compartilho aqui e alhures.

Eu penso que a leitura cria uma relação extremamente íntima com alguém. Alguém que lê profundamente é penetrada pelo que lê (LLANSOL, 2011, p. 57).

Caras irmãs de linhagem, machos e fêmeas já despidas da crença de que haja relação sexual. Dirijo-me a vocês "por graça da textualidade":

Mas o que nos pode dar a textualidade que a narratividade já não nos dá (e, a bem dizer, nunca nos deu?).
A textualidade pode dar-nos acesso ao dom poético, de que o exemplo longínquo foi a prática mística. [...] Eu afirmei que nós somos criados, longe, a distância de nós mesmos; a textualidade é a geografia dessa criação improvável e imprevisível; a textualidade tem por órgão a imaginação criadora, sustentada por uma função de pujança — o vaivém da intensidade. Ela permite-nos, a cada um por sua conta, risco e alegria — abordar a força, o real que há de vir ao nosso corpo de afectos (LLANSOL, Lisboaleipzig 1, p. 120-121. apud BRANCO, 2000, p. 67-68).

E por esse encontro textual fui conduzida a Hadewijch d'Anvers e a Teresa Martin. Ambas místicas; a primeira, uma beguina, e a segunda, uma das doutoras da Igreja. Ambas da linhagem da textualidade que permite o gozo do bem dizer bem ao estilo do amor cortês: amor refinado e livre.

O Dr. Lacan faz referências à mística em seu Seminário 20, à mística como elevação à sublimidade do objeto Amor. E no Seminário 7 nos faz vigilantes para

[...] o que a criação da poesia cortês (e da mística, acrescento) tende a fazer deve ser situado no lugar da Coisa. [...] A criação da poesia consiste em colocar, segundo o modo de sublimação própria à arte, um objeto que eu chamaria de enlouquecedor, um parceiro desumano (LACAN, 1988, p. 187).

Ora trago-lhes o testemunho do vivido de uma experiência alçada na poesia que, por graça da textualidade, Hadewijch cantou sob o nome do "sem porquê", do "sem nada sabido":

A multidão de razões
que me fazem preferir-vos a tudo
escapa-me, Senhor, quando, na nudez,
volto-me apenas para vós,
amando-vos sem por quê",
a vós mesmo e por vós mesmo
(HADEWIJCH apud JULIEN, 1996, p. 157).

Segundo Julien, "o "sem por quê" é correlato dessa nudez que é vacância interior". Permitam-me citar o Dr. Lacan referendado no Mais, ainda esse gozo mais além:

Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta — isso ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece, Isso não acontece a elas todas (LACAN, 1982, p. 100).

Mas a algumas acontece como está testemunhado, tornado manifesto no Ardente texto Joshua, de Maria Gabriela Llansol:

[...] E morreu, Teresa Martin, beguina, filha de Hadewijch de Antuérpia, doutora da Igreja. (p. 8)
[...] O lápis corre rápido com o que tem a dizer ao espaço vazio que lá dentro guarda o segredo do humano escreve rápido, pede-lhe o ar
bem-aventurados os alucinados, porque deles será o real
bem-aventurados os desiludidos, porque neles o pensamento se fará humano
bem-aventurados os corpos que morrem, porque deles será a sensualidade do invisível
bem-aventurados os desesperados, porque deles será a restante esperança
bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abres a geografia dos mundos
bem-aventurados sejas tu, ó Terra, porque tua será a explosão que levará o vivo a todo o Universo,
Imóvel, fico-vos a olhar, Teresa, ou Hadewijch, mas vós não vos inquietais, [...]
(LLANSOL 1998, p. 146-147).

Irmãs, machos e fêmeas da linhagem do oco,

saúdo a todos vocês; bem-aventuradas sejamos nós porque, na ignorância, mantemos a Misericórdia, a Bondade e a Beleza em algum horizonte fugido.

Saudações.

 

Referências

ANDRADE, V. M. B. Luz Preferida: a pulsão da escrita em Maria Gabriela Llansol e Thérèse de Lisieux. Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras - Literatura Comparada FALE-UFMG. Belo Horizonte, 2006.         [ Links ]

BRANCO, L. C. A branca dor da escrita: três tempos com Emily Dickinson. Rio de Janeiro: 7 letras. Belo Horizonte/MG: UFMG. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2003.         [ Links ]

BRANCO, L. C. Os absolutamente sós - Llansol - A letra - Lacan. Belo Horizonte: Autêntica; FALE/UFMG, 2000.         [ Links ]

DURAS, M. A vida material. Rio de Janeiro: Globo, 1989.         [ Links ]

DURAS, M. O deslumbramento de Lol V. Stein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.         [ Links ]

IANINI, V. P. A poesia do canto gregoriano. In: O divino ofício dos poetas. São Paulo: Loyola, 2001.         [ Links ]

JULIEN, P. O estranho gozo do próximo: ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.         [ Links ]

LACAN, J. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein (1965). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 198-205.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1982.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 1986.         [ Links ]

LLANSOL, M. G. Ardente texto Joshua. Lisboa: Relógio D'Água Editores e Maria Gabriela Llansol. Setembro de 1998.         [ Links ]

LLANSOL, M. G. Entrevistas/Maria Gabriela Llansol. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.         [ Links ]

LLANSOL, M. G. Um falcão no punho. Lisboa: Relógio D'Água Editores e Maria Gabriela Llansol, 1998.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência:
Av. Getúlio Vargas, 54/401 – Funcionários
30112-020 – BELO HORIZONTE/MG

Recebido em: 12/04/2013
Aprovado em: 17/04/2013

 

 

Sobre a Autora

Maria Helena Libório Barbosa Mello
Filósofa graduada pela PUC Salvador. Psicóloga graduada pela PUC Minas. Especialista em Filosofia Contemporânea pela UFMG. Membro sócio do CPMG.