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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte June 2014

 

ARTIGO

 

É possível ser prostituta e ser feliz?

 

Is it possible to be a prostitute and be happy?

 

 

Anna Barbara de Freitas Carneiro

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tecemos neste artigo algumas considerações sobre ser prostituta e ser feliz, levando em consideração o aporte teórico da psicanálise, bem como a contribuição da literatura e do cinema, lembrando a contribuição da arte para interpretar a coisa humana.

Palavras-chave: Prostituta, Felicidade, Psicanálise, Freud, Lacan, Literatura.


ABSTRACT

We conjecture about being a prostitute and being happy, taking into account the theoretical approach of psychoanalysis as well as myths, literature and cinema, remembering the contribution of art to interpret the human thing.

Keywords: Prostitute, Happiness, Psychoanalysis, Freud, Lacan, Literature.


 

 

O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.
FERREIRA GULLAR.
Poesia: não coisa

 

Uma campanha do Ministério da Saúde brasileiro divulgou cartazes que diziam: “Sou prostituta e sou feliz”, no aparente desejo de valorização de uma categoria de trabalhadores: os profissionais do sexo. Essa campanha causou reação de certos setores, e foi recolhida. No presente trabalho, refletimos sobre a questão: é possível ser prostituta e ser feliz?

E o que seria “ser feli”? No dicionário Aurélio (1999), ser feliz é “qualidade de se ter felicidade, de ser ditoso, afortunado, venturoso, contente, alegre, satisfeito”. Podemos tentar caracterizar melhor essa definição, acrescentando que, para ser feliz, são necessárias algumas condições. As primeiras seriam o desejo do sujeito, sua livre escolha e sua autonomia, isto é, a capacidade de nomear a si mesmo.

Poder escolher um caminho e nele ser feliz nos parece bem diferente da situação em que o sujeito, por falta de opção, é levado a um caminho alheio a sua vontade. Portanto, na nossa visão, para que o sujeito seja feliz em uma profissão, é necessário que ela seja de sua escolha, que não seja considerada uma falta de opção melhor ou mais viável, ou ainda que não seja imposta por outrem.

Por outro lado, Freud (1937) diz que, após uma análise bem-sucedida, onde se trabalhou o sofrimento neurótico, o sujeito pode assumir uma “infelicidade comum”. O que quer dizer essa expressão? Pode ser que Freud se refira àquela insatisfação do sujeito castrado, que sabe do seu vazio e da impossibilidade de preenchê-lo totalmente. Ele nos diz do “rochedo da castração”, a seu ver intransponível, além do qual estaria o inalcançável estado de se estar completamente feliz e satisfeito.

Em 1958 Lacan disse algo surpreendente: “a psicanálise não se recusa a prometer felicidade” (SOLER, 1998, p. 46). Ele disse ainda em 1975: “uma análise não deve ser levada longe demais. Quando o analisante pensa que ele está feliz de viver, é o bastante”. Nas palavras de Lacan:

No pienso que se pueda decir realmente que los neuróticos son enfermos mentales. Los neuróticos son lo que son la mayoría. Felizmente no son psicóticos. [...] A veces les damos el sentimiento de que son normales.

[...]

Puedo solamente testimoniar de lo que mi práctica me suministra. Un análisis no tiene que ser llevado demasiado lejos. Cuando el analizante piensa que es feliz de vivir, es suficiente (LACAN, 1975)

A respeito do final dessa fala de Lacan, nos diz E. Mussel (comunicação pessoal):

Penso que não se trata de alcançar nenhuma felicidade moral ou filosoficamente determinada, pois “felicidade não é bem que se mereça”, mas de se obter na análise um remanejo do analisando com o seu gozo, que ele encontre um certo acordo com o seu modo de gozar, ou dizendo de outro modo, talvez Lacan tenha dito que em uma análise a felicidade é suportar o inesperado (o real).

E por que fazer essa relação entre o processo psicanalítico bem-sucedido e o ser/estar feliz? Primeiro porque Freud nos remete à capacidade de trabalhar como um ingrediente da “normalidade” e nos fala das neuroses como causa de sofrimento mais ou menos intenso. Ademais, porque frente aos relatos de prostitutas, suspeitamos que em muitos casos de escolha dessa profissão pode haver uma motivação neurótica, caso em que o sujeito se beneficiaria da psicanálise ou de outras formas de abordar os possíveis traumas subjacentes às neuroses e suas escolhas.

 

Um pouco de contexto histórico

Na Grécia antiga, a prostituição era um meio de obtenção de rendimento igual a qualquer outro, e uma prática controlada pelo estado. As prostitutas deviam pagar impostos e se vestir de forma a serem identificadas como tal. Entre as várias categorias, havia as hetairas, de grande relevância social, conhecidas pela inteligência, pela esperteza na administração dos bens e pela competência nas articulações políticas. A prostituição era uma profissão tão rentável que algumas mães incentivavam as filhas a seguir essa carreira. Na cultura judaica, por sua vez, a prostituição era severamente punida; a lei mosaica previa sanções severas aos praticantes, inclusive com pena de morte. A moral cristã sempre condenou tal prática, que também era tida como a responsável pela disseminação de doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis (CECCARELLI, 2013).

Passemos agora à definição atual de prostituição na atualidade de nossa civilização impregnada da moral judaico-cristã. Prostituição é ato ou efeito de prostituir, de fazer comércio do “amor sexual”. Tem ainda acepções de vida desregrada, profanação, aviltamento. Portanto, entendimentos negativos. Para prostituta, no feminino, o dicionário remete a meretriz, que é “mulher que pratica o ato sexual por dinheiro, mulher pública”. Segue-se a essa definição uma alentada lista de sinônimos, dos quais gostaríamos de destacar: “decaída, puta, mulher à toa, mulher da vida, mulher do pala aberto, mulher perdida, piranha, paloma, perua, cadela, boi, égua, loba, mariposa, andorinha, dadeira, dama, moça do fado, fadista” (AURÉLIO, 1999).

Chama-nos a atenção também o número de denominações referentes a animais, desde a famosa piranha, que é caracterizada por sua voracidade, bem como diversas aves (paloma, pomba; perua, que hoje se usa muito para mulher que se enfeita demasiadamente, com mau gosto; andorinha, talvez pelo aparente caráter errático de sua vida; inseto, a mariposa, que não tem pouso certo; e boi, que tem um caráter passivo, com o qual se pode fazer tudo). A loba e a cadela, próximas filogeneticamente, são evidentemente receptivas a vários machos quando no cio, inexistindo a fidelidade. Há conexões com a procriação e o cuidado com os filhotes, como a loba de Roma, que nutriu os gêmeos Remo e Rômulo (frutos de um estupro), salvando-os da morte certa pelo desamparo inerente à condição de filhote humano, que demanda longo tempo de cuidados até que consiga ser independente. Especulamos se a loba de Roma não seria uma prostituta.

Muitas denominações chamam atenção pela evidente conotação pejorativa, que denigrem a mulher: “decaída”, “mulher à toa”, “mulher do pala aberto” (pala aqui seria peça de vestimenta que resguarda a saia), “mulher errada”, “mulher perdida”. A decaída caiu de um lugar, de onde caiu? Da posição de santa, de mãe, de virgem, de donzela, “inocente”. Nestas, a luxúria não tem lugar; são posições valorizadas na tradição religiosa e na literatura cortês, por exemplo, onde o sexo é tabu e onde se cria a dicotomia entre a santa e a puta. Essa divisão remete aos neuróticos obsessivos, para os quais se é ou uma, ou outra: ou se é a mãe dos filhos e rainha do lar, sem sexo, santa, ou se é a prostituta, a “mulher do pala aberto”, sem barreiras para o sexo. Barreira representada nessa denominação pela capa das honoráveis matronas romanas (pala), o pala que esconde as formas e bloqueia o desejo. Mulher sem pala é aquela com a qual se pode realizar as fantasias escondidas, reprimidas pela boa sociedade, de práticas que não se podem demandar às “esposas”. Esposas sendo aquelas que o homem toma sob seu cuidado, assumindo responsabilidade por ela, inclusive a de coibir seu sexo, pois é a mãe dos seus filhos, que ele cuida para que sejam realmente seus, por não desejar que filhos de outros homens herdem suas propriedades.

 

Um outro olhar sobre a prostituição

São diversas as contribuições da literatura no assunto da prostituição, conseguindo vê-la em seus mais variados ângulos, na singularidade dos sujeitos. Por exemplo, Jorge Amado tratou do assunto em Tieta do agreste e em Tereza Batista cansada de guerra, na década de 1970. Émile Zola em Naná e Alexandre Dumas em A dama das camélias também abordam o assunto ainda no século XIX; o primeiro de forma realista, enquanto o segundo de forma mais romântica, mas ambos deixando a sensação de que a perdição da prostituta acontece quando ela se apaixona.

Em um livro relativamente recente, Bruna Surfistinha é o nome de guerra de uma jovem prostituta que em 2005 começou a registrar seu cotidiano em um blog na internet. Com o sucesso do blog, ela publicou dois livros que alcançaram grande sucesso. Foram ainda lançados A agenda de Virgínia, assinado pela ex-prostituta espanhola Alejandra Duque, e O diário de Marise, de Vanessa Oliveira, uma ex-garota de programa brasileira. De certa forma, os livros de Bruna Surfistinha quebraram alguns estereótipos sobre a prostituição. Moça de classe média, sua realidade não está tão distante da de seus leitores, o que não ocorre com os relatos de prostituição feitos por aquelas que ali chegaram por pressão direta da necessidade material. Segundo a autora, foi o trauma decorrente da descoberta de sua adoção que a levou para a prostituição. Levando em conta tal explicação, sua prostituição decorreria de graves problemas de identidade, já sinalizados por sintomas anteriores apresentados por ela (obesidade, cleptomania, ideias de suicídio e uso de drogas). Isso estabeleceria a conotação sintomática de sua conduta rumo à prostituição, o que contradiz sua tentativa de apresentar sua escolha profissional como um trabalho comum. Talvez possamos relacionar o fato de escrever de Bruna Surfistinha com as construções teóricas de Lacan sobre o escritor irlandês James Joyce (1882-1941), em que afirma que, para o autor de Ulisses, a escrita ocupou o lugar vacante da função paterna, evitando a eclosão de uma psicose. Da mesma forma, é possível que Bruna Surfistinha tenha usado a capacidade de escrever para organizar e simbolizar o caos psíquico, e assim escapar da loucura. A repercussão do fenômeno Bruna Surfistinha suscita ideias sobre a pornografia e a prostituição, sobre a escrita como expressão e simbolização organizadoras do psiquismo (TELLES, 2007).

E por que a prostituição? A prostituição como um sintoma? Ao mostrar uma prostituta que trilha o caminho de erros (o sintoma) e é redimida pelo casamento, a autora reafirma uma visão convencional e moralista da prostituição, acomodada aos estereótipos do imaginário coletivo, possivelmente essa uma das razões de seu grande sucesso comercial (TELLES, 2007). Por outro lado, a prostituta resgatada pelo ex-cliente é uma das modalidades de escolha de objeto por parte dos homens, como Freud descreveu em 1910. Determinados homens fazem de prostitutas seu objeto de desejo amoroso porque talvez as equiparem inconscientemente às suas mães: a prostituta é uma “mulher de outros homens”, assim como a mãe é a mulher “do” outro homem, o pai, o Outro masculino.

 

A relação sexual impossível e as fantasias

Um dos aforismos de Lacan (1973) diz que a relação sexual não existe. Existe o encontro de corpos, mas não a fusão de corpos e almas preconizada pelo romantismo. Na verdade, cada um tem relações com a própria fantasia. Em vez da idealizada fusão de dois sujeitos (impossível!), na melhor das hipóteses ocorre o “balé das fantasias”. Nos típicos obsessivo e histérica, ele pensa em outra mulher e ela pensa nele com uma outra, a outra mulher misteriosa, aquela do “o que ela tem que eu não tenho?” e tenta alcançá-la através dessa fantasia sem fim.

Sem as fantasias não há sexo. E na prostituição se supõe que estaria em jogo apenas a fantasia do pagante; o outro seria um corpo vazio de conteúdo, uma commodity, um objeto. Mas quando é dito que alguém pode ser feliz nessa profissão, isso deixa de ser assim: que fantasias estariam realizando as prostitutas que dizem estar satisfeitas com seu trabalho? Então, a clientela, que contrata uma marionete para encenar suas fantasias estaria à mercê de profissionais que podem também estar satisfazendo as delas? Isso seria inadmissível! Queimem-se os cartazes da campanha do Ministério da Saúde brasileiro. A campanha foi suspensa, e o diretor foi exonerado. De fato, a profissão mais antiga do mundo sempre foi um enigma e um judas a ser malhado.

Na troca de favores sexuais, que caracteriza a prostituição, elementos sentimentais, como o afeto, devem estar ausentes em pelo menos um dos protagonistas. Nessa profissão, tida como “a mais antiga do mundo”, na maioria das vezes troca-se sexo por dinheiro. Mas pode-se permutar relações sexuais por favores profissionais, informações, bens materiais e muitas outras coisas (CECCARELLI, 2008).

Contardo Calligaris (2013) nos alerta que, se um homem ama uma mulher que por acaso é prostituta, não há problema nisso. Mas se ele ama essa mulher “por ela ser prostituta”, então nesse caso seria importante o sujeito conhecer a fantasia que sustenta seu amor. E ele pergunta: qual é em geral a fantasia em questão? Um dia o sujeito não resistirá à fantasia que o fez escolher a prostituta: ele a humilhará (e se humilhará), lembrando, que ela vem da sarjeta e que ele poderia jogá-la de volta para lá. Em caso recente divulgado pela mídia, o marido ameaçou: “Vou te mandar de volta para o lixo de onde você veio”. Ele também declarou que, se a mulher quisesse se separar, a filha ficaria com ele, pois será que um juiz daria a guarda da menina a uma prostituta?

Em regra, segundo Calligaris, o desejo de um homem que se apaixona por prostitutas (e planeja “redimi-las”) é sustentado por uma fantasia inconsciente de vingança, contra a mulher e contra ele mesmo, por ter se deixado seduzir. Ele nos diz sobre a sexualidade masculina, que pode ser patologicamente neurótica: eles olham para o sexo pelo buraco da fechadura do quarto dos pais. Nessa ótica infantil, não se salva ninguém: é “puta” qualquer mulher que vai com os outros, ou seja, todas as mulheres são “putas”, inclusive a mãe, porque ela vai com o pai, ou outra figura masculina, enquanto, para o filho, ela só tem carinho mais ou menos recalcado. Para o homem de calça curta, ajoelhado diante da fechadura, a “puta” é um paradoxo: vergonhosamente acessível a todos, salvo a ele. Talvez seja a partir dessa perspectiva infantil que nascem a misoginia básica, o gosto da violência contra as prostitutas, a ideia de que todas as mulheres, se não são prostitutas, sonham com isso, bem como uma preferência amorosa quase exclusiva por meretrizes por parte de alguns homens. Mas essas prostitutas não podem ser felizes: trata-se de punir a mulher por ser de todos! Quando um desses homens ama uma prostituta e se casa com ela, seu ressentimento pode se calar em nome do amor, mas só por um tempo: ainda ele vai puni-la por ter sido e ser para sempre a “puta” que vai com os outros.

Ceccarelli (2008) nos chama a atenção para fato curioso: a prostituição se adapta às novas demandas do mercado, a despeito das mudanças de costumes e mesmo da chamada revolução sexual que, argumenta-se, teria reduzido os tabus sexuais. Ele questiona por que os homens de hoje, mesmo vivendo uma situação afetivo-sexual satisfatória com uma parceira fixa, ainda procuram prostitutas e que tipo de fantasia buscam viver com elas. A mesma coisa com os jovens que, graças à liberação sexual, poderiam iniciar a vida sexual com colegas ou namoradas e, apesar disso, continuam a buscar “profissionais do sexo” para a iniciação sexual. O autor diz que não se pode dar uma resposta única e definitiva sobre o lugar que a prostituta ocupa na economia psíquica dos prazeres da cultura ocidental. Porém, justamente por estar à margem da sociedade, ela pode encarnar a possibilidade de uma sexualidade sem entraves, uma liberação sexual.

Se, por um lado, a prostituição traz a marca de um estigma relacionado a comportamentos e práticas sexuais marginais, por outro lado, é justamente dessa marginalidade que ela tira sua força, segundo Ceccarelli (2008). O território de prazeres ilegítimos, que conta com a cumplicidade entre aqueles que o frequentam, permite ao homem viver fantasias sexuais inconfessáveis (grifo meu), sem se sentir ameaçado em sua identidade social. Além disso, os eventuais e inevitáveis fracassos sexuais são igualmente preservados nesse espaço. Há também aqueles para quem o pagar representa uma forma de afirmação de poder e virilidade, em particular quando a performance sexual deixa a desejar. Evidentemente, a profissional do sexo não existe sem o cliente. Entre eles há um movimento mútuo e complementar de oferta e demanda: é por haver, de ambos os lados, desejos em busca de satisfação e promessa de satisfazê-los que a prostituição sempre existiu e talvez continue existindo, de uma forma ou de outra, mesmo nos lugares em que sua prática seja oficialmente proibida.

 

As fantasias das prostitutas: prostituta goza?

Em entrevista sobre a entrega do corpo feminino, Eliana Calligaris (2013) diz que muitos homens comentam que, ao tocar numa mulher, eles se encostam num corpo sem vida, que a mulher na verdade está ausente. A entrega seria estar realmente presente numa cena sexual e usufruir desse momento. Do ponto de vista psicanalítico, a menina, em um período de sua vida, sente desejo pelo pai, mas aprende que é preciso reprimi-lo e buscar outro homem, revitalizando esse desejo precisa, mais tarde, na relação com outro homem. A fantasia da prostituição permitiria que a mulher desenvolva sua sexualidade sem as amarras do pai e se entregue à relação com um outro objeto de desejo, geralmente um homem.

Algumas mulheres apresentam inibições e não conseguem se entregar ao ato sexual, e isso pode se dever à questão cultural e religiosa de que a mulher deve ter uma capacidade de retração sexual superior à do homem. Muitas mulheres encontram barreiras em dividir algumas de suas fantasias sexuais com o homem que amam. Às vezes, elas temem o que o parceiro vá pensar delas e se ele vai continuar amando-a como esposa e mãe de seus filhos.

Para a mulher poder superar o conflito entre ter a sexualidade de uma prostituta e a de uma “santa”, há três alternativas, segundo Eliana Calligaris. Se ela estabelecer, para outro homem, o mesmo valor de desejo que atribuiu ao pai, terá de ser só uma “santa” – e não se entregar sexualmente a ele, pois a última coisa que quer perder é o amor. Mas a mulher pode também entender o contrário. Quando deve superar o desejo pelo pai, sente-se traída e pensa o seguinte: quero todos os homens no lugar de um. Então, ela escolhe a outra possibilidade: ser prostituta. Não somente a prostituição real, mas a entrega a homens desconhecidos, como aparentemente o caso de Bruna Surfistinha. Na terceira alternativa, quando a mulher lida bem com essa questão edípica, ela não precisa escolher um dos dois papéis. Pode amar e ao mesmo tempo se entregar totalmente na relação sexual, condensando em uma coexistência harmoniosa os papéis da santa e da puta.

A Bela da tarde, personagem do filme de Buñuel se prostitui porque não consegue se entregar ao marido e tem um prazer em sua entrega, realizando seus desejos através dos clientes. Esse é o caso do cliente oriental que mostra uma caixinha, e somente ela aceita atendê-lo, não sabemos ao certo qual foi a demanda misteriosa, o autor não nos diz. Somente a vemos de bruços na cama, cansada (e feliz?) depois do possível coito, do qual não temos nenhuma participação como voyeurs cinematográficos. Essa divisão entre a prostituta e a santa ainda está muito presente no imaginário dos homens: a Bela da tarde era santa para o marido e puta em certas horas de certos dias.

Nesse contexto, admite-se que a relação amorosa entre um homem e uma mulher poderia ser perniciosa porque produz entre duas pessoas uma intimidade que jamais deveria acontecer, o desejo é inibido, tem vergonha de existir. A prostituta é aquela que não pergunta de onde o homem vem. Para ela ele é um desconhecido; ela não o identifica, ele é anônimo, e ela não deseja (CALLIGARIS, E., 2013).

Freud (1905) nos diz que nosso interesse, desde criança, é movido pela curiosidade sexual. Sexo não é apenas a cópula, mas tudo o que dá prazer e anima o corpo. Eliane Calligaris (2013) nos diz que, por mais que tenhamos derrubado tabus, ainda somos curiosos, pois o sexo organiza a vida emocional do sujeito. A vida das prostitutas continua sendo misteriosa para quem não exerce essa profissão, atraindo a curiosidade de muitos pesquisadores. As prostitutas têm uma representação social importante, pois sabem sobre o maior segredo que existe no mundo: o segredo do sexo. Daí a expressão “puta velha”, aquela pessoa, homem ou mulher, que sabe das coisas, que “não mete a mão na cumbuca”, que tem uma certa sabedoria.

 

Édipo, pulsão, incesto

Em seu artigo Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (contribuições à psicologia do amor I) Freud (1910) nos diz de algumas condições para a escolha objetal que ele observou na clínica ou fora dela. O primeiro tipo de condição é a que Freud denominou de “um terceiro prejudicado”, quer dizer, o homem escolhe uma mulher que não está livre, e sim ligada a um marido, noivo ou amante. Uma mulher livre, sem ligação com homem, não serve. A segunda condição seria o que Freud chamou de “amor à prostituta”. Ele nos diz que, no primeiro caso, trata-se do desejo do homem de competir com aquele a quem a mulher está ligada. O segundo caso se liga a um desejo de sentir ciúme, não do parceiro regular da mulher, mas de algum novo que ela venha a ter. Freud aponta dois aspectos do comportamento desse tipo de amante em relação à mulher amada: quanto mais ela se aproxima, no julgamento moral, a uma prostituta, maior valor ela tem. Mesmo que esse tipo de homem não fique com uma determinada mulher, suas ligações amorosas vão ter sempre a característica desse tipo de escolha: dar maior valor a uma mulher sexualmente promíscua. Um outro ponto importante desse mesmo tipo de escolha é a ideia que esse homem faz de que só ele pode salvá-la daquela vida promíscua e colocá-la no caminho da virtude.

Freud analisa que a razão para os dois tipos de escolha é uma só: fixação na relação com a mãe na infância. Na relação amorosa normal também haveria uma base oriunda dessa relação com a mãe, mas nos casos considerados aqui a fixação é bem mais longa e ultrapassa o período da puberdade. Como nesse período as fantasias edípicas voltam a se tornar fortes, assim como há novo recrudescimento da atividade masturbatória, o pai é sentido novamente como oponente, e a mãe se torna um objeto de amor inigualável, que vai exigir sempre novas figuras substitutas, daí a compulsão de cair sempre no mesmo tipo de escolha.

Por outro lado, a condição de a amada ser uma mulher promíscua vem da ideia inconsciente de que a mãe era “santa”, não praticava sexo. Na puberdade, essa ideia tende a desaparecer, e a diferença entre a mãe e a prostituta também. A ênfase recai agora sobre as traições: estas precisam ser vividas sempre como se fosse a primeira vez, razão por que este tipo de homem sente ciúme dos parceiros que vão aparecendo e não do parceiro fixo. A fantasia de salvar a mulher de descer mais na escala moral, de “resgatá-la”, Freud atribui à identificação com o pai, que salva a mãe, isto é, gera um filho com ela.

Continuando na série de escritos sobre a psicologia do amor Freud (1912) apresenta sua segunda parte com o título Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (contribuições à psicologia do amor II). O autor examina os destinos da corrente terna proveniente da infância e da corrente sensual surgida na puberdade e impedida na satisfação pela barreira do incesto, onde o sujeito passa a buscar objetos sensuais estranhos aos da família. Pode ocorrer uma dicotomia entre as duas correntes quando há fixação devido à frustração real e à carga erótica dos objetos. A corrente terna fica no nível inconsciente ligada à libido e reservada para o “sagrado”: o indivíduo fica impedido de desejar quem ama. A libido inconsciente fortifica a fixação nos objetos incestuosos da infância, e a corrente sensual, no nível consciente, fica reservada para o “carnal”, o terreno – o sujeito fica impedido de amar quem ele deseja. Há então um aviltamento do objeto sexual, já que só com o amor ele poderia ser valorizado. A corrente sensual pode se manifestar livremente, inclusive em atividades perversas. A não satisfação dessa corrente sensual é sentida como perda intensa de prazer. Os objetos sexuais desses indivíduos não devem lembrar os objetos incestuosos proscritos (mãe, irmã).

Mas Freud afirma que esse modo de sentir a respeito da mulher não está limitado só a alguns homens, e sim pode ser considerado um mal da cultura. O homem se comporta sexualmente cheio de inibição com a própria mulher, mas exerce plena capacidade sexual com um objeto que ele vê como rebaixado (a amante, a prostituta, a mulher de programa). Apesar de já ter se passado mais de cem anos desde que Freud escreveu seus artigos, essa dicotomia continua a ser verdadeira para muitos homens.

E com a mulher, o que aconteceria? Com a mulher não ocorreria o rebaixamento do objeto sexual. O longo período de abstinência sexual no tempo de Freud e o longo período da sensualidade na fantasia teriam para ela uma outra consequência. Ela não consegue mais desmanchar a ligação da atividade sensual com a interdição e se mostrava então psiquicamente impotente, isto é, frígida, quando essa atividade finalmente lhe era permitida.

Analisando os tempos de hoje e a prostituição em grande escala e em diversos níveis sociais, podemos considerar que as mulheres podem ter acesso à vida sexual muito cedo, e tão mais cedo quanto mais baixo na escala socioeconômica. Em classes menos favorecidas, é comum o abuso sexual de meninas por adultos a elas relacionados. Não tendo escolaridade suficiente para uma boa renda, a jovem pode ser levada à prostituição, havendo toda uma rede de aliciamento e tráfico de escravas sexuais. Dificilmente elas podem ser felizes, por lhes faltar um ingrediente essencial: a autonomia. Mas e aquelas de classes mais altas, de nível universitário, que querem engordar a mesada da família com uma renda extra e se prostituem como prostitutas de luxo, garotas de programa, escorts, etc.?

Apesar de, em muitos aspectos, a relação com os clientes, chamados em alguns locais de “amigos” (SALES, 2013) parecer mimetizar a relação com os maridos, namorados e amantes, essa mimese e´ representada como vazia de desejo roma^ntico-sexual feminino, o que a transfigura na forma e conteúdo em um “duplo monstruoso” (do amor) no qual “as diferenc¸as na~o sa~o abolidas, mas embaralhadas e misturadas. Todos os duplos sa~o intercambia´veis, sem que sua identidade seja formalmente reconhecida” (GIRARD, 1990).

Contardo Calligaris (2005) nos indica as fontes das possi´veis organizac¸a~o e desorganizac¸a~o das pulso~es que da~o origem a essa puta mulher, a fe^mea. Segundo ele, a origem da prostituic¸a~o se encontra na~o so´ no ambiente como tambe´m no significante “prostituta”, que toda mulher tem que dar conta no ato da sua castrac¸a~o. Refere-se ao fato primeiro da passagem “puta” que toda menina tem que fazer em seu complexo de E´dipo e castrac¸a~o, em que trair o pai a favor de outro homem e de seu equili´brio psi´quico se torna fundamental. O autor evoca uma fantasia de prostituic¸a~o como passagem obrigato´ria para que o corpo de uma mulher possa se erotizar e, escapando das malhas edi´picas, conhecer algo do gozo que lhe seria possi´vel (CALLIGARIS, 2005).

Dolto (1988) afirma que existe um complexo fa´lico, no qual homens e mulheres se produzem e se sustentam, tirando forc¸as para ser e produzir. A partir daqui, ja´ podemos verificar outros fatores que se articulam a` prostituic¸a~o feminina: o fato de a mulher ser criada para ser passiva, desenvolvendo uma servida~o volunta´ria aos ditames do grande Outro, que pode levar as mulheres a uma situac¸a~o de paralisac¸a~o que, se extremada, pode gerar a incapacidade de dizer na~o a` prostituic¸a~o. Isso nos remete aos “trilhamentos” mentais aos quais se refere Freud em seu Projeto par uma psicologia científica, onde as experiências iniciais da vida marcam e criam vias que o sujeito repete em sua vida, retornando sempre àqueles caminhos conhecidos aos quais se referem Chico Buarque e Tom Jobim em seu Retrato em branco e preto: “Já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor”.

 

Comentários

Refletir sobre a prostituição e felicidade deve levar em conta não somente o debate sociológico sobre as relações entre homens e mulheres, frente à hegemonia ainda existente do discurso masculino, mas também as questões psíquicas ligadas à posição subjetiva da mulher na família e na sociedade, e em particular os caminhos que levam da menina à mulher, e o acesso aos mistérios do desejo, em especial o feminino.

Cremos que sim, é possível ser prostituta e ser feliz, mas em condições ideais e raras de autonomia do sujeito e de clareza quanto aos riscos e à extrema transitoriedade dessa atividade. Pode-se então ter os ingredientes necessários para a felicidade, esta com suas variadas definições. Freud nos diz que no final de uma análise o sujeito deve ser capaz de amar e trabalhar, saindo do sofrimento neurótico para uma infelicidade comum (FREUD, 1937). Considerando essa condição (amar e trabalhar) aliada à autonomia, então, reunindo esses três ingredientes, pode-se considerar que o sujeito tem a condição de se sentir feliz independentemente da profissão ou mesmo devido a ela, independentemente de qual seja.

 

Agradecimentos

A autora agradece os comentários de Eliane Mussel, José Martinho, José Faria, Scheherazade Paes, Tania Loes e Fátima M. Busko.

 

Referências

CALLIGARIS, C. Uma linda mulher (2005). Disponível em: http://psycneuro.blogspot.com.br/2012/06/uma-linda-mulher-por-contardo.html. Acesso em: 13 dez. 2013.

CALLIGARIS, E. Prostituição e fantasia. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,,EPT1049692-1664,00.html. Acesso em: 13 dez. 2013.

CECCARELLI, P. R. Prostituição – corpo como mercadoria (2008). Disponível em: http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=157. Acesso em: 13 dez. 2013.

CORSO, M.; CORSO, D. Prostitutas felizes. Ninguém transa com um corpo vazio de fantasias, nem que queira. Disponível em: http://www.marioedianacorso.com/prostitutas-felizes. Acesso em: 13 dez. 2013.

DOLTO, F. Psicanálise e pediatria. Rio de Janeiro: LTC, 1988.         [ Links ]

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
E-mail: annaproietti@gmail.com

Recebido em: 20/01/2014
Aprovado em: 20/03/2014

 

 

Sobre a Autora

Anna Barbara de Freitas Carneiro
Médica. Escritora. Candidata em formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.