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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte jun. 2014

 

ARTIGO

 

A “renegociação com a mãe” - um indicador para a clínica do pai na UTI neonatal

 

A “renegotiation with the mother” - an indicator for the clinic of the father in neonatal ITU

 

 

Jeferson Machado PintoI; Maria de Lourdes de Melo Baêta

IUniversidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo trabalha como proposta e como questão, um indicador clínico que possa subsidiar a organização das instituições e os profissionais da saúde no atendimento aos homens/pais numa UTI neonatal, por ocasião do nascimento pré-termo dos seus filhos. Os dados provêm de uma pesquisa na qual ouvimos pais no contexto da UTI neonatal onde seus bebês estavam internados. O nascimento prematuro/internação da criança introduz uma descontinuidade traumática no exercício das funções parentais interferindo com sua estruturação já nesse contexto.

Palavras-chave: UTI neonatal, Função paterna, Indicadores clínicos, Renegociação com a mãe.


ABSTRACT

Both as a proposal and as a question, this paper is a clinical indication which could help the organization of Institutions and also people working with Health in giving support to men/fathers in a neonatal ITU when their child is prematurely born. The data come from a research where we paid attention to fathers whose babies were in a neonatal ITU. We talked to them and hear carefully what they had to say. The premature birth and consequent in-patient Hospital care of their babies introduces, since then, a traumatic discontinuation in the parental functions, interfering in the organization of these functions.

Keywords: Neonatal ITU, Paternal function, Clinical indicators, Renegotiation with mother.


 

 

“Ser pai” inaugura-se aqui ao fazer surgir uma renegociação com a mãe.
DIAMANTIS, 2002, p. 67

 

Introdução

A escrita deste trabalho se fez no contexto das elaborações suscitadas pela pesquisa realizada sobre a função paterna na UTI neonatal, cujos resultados foram apresentados em dissertação de mestrado no ano 2009 sob o título A paternidade na UTI neonatal - o pai prematuro (BAÊTA, 2009). Ele se refere à elaboração de indicadores clínicos que possam subsidiar a organização das instituições e os profissionais da saúde no atendimento aos pacientes, elaboração considerada essencial nos programas de pós-graduação da Faculdade de Medicina da UFMG, no âmbito da interdisciplinaridade.

Os psicanalistas encontram dificuldades em desenvolver indicadores clínicos universais que se apliquem a todos os sujeitos – à maneira dos protocolos médicos –, uma vez que os focalizam em sua singularidade. Existem muitas controvérsias em torno dessa possibilidade. E o exercício de previsão embutido em um protocolo clínico, elaborado previamente ao sujeito, sem as devidas considerações contextuais, pode ser antiético sob o viés da psicanálise. Entretanto, conforme assinalam Kupfer e Voltolini (2005, p. 2), devemos considerar que “a presença de um sujeito psíquico só pode ser verificada com base nos efeitos indiretos que ela produz... [e que] a leitura dessa presença de sujeito precisa apoiar-se em sinais fenomênicos que permitam supô-la”. Da nossa parte, trata-se de uma primeira aproximação e caminhamos nessa direção ciente das dificuldades a serem encontradas, sobretudo no efetivo exercício da prática nas instituições de saúde quando os indicadores são expostos ao contraponto dos discursos dos profissionais da saúde podendo sofrer torções na sua leitura e utilização.

É importante esclarecer ainda que estaremos sempre falando de sujeitos para os quais a função paterna se coloca no contexto edipiano, onde se situam os pais que pesquisamos e onde a mulher ocupa o lugar de argumento para a função materna. Outras situações podem acontecer.

Nosso interesse em ouvir os pais veio do exercício da clínica psicanalítica com as famílias dos bebês numa UTI neonatal, que nos levou a formular a seguinte questão: O pai teria uma função específica a desempenhar nesse momento precoce da vida da criança?

O homem que se torna pai hoje necessita de uma atenção particular porque se encontra desamparado de apoio social e de referências subjetivas estáveis. Em situações de agravo à saúde da criança, como é o caso nos nascimentos pré-termo, as dificuldades se tornam maiores devido à internação necessária, à instabilidade do quadro clínico e aos riscos para a vida da criança – modificações no curso dos acontecimentos que implicam exigências psíquicas severas feitas aos pais. Mas a paternidade tem sido considerada de forma lateral também nas questões relativas aos domínios da reprodução humana onde a mãe continua sendo a protagonista quase exclusiva.

Ao lado disso, entretanto, é fato já estabelecido que o pai está cada vez mais implicado com os primórdios das funções parentais: desde o pré-natal, passando pelos períodos da perinatalidade, ele é convocado para participar desses primeiros acontecimentos, seja pela família, a mulher sobretudo, seja pelos profissionais da saúde. Não existe, contudo, o contraponto de uma preocupação sistemática em promover sua integração nos diferentes contextos, e ele se vê na contingência de encontrar, por si só, seus novos caminhos. Trata-se então – é importante destacar isso – de uma implicação e uma cobrança que não consideram o homem na relação com seu desejo de ser pai. É como se o homem, na função de pai, o fosse tão naturalmente como a mãe o é “no laço materno [...] fundado numa carnalidade manifesta” (LACAN, 2005, p. 32) algo que não encontra sustentação na estrutura que suporta as funções parentais e que pudemos verificar. Como esclarece Lacan (2005, p. 32) no mesmo parágrafo, “a primazia do invisível [...] caracteriza a promoção do laço paterno”. Por isso, ele vai dar corpo, digamos assim, à dimensão da ausência quando falta a presença materna apoiada em dados perceptivos mais concretos.

Assim é que, a propósito das referências ao pai na literatura especializada, Ibañez (2003, p. 18) diz que ele é

[...] citado mais como mero testemunho da sua existência do que como elemento diferente da mãe. Quando fazemos descrições ou apresentações clínicas em perinatalidade e psicopatologia precoce, o recurso à frase “E o pai também...”, sem reflexões que a acompanhem, é uma prova desta situação.

Tudo isso nos animou a elaborar um indicador para a clínica do pai na UTI neonatal que assinalasse sua peculiaridade e pudesse ser utilizado pelos profissionais da saúde.

 

A pesquisa e seus achados

Nossa metodologia de pesquisa foi organizada para permitir encontrar as formas particulares pelas quais os sujeitos se colocam na estrutura. Estrutura que sabemos ser, na psicanálise, a da linguagem – tanto no que nela se aliena quanto no que nela se encontra referenciado, mas como falta, furo na estrutura linguageira, ou seja, o real traumático, eixo em torno do qual tudo gravita.

Desse modo, encontramos a dimensão linguageira nos ideais que os pais haviam adquirido enquanto filhos, enquanto tiveram um pai, sua única experiência com a paternidade até então.1 É para esse lugar que um homem é remetido, no seu inconsciente, quando uma mulher lhe faz saber que ele vai ser pai. Uma reedição do “romance familiar”, dissemos, com Freud (1908).

Garcia (2008, p. 61-62), com Lacan, clareia bem o que entendemos por (re)edição:

[...] O Édipo é um complexo que permite ao sujeito atar-se de outra forma. O atar-se de outra forma, com os mesmos elementos, é o que define o crescer. Tornar-se homem ou mulher implica se virar com os pedaços, com os restos do enlace do sujeito com o Outro. Com estes restos, o sujeito constrói o que Freud chamou de ‘romance familiar’. [...] não uma evolução, mas um reordenamento de traços, ou seja, a passagem de um tempo a outro é descontínua e dependente da leitura que um sujeito realiza.

Na fala de um pai:

[...] eu ... meu pai me criou de uma forma, né, então eu já... já procurei... eu... evoluir. [...] agora eu tenho um filho, então eu vou pegar o que de bom meu pai me ensinou e vou tentar melhorar o que eu não gostei, não é? Na educação dele para comigo. (?) Eu acho... considero. A gente é do interior, foi criado assim de uma maneira... para os métodos atuais, muito severa. Meu pai era bem severo e tal. Mas eu... não tenho nada a reclamar disso não. Foi a maneira dele e tal... agora a coisa é ir evoluindo ... Então, o que eu procurei fazer foi... isso mesmo. Foi juntar tudo de bom que teve na minha família toda... o que eu não gostei eu tento evitar...

O real traumático se apresentou sob as contingências do nascimento prematuro e da reanimação neonatal, configurado-se no encontro com o desmanche da função materna ou uma interferência violenta nela cedo demais. É quando todos os ideais se mostram insuficientes para se haver com uma situação inédita. Ansermet (2003, p. 49-50) afirma:

A situação da reanimação neonatal é justamente a do pavor, com seu efeito de sideração. É o traumatismo absoluto. Não há história. O estado de pavor “designa o estado que surge quando nos encontramos em uma situação perigosa sem estarmos preparados para isso” (FREUD, 1920, p. 20) [...] Caímos repentinamente em um mundo desconhecido, jamais imaginado, que não pode ser pensado em seus desdobramentos [...] Às vezes o pavor pode... apagar os sentimentos. Nada de sofrimento manifesto... como se as vias habituais da dor estivessem suspensas. Outras vezes, um sofrimento invade a cena e atinge a todos [...] O traumatismo conduz a uma abolição simbólica. Algumas vezes, pais e responsáveis da equipe médica não conseguem representá-lo. As coisas permanecem suspensas. Nada escora a situação. Ficamos siderados. Só podemos ser. Não se pensa. É esse furo que traumatiza.

Um pai o diz assim:

Ah, é péssimo! Muito ruim... cada dia é um dia... você recebe uma notícia... por exemplo, quando ela chegou aqui... ela... tava no respirador... aí depois foi para o cipapi... e logo, logo tirou o cipapi. Então a gente tem aquela... oh beleza, vai melhorar... tudo tá ficando bom... De repente volta para o respirador. Aí ocê dá aquele baque. O que está acontecendo... então ocê fica meio preocupado... Você fala... puxa vida, será que ... você vê os casos que... não é... muitos casos! “Ah, também era assim!” O outro num... num aguentou... Então você fica sempre... você fica sempre preocupado com a situação. Igual ontem eu recebi uma notícia que ela... que ela tava recebendo um... um diurético... e eu falei... pô, mas prá que é isso? Então você fica... fica muito apreensivo... fica tenso... não descansa direito... É uma experiência muito... muito complicada... muito ruim. É... que que eu ia falar? Esqueci... Nó! É isso! [...] Mas é uma coisa assim também que... como controlar? Não tem como, né. Não é... é, não é... como... alguma coisa... Por exemplo... um acidente de carro: Não beba! Não é? Num é, num é isso. Não existe nada que você possa fazer prá evitar esse tipo de coisa. Então eu acho que é por isso que eu acho que não tem recado, né. Prá tentar ajudar, tentar... tipo, ela fez bonitinho, ela respeitou tudo que o... que o médico falou... do bebê... não sei o que... não faz isso... Então foi seguindo bonitinho... vai... toma as vitaminas e tal... Então... infelizmente... Então assim... não tem... né... então assim... é um negócio que a gente não sabe porque que aconteceu... (pausa mais longa) se existe esse negócio de destino, essas coisas... Ééééé... é, num sei. [...] É... é complicado... não desejo isso pra ninguém (pausa).

Para entendermos o lugar do pai enquanto tal na sua função, é necessário esclarecer “a modalidade privilegiada de presença que o sustenta mais além do sujeito que se vê levado a realmente ocupar o lugar do Outro, a saber, a Mãe” (LACAN, [1960] 1998, p. 828).

A função materna, nos primórdios da constituição do sujeito, se ocupa em promover na criança a incorporação da linguagem (anterior ao sujeito e determinante da sua constituição), através dos cuidados ditos (/ditados) maternos; cuidados que cativam (/aprisionam) erotizando, porque exercidos no corpo a corpo impregnado de desejo da mãe pela criança, assim fixando – alienando – a pulsão nos seus representantes.

Para que aconteça “uma harmonia – vulgarmente considerada natural – entre crescimento, maturação, desenvolvimento e constituição do sujeito” (JERUSALINSKY, 2002, p. 150), é necessário que o bebê seja inserido num circuito de desejo e demanda – “outra ordem que não a da vida segundo a satisfação das necessidades” – por parte de um Outro encarnado e portador de um desejo não anônimo em relação a ele, conforme ficou claramente estabelecido por Lacan em Nota sobre a criança ([1969] 2003, p. 369). Ou seja, novamente com Jerusalinsky, (2002, p. 161):

A função materna não só sustenta o bebê e sua função, ela também o pulsionaliza, produz um estiramento de sua corda pulsional, pois quando o bebê se implica nessa demanda do Outro, quando procura enlaçar esse objeto do desejo do Outro, seu circuito pulsional se espicha, estende sua cadeia significante na busca pela satisfação.

Entretanto, é igualmente necessário que essa mãe introduza a criança na dimensão de alteridade, o que acontece através das suas aproximações e distanciamentos – alternância entre presença e ausência, protótipos do funcionamento da linguagem em termos reais. E é no espaço aberto pelas ausências da mãe – quando a criança já é capaz de se indagar pelo desejo materno em questão nessas ausências –, que se instauram o significante falo e o pai, na sua função específica, como aquele que o tem para a mãe. A função paterna enquanto tal, para a criança, é resposta à indagação sobre o desejo da mãe.

Quando essa função materna primária não se cumpre ou sofre uma interferência severa, como acontece na UTI neonatal, estamos diante de uma descontinuidade nas funções parentais e um espaço hiante2 se abre. O lugar para o pai enquanto tal não tendo sido ainda “arquitetado” na estrutura parental cujo processo sofreu um corte – nem a mãe nem a criança estando “prontas” para recebê-lo – podemos falar dele como sendo, ele também, um pai prematuro.

Essa hiância, furo no contexto das funções parentais primevas (assim o constatamos em nossa pesquisa), reanima nos pais o que chamamos de um empuxo à mãe oriundo de quando criança pequena, nem menino nem menina, se ocupava um lugar complementar, ou imaginariamente complementar, ao desejo da mãe, lugar do seu falo imaginário. Período que antecede, portanto, para a criança, a constatação da diferença sexual e as identificações sexuais, período chamado pré-edipiano por Freud ([1933] 1976) ou primeiro tempo do Édipo, estágio do espelho, por Lacan ([1957-1958] 1999).

A criança, então, percebe a mãe como portadora de um desejo onipotente e caprichoso que vai constituir o eixo da sua vida e com ela vivencia um jogo de remetimento de imagens com as quais se identifica primariamente até que o pai desponte nesse cenário. Existe um anseio de fazer Um com A Mãe num apelo à completude narcísica nas identificações imaginárias entre a mãe e o bebê. É esse o puxão inconsciente experimentado pelo pai.

Falando com Soler (2005, p. 88-92), a mãe, na sua função, carrega o paradoxo do gozo – impossível de atingir, mas também impossível de reduzir. Daí que cada um traga, no mais íntimo de si, a marca desse Outro primordial onde o verbo encarnado fez sentir o seu poder na regulação do gozo. O empuxo à mãe está relacionado, portanto, ao gozo d’A mãe. A um gozo que teria sido. Dizemos nesse tempo verbal (no futuro do pretérito) porque se trata de um gozo suposto pela incidência da linguagem. Pretendemos assinalar, assim, um limiar do gozo jamais atingido, mas evidente no forçamento do princípio do prazer (efetuado pelos sujeitos) até os limites toleráveis de excitação.

Já o pai, diz Lacan ([1957-1958] 1999, p. 193), “O pai intervém em diversos planos. Antes de mais nada, interdita a mãe”. Ou seja, a função paterna se relaciona à perda de gozo. A cada vez, para cada sujeito, é preciso reassegurar que essa função separadora se cumpra e que o “empuxo à mãe” seja ultrapassado. E o pai pode fazê-lo se tem na mulher o objeto do seu desejo. Se assim for, ele a divide diante da criança para que ela possa ser mãe sem deixar de ser mulher (LACAN, 1974-1975). É assim que ele garante uma dimensão de alteridade subjetiva para o bebê, por mais incipiente que seja, como é o caso numa UTI neonatal.

Vivendo a paternidade, o homem que se tornará pai se encontra, outra vez, diante dessa encruzilhada entre o puxão de gozo ou a castração da mãe – agora a mãe do seu filho –, tendo de se haver com isso nas condições adversas de uma UTI neonatal. É sob esse forçamento psíquico que o vimos intervir na função de separação entre a mãe e a criança reivindicando a mulher como objeto causa do seu desejo e tomando para si a responsabilidade de manter aberto o espaço da castração. Ele o faz com a reafirmação da sua posição sexuada masculina – isso que está sujeito a muitas vicissitudes e acontece sob as formas diferenciadas pelas quais cada sujeito ocupa seu lugar na estrutura –, mas não o consegue sem que as vivências de fascinação e temor diante da onipotência desse Outro primordial sejam ‘reanimadas’ nele mesmo, exigindo a sua travessia: a travessia do “empuxo à mãe”.

Os pais, então, se voltam para as mães, onde se localiza o ponto de fratura na continuidade das funções parentais e é com elas que, sobretudo, passam a se ocupar, mesmo quando ressaltam o interesse da criança. Um deles, diante das dificuldades da mãe – já aos 46 anos e com dificuldades para aceitar uma gestação múltipla não pretendida enquanto tal (trigêmeas) e fruto de estimulação hormonal –, diz:

No começo ela... sofreu muito... psicologicamente... Mas muito, muito mesmo. Não tava nem aceitando! Eu... (pausa) o que que eu vou fazer?! O que que eu tenho que fazer?! Vou ter que fazer tudo para controlar... (pausa) ela, no caso... porque senão... atrapalharia tudo. Tem que ter paciência.

A pausa, seguida da explicação sobre quem controlar, deixa claro que não fala só dela.

Por outro lado, eles se tornam carentes do interesse da mulher, agora absorvido pela criança. As referências ao esperado término do resguardo3 – explicitamente citado ou implícito nas frequentes queixas ou comentários sobre a retomada da vida sexual e sobre o desinteresse das mulheres/mães pelo sexo –, evidenciam esse homem desejoso da sua mulher, mesmo se fortemente implicado e angustiado enquanto pai.

No que diz respeito à criança, o pai sustenta, para dizer com Lacan ([1957-58] 1999), uma presença velada, mesmo quando integrado nos cuidados de nursing possíveis com ela na UTI. Ele considera sua função principal dentro da dinâmica parental na UTI neonatal aquela de apoiar a mãe incondicionalmente, mas o faz preservando a mulher – que ela seja mãe, mas não-toda mãe. Aí se ancora o desejo no par parental.

Contudo, esse apoio é, como vimos, apenas a ponta de um iceberg. Há toda uma dinâmica inconsciente subjacente a ele. Sob a forma do necessário “tem que” ele se sobrepõe aos afetos e conflitos que os próprios pais estão vivenciando. Na base desse socorro haveria sempre um ônus devido ao sofrimento, ou pânico mesmo, que eles experimentam e “não pode(m) deixar transparecer”. Alguns percebem melhor as próprias dificuldades e as têm mais elaboradas, mas existem aqueles que assumem essa função como um mandato, um imperativo que não está sujeito a nenhuma consideração.

Logo, é importante sempre considerar a sua fragilidade básica. Sobretudo quando acontece sob as condições de uma tensão contínua e prolongada – devido à evolução imprevisível, quando não manifestamente ruim, das crianças –, exigindo cada vez mais dos pais. Nesses casos, eles podem ser levados a agir premidos pela angústia e em função de uma exigência superegoica diante da qual se curvam ou se rebelam de forma compulsiva. A clínica, sobretudo nas UTIs pediátricas (após o período neonatal), nos mostra isso.

Na literatura, Ibañez (2003, p. 21-23), referindo-se ao que chama de tragédias do ser humano, tais como aquelas com as quais convivemos numa UTI neonatal – “a esterilidade, a morte de um filho, a dificuldade de ter uma descendência sadia” –, destaca aí a dimensão relativa ao pai.

Não podemos deixar de nos perguntar: não se interessar pelas disponibilidades psíquicas do pai e pelo fato de que ele não demanda nossa atenção, não seria uma maneira de não interromper sua atividade “representacional” – que o leva com vantagem a perseguir sua trajetória própria –, para se ligar a um bebê de futuro incerto? Claro que fazemos referência a uma atividade representacional da parte do homem e não a uma passagem ao ato desta representação. Entretanto, nos casos problemáticos, é muito freqüente assistir a uma grave crise do casal e mesmo a uma ruptura, quando do nascimento de uma criança com algum impedimento; é pertinente, então, pensar que as representações permanecem latentes durante a crise que supõe um nascimento com risco médico (IBAÑEZ, 2003, p. 21-23).

E traz como exemplo a possibilidade do homem de “repudiar” a mulher se ela não puder lhe dar descendentes.

Manoni (1999, p. 7) afirma que raramente a criança “doente” é acolhida numa situação “verdadeiramente triangular”. É a mãe que geralmente assume a tarefa de tratar e cuidar do seu filho, muitas vezes longe do cuidado paterno. Na maioria das vezes a mãe assume uma relação simbiótica com esse filho doente, e qualquer depreciação contra ele é sentida como depreciação de si própria. Nessa relação simbiótica não é possível introduzir a criança no pacto simbólico, assim como a estruturação da noção de Outro para a criança.

Em Lefort et Discour (2003, p. 48) também encontramos observações que caminham na mesma direção das nossas constatações. A propósito do papel de mediador que é atribuído ao pai (entre a mãe e o hospital, e a mãe e o bebê), nos primeiros dias após o parto, as autoras dizem que isso acontece quando ele “ainda está dividido entre sua própria angústia e a necessidade de reassegurá-la (cf. B. This, Père: presence symbolique). Também relatam que os pais “frequentemente lhes dizem não serem apoiados; nem por aqueles que o cercam, nem pela equipe. Eles dizem que lhe pedem notícias do bebê e da mãe, mas raramente perguntam pelo seu estado de saúde”.

Essa fragilidade escondida, porque é preciso parecer bem, ‘segurar a onda’, é indício de uma angústia quase sempre ignorada, mas que os achados da pesquisa demonstraram existir e evidencia a necessidade de uma escuta que lhe favoreça a expressão para evitar, quem sabe, pois não se trata de previsão, consequências futuras da ordem do acting-out ou da passagem ao ato.

 

Um indicador para a Clínica do Pai na UTI neonatal

Chegamos, assim, à questão/proposta que formulamos no início deste trabalho e em direção à qual viemos desenvolvendo nossos argumentos: a possibilidade de estabelecer um indicador para a clínica do pai na UTI neonatal, indicador de um desdobramento possível entre acontecimento e consequência (JERUSALINSKY apud KUPFER; VOLOTOLINI, 2005), onde a função paterna, abalada na sua estrutura de base pelo nascimento pré-termo e suas consequências traumáticas, poderia falhar mais adiante, sobretudo nos casos mais graves, quando os pais veem esboroar os ideais relativos à paternidade que trazem consigo e nos quais se referenciam.

Retomemos, então, os aspectos essenciais relativos à dimensão estrutural que dá suporte ao estabelecimento do indicador clínico, porque delineia o quadro no qual o sujeito do inconsciente se movimenta. De um lado, o trauma, a contingência do real que “cessou de não se inscrever” com o nascimento prematuro/internação/reanimação neonatal da criança e sua incidência nas funções parentais. Esse quadro pode sofrer agravamento progressivo quando a evolução clínica da criança se complica, tendendo para sequelas definitivas ou até mesmo a morte. De outro lado, a elaboração desse acontecimento traumático. Nos termos freudianos (1920), a ligação da energia que ele deixa livre. Os próprios pais nos deram indicações de tudo isso quando os ouvimos em pleno processo de encontrar seu lugar nessas circunstâncias.

O “empuxo à mãe”, experiência ‘regressiva’ do homem diante da paternidade recente, associado ao encontro traumático com o desmanche da função materna – cujas articulações (ações escandidas pelo significante) funcionais junto à criança engendram o lugar pertinente ao pai –, torna os homens/pais, eles também, pais prematuros e desamparados e os leva a privilegiar a sustentação de uma posição sexuada masculina nesse cenário. Eles o fazem reivindicando a mulher como objeto do seu desejo, enquanto se propõem prestar assistência incondicional à mãe. Posição difícil uma vez que a mulher/mãe – profundamente ferida no seu narcisismo e em processo de lidar precisamente com a falicização comprometida do seu bebê –, frequentemente se volta para a criança de forma quase absoluta nessas situações extremas e deixa o homem/pai muito só com o próprio sofrimento. Então, há que “renegociar” com a mãe os termos da sua adesão.

Se o pai abre mão dessa “renegociação” com a mãe que sua mulher se tornou, as possibilidades de a paternidade, dimensão transgeracional da sexualidade, se integrar à sexualidade masculina se reduzem drasticamente – pelo menos com essa criança. E as dificuldades que encontra para sustentar a confirmação do seu lugar junto à mulher/mãe – marcadas também pelas particularidades de cada sujeito –, podem levá-lo até à desistência/abandono desse lugar, nem sempre tendo podido elaborar psiquicamente essa ‘solução’.

Citamos Diamantis (2002), cujas colocações confirmaram nossos achados e de quem extraímos a expressão “renegociação com a mãe” que nos pareceu lapidar.

Assim é que não há efetuação da função do Nome do Pai sem essa etapa de tornar-se novamente “o objeto dos cuidados maternos”, isto é, de voltar a um estado anterior que ameaça (no sentido lógico) a um remanejamento das possibilidades de inscrição, de reinscrição. Por isso é que se assiste a possibilidade de sideração, de horror ou de superinvestimento da mulher grávida para um homem – quando este está em condições de fazer ressurgir a maneira como terá vivido seus próprios estados de gozo com sua mãe, maneira que se acha assim reativada e recolocada em jogo. “Ser pai” inaugura-se aqui ao fazer surgir uma renegociação com a mãe (DIAMANTIS, 2002, p. 67).

Acreditamos ter trazido os elementos estruturais relativos ao estabelecimento de um indicador para a clínica do pai na UTI neonatal. Ou seja, a pesquisa nos mostrou que os sujeitos em questão, cada um à sua maneira, se inscrevem na dimensão estrutural presente no acontecimento da paternidade nesse contexto. A partir daí nos permitimos propor a possibilidade de renegociação com a mãe como um indicador para a clínica do pai na UTI neonatal e sua sequência nas UTIs pediátricas. As manifestações de dificuldades e mesmo de descaso até o abandono nessa renegociação seriam indícios de um possível fracasso na relação posterior do casal com as consequências também possíveis na constituição do sujeito por vir: a criança, que disso “pesca os resultados”, como diz Lacan ([1957-1958] 1999, p. 198).

 

Acontecimento e consequência numa lógica dinâmico-tendencial

Dizemos possível e possíveis porque, segundo a psicanálise, aquilo que faz marca para um sujeito pode não fazer para outro. Freud ([1939] 1976) assinala o caráter retroativo do efeito traumático e com isso o relativiza. Ou seja, o trauma produz seus efeitos na ressignificação posterior que ele ganha no quadro das fantasias do sujeito cujos conflitos anteriores se atualizam e interagem com a situação atual.4 Nessa direção, Jerusalinsky (apud KUPFER; VOLTOLINI, 2005, p. 3) distingue causa e acontecimento explicando que o acontecimento carrega uma significação subjetiva que o conceito de causa não tem. E a substituição do termo “efeito” pelo termo “consequência” significa que se determina, nesse ponto, a abertura de uma nova experiência para o sujeito em questão sem, contudo, determiná-la.

Por isso, falamos de uma clínica do pai – para nos referirmos à estrutura –, mas voltada aos pais – ao um a um dos sujeitos e à singularidade dos seus posicionamentos na estrutura. Daí a importância deles iniciarem a elaboração da situação traumática já no contexto da UTI neonatal e serem estimulados a prosseguir esse trabalho, evitando a cristalização de uma posição defensiva frente ao trauma.

Assim, pensamos ter conseguido estabelecer uma articulação de elementos cuja dinâmica apontaria para uma tendência – uma lógica “dinâmico-tendencial” distinta da relação de causa e efeito utilizada na medicina (cf. HANNS, 2000 apud KUPFER; VOLTOLINI, 2005, p. 2) – que permitiu formular indicações para a clínica do pai e facilitar a escuta dos profissionais da saúde sobre a necessidade de encaminhá-los a um atendimento onde “o psíquico não aparecesse por eliminação, como de hábito [...] mas que um eventual encaminhamento [...] pudesse ser propositivo” – como também apontam os autores (2005, p. 8). Por exemplo, precisamos encaminhar esse pai (ou esse casal) para um atendimento psicológico. Ele não está conseguindo achar um lugar para ele nessa relação da mãe com o bebê.

Usados de forma conveniente, o que ainda é uma grande questão que não privilegiamos neste artigo, esses indicadores são particularmente oportunos naquelas clínicas que devem ser viabilizadas o mais cedo possível para delas se obter resultados efetivos. E as instituições de saúde são o melhor local para se conseguir esse acesso precoce devido ao lugar que a ciência, a medicina particularmente, ocupa na vida das famílias nos dias de hoje. É um desafio. O dia a dia da clínica, pensamos, no contraponto entre os discursos atravessados pela dimensão de gozo que implicam, irá construindo essa possibilidade.

Concluímos com Benoît (2003, p. 61) que se diz mais intervencionista na condução de seu grupo de homens/pais no aguardo do nascimento de seus filhos sempre que surgem questões a respeito do lugar do pai no período perinatal. Nessa circunstância, ele diz ter a preocupação de passar uma mensagem que lhe parece capital: é preciso que esses homens se sintam homens ao longo de toda essa aventura de mulheres.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Maria de Lourdes de Melo Baêta
Rua Santa Rita Durão, 321/605 - Funcionários
30140-110 - Belo Horizonte/MG
E-mail: mlbaeta@terra.com.br

Jeferson Machado Pinto
Rua Levindo Lopes, 333/ 410 - Savassi
30140-911 - Belo Horizonte - MG
E-mail: jefpinto@uai.com.br

Recebido em: 11/03/2014
Aprovado em: 20/03/2014

 

 

Sobre os autores

Jeferson Machado Pinto
Professor Associado da UFMG - Programa de Pós-graduação em Psicologia.

Maria de Lourdes de Melo Baêta
Psicóloga. Psicanalista.

 

 

1 Ainda que brevemente, é importante destacar a diferença com a mãe que experiencia, a mais, a relação com o filho no próprio corpo desde a gestação.
2 Hiante faz alusão a béance, substantivo feminino (= n.f. État de ce qui est béant, grand ouvert. Fonte: Le Petit Robert Online), termo utilizado por Lacan comumente traduzido por hiância. Hiante, adjetivo, está dicionarizado em português (Michaelis - Dicionário de Português Online) como “adj. 1 Muito aberto, escancarado (falando das fendas e abismos). 2 poét Que está de boca aberta”. Tudo a ver com a condição do pai diante do empuxo à mãe, como veremos a seguir.
3 Resguardo significa, no sentido da antropologia, um 'conjunto de práticas mais ou menos institucionalizadas, entre as quais se incluem, geralmente, restrições alimentares, abstenção sexual, redução das atividades diárias e isolamento físico e social, observadas durante determinado período por um indivíduo que se encontra em situação liminar' (FERREIRA, 1999).
4 Ele também considera a existência de uma latência entre as reações mais imediatas ao trauma – como pode ser o caso de assumir a postura de apoio incondicional às mulheres/mães – e as formações de sintoma mais tardias, o que está em acordo com nossa hipótese.