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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte June 2014

 

ARTIGO

 

Bissexualidade: deve-se dizer bissexualidade ou contingência na sexuação?1

 

Bisexuality: should it be said bisexuality or contingency in sexuation?

 

 

Monique David-Ménard
Tradução: Leda Beirão
Revisão da tradução: Carlos Antônio Andrade Mello

I Escola Freudiana de Paris
II Centro de Formação e Pesquisa Psicanalítica
III Sociedade de Psicanálise Freudiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerações em torno do termo bissexualidade despertam uma série de questões. Pode a psicanálise utilizar esse termo que, para Fliess, se referia a uma determinação fixa e universal do masculino e do feminino, da qual, os “períodos sexuais” de homens e mulheres eram apenas uma manifestação entre outras? Por que conservar o termo bissexualidade atribuída de psíquica? Não basta considerar a destinação diversa dos componentes homossexuais do desejo naqueles sujeitos cuja escolha de objeto seja heterossexual e em outros, cuja escolha seja homossexual? Como a experiência da transferência faz surgir certa plasticidade dessas escolhas, uma contingência de fatores de bifurcação apesar das determinações significantes da sexuação?

Palavras-chave: Bissexualidade, Contingência, Masculino, Feminino, Édipo, Rochedo da castração.


ABSTRACT

Considerations on the term "bisexuality" raise a number of questions. May psychoanalysis use this term, which, for Fliess, referred to a fixed and universal determination of masculine and feminine, from which the "sexual periods" of men and women were only one manifestation among others? Why conserve the term bisexuality with a psychic attribution? Wouldn't it be enough to consider the diverse destination of the homosexual components of desire in those subjects whose object choice is heterosexual, and in others, whose choice is homosexual? How does the experience of transference makes appear a certain plasticity of such choices, a contingency of factors of bifurcation in spite of the significant determinations of sexuation?

Keywords: Bisexuality, Contingency, Masculine, Feminine, Oedipus, Rock of castration.


 

 

Minha intervenção quer sublinhar algumas questões em torno do termo “bissexualidade”. Pode-se usar na psicanálise esse termo que, conforme Fliess se refere a uma determinação universal e fixa do masculino e do feminino, nos quais os “períodos sexuais” dos homens e das mulheres seriam uma manifestação entre outras? Por que manter o termo bissexualidade mesmo quando qualificado de psíquico? Não bastaria falar do destino diverso dos componentes homossexuais do desejo naqueles cuja escolha do objeto é heterossexual e naqueles para os quais a escolha é homossexual? Como a experiência da transferência faz aparecer certa plasticidade dessas escolhas, uma contingência dos fatores de bifurcação apesar das determinações significantes da sexuação?

 

I Wilhelm Fliess e o determinismo do sexual na natureza

A bissexualidade remete em princípio à história da psicanálise: o que é que Wilhelm Fliess entendia exatamente por esse termo bissexualidade?

Ele pensava ter estabelecido em biologia duas coisas: em primeiro lugar, a formação de um novo organismo vegetal ou animal parece muitas vezes se desenvolver de modo partenogenético, quer dizer, sem relação à oposição dos cromossomos masculinos e femininos dentro das células. O raciocínio de Fliess é de um embriologista: mesmo quando a reprodução vegetal ou animal parece se produzir de modo assexuado e mesmo quando no indivíduo adulto não conseguimos observar os cromossomos sexuais opostos, experiências de cruzamento mostram que houve, entretanto, dentro dos gérmens as diferenças dos sexos masculino e feminino, que nós não pudemos reconhecer nas células individuais adultas. E em seguida generaliza:

Mas a reprodução assexuada seria, mesmo assim, verdadeiramente assexuada? Não intervêm aí substâncias masculinas e femininas? Sim, senhores, toda muda de rosa, de vinha ou de batata possui órgãos sexuais masculinos e femininos, ou seja, pistilos e estames [...] Se alguém puder ainda duvidar da presença dentro do ser vivo de duas substâncias opostas, então, graças a outro exemplo bastante eloquente, eu gostaria de provar mais uma vez essa verdade (FLIESS, 1973, p. 271)

O outro exemplo é do cogumelo Ustilago violácea, que parece se desenvolver de masculino em masculino – seus esporos podem ser levados à maturação somente nas anteras masculinas de outra planta. Mas quando não encontra uma planta masculina a sua disposição,

[...] ele desperta em uma planta feminina a aparição de anteras masculinas. Ele é capaz de induzir o que nenhum experimentador seria capaz de fazer e que a própria natureza espontaneamente recusa. Mas a planta feminina deve, entretanto, ser dotada de uma substância masculina que não teria nunca sido posta em evidência no cogumelo (FLIESS, 1973, p. 271).

Notaremos que Fliess não tem o vocabulário dos embriologistas contemporâneos. Ele não fala da expressão dos genes contidos dentro dos cromossomos. Mas seu raciocínio é da mesma ordem.

Em segundo lugar, a passagem da aparência da reprodução assexuada à bissexualidade só está assegurada no raciocínio de Fliess por outra cláusula: uma reflexão próxima à de Weismann sobre a eternidade daquilo que se transmite pela reprodução sexuada. Ao contrário, a vida do indivíduo é limitada no tempo e resulta na morte, que é para todos os indivíduos da mesma origem, programada como por um relógio.

Todos os brotos de rosas formam uma só e única roseira. Todos os álamos uma só individualidade, eles são fechados dentro de uma mesma floração e têm uma morte comum [...] Algo como a totalidade das células de nosso corpo que compõem órgãos tão diferentes como coração, fígado, cérebro e que elas regeneram sem parar são encadeadas entre si, indissoluvelmente, dentro de um mesmo período vital. Quando tiver sido gasta a quantia de substância vital atribuída no princípio, a vida para como um relógio (FLIESS, 1973, p. 272).

É a sexuação ligada à morte dos indivíduos que assegura a variedade das formas na evolução. Mas para Fliess o raciocínio evolucionista é sobretudo regressivo: mostrar que há sempre o feminino e o masculino.

Enfim, o universalismo de Fliess o fazia crer que estava a observar os “períodos”: os períodos sexuais de 23 dias (e não de 28 dias como nos ciclos das mulheres), que ele crê desvendar nos homens dentro da “neurose nasal reflexa”. Ele faz dela a manifestação no cotidiano dessa lei determinista que liga os indivíduos sexuados à vida e à morte programadas. Os períodos sexuais são determinados como ‘o período’ da vida que leva à morte e manifestam a mesma oposição dos sexos. A bissexualidade para Fliess é um determinismo supostamente inscrito na evolução e na sexuação dos viventes: vegetais, animais e humanos.

 

II Fliess e Ferenczi na herança freudiana

Como a psicanálise pode se afastar dessa imersão na bissexualidade, que é no fundo o contrário da “diferença dos sexos”, quer dizer, uma dissimetria tomando a forma de um mal-entendido constituinte, mal-entendido que podemos chamar, como Lacan, “não relação sexual” na condição de precisar que esse mal-entendido é o que tece os encontros (Seminário mais ainda) e cria um atraso dentro do trabalho das pulsões de morte (Além do princípio do prazer)?

Minha hipótese é que a dualidade dos sexos só é denominada por Fliess uma “oposição” porque precisamente ela faz dos indivíduos elementos de uma totalidade na reprodução: “Se você enxerta uma muda de rosa, por exemplo, a Marechal Niel em uma roseira brava, brotarão esplêndidos Niels. Sempre, se olharmos de perto, a parte evolui para o todo”. Ora, uma dualidade só se torna logicamente uma oposição, sabemos isso desde a lógica de Hegel, se trazemos essa dualidade ou essa diferença a um todo, a um fundamento que lhes será comum. Esse problema só foi elucidado tardiamente na psicanálise. Freud continua a se referir à diferença e à relação entre feminino e masculino como “oposição”. Em biologia a dualidade dos sexos remete aos traços dos gérmens do outro sexo na formação de um adulto, onde domina um sexo genital. É curioso que o próprio termo bissexualidade continue a figurar nos textos freudianos, sendo que, mesmo antes do processo de plágio tentado por Fliess, ele lhe escreveu em 23 de julho de 1904:

Eu termino neste momento Três ensaios sobre a teoria da sexualidade onde eu evito ao máximo o tema da bissexualidade. Há dois lugares onde eu não pude evitar: explicando a inversão, quando eu vou até onde me permite a literatura (Krafft-Ebing e seus predecessores – Kiernan, Chevalier, etc.); depois, quando se trata de mencionar a tendência homossexual dos neuróticos. Lá eu penso colocar uma nota dizendo que eu atentei para a necessidade desta descoberta por certas declarações suas. A menos que tu me proponhas uma formulação neste sentido (FREUD, 2006 p. 583).

Por que Freud não substituiu simplesmente o termo, que incomoda, pela questão da homossexualidade ou das homossexualidades? Há uma experiência (Erlebnis) homossexual mesmo junto aqueles que já a “ultrapassaram”. O importante é então compreender a diferença dos processos que resultam em uma escolha do objeto homo ou hétero. Mas dizer isso, a que nos exorta a clínica, é diferente do que dizia Fliess que queria estabelecer sempre na natureza os dois sexos mesmo quando essa dualidade não era observada. Essa dualidade que ele chama oposição não era nunca pensada como uma relação. Ainda menos como uma relação paradoxal na sexualidade humana, que faz corte justamente aí com uma dualidade apenas natural. De resto, sobre o que ele deve a Fliess, Freud foi finalmente claro em Bate-se numa criança (1919) e sem nomear Fliess que ele chama “um colega que eu tinha então por amigo” ele liga o inconsciente, o sexual e a diferença dos sexos.

O sexo, sendo mais forte quanto à sua formação, predominando na pessoa, recalcou no inconsciente a representação anímica do sexo subordinado. O núcleo do inconsciente, o recalcado, é em cada ser humano, portanto, o elemento do sexo oposto presente nele (FREUD, Obras completas, v. XV, p. 143).2

Por que não dizer que há uma experiência homossexual mesmo junto aos heterossexuais que a superaram? Por que a tradição psicanalítica não se atém à formulação final de Freud: a dissimetria que faz também relação entre o feminino e o masculino consiste na abordagem por cada sexo da “recusa do feminino”?

Quando a questão ressurgiu, depois das cartas a Fliess, na Análise terminável e análise interminável (1937), o termo “bissexualidade” é evocado por Freud cada vez que ele pensa nas relações que teve com seus amigos muito próximos e que terminaram mal: Fliess em princípio, Ferenczi em seguida.

Da relação com Ferenczi, reteremos o que Freud disse em 1937, justamente quando colocou o que devia a esses dois homens. Ele reconhece todo o interesse do trabalho de Ferenczi sobre a posição do analista em um tratamento e sobre os inconvenientes da intelectualização defensiva na contratransferência. Mas não reconhecia o que havia de verdade nas críticas que lhe dirigia Ferenczi: não suportar que ele, Ferenczi, o tenha colocado em outro papel que não fosse de um pai protetor em relação a um filho.

A questão que faz avançar a análise é então: no momento em que o analista é colocado no lugar de figuras sedutoras, que colocam em perigo aquelas nas quais ele gosta de se reconhecer, como poderia ele aceitar sua implicação na transferência que mobiliza os elementos recalcados e não encerrar seu paciente em uma análise sem fim? Essa questão se deixa reduzir dificilmente à de uma bissexualidade inscrita de maneira semelhante na natureza e na sexualidade humana. Trata-se não de restaurar a verdade universal de oposição dos sexos, mas de reconhecer na transferência o impacto da “recusa do feminino” e de compreender como os seres humanos sexuados dão forma a essa recusa conforme os estilos diferentes que fazem com que os chamemos mulher ou homem.

É mais surpreendente ler no texto de Freud dois movimentos contrários: quando ele fala da recusa do feminino, a sexualidade humana não se deixa inscrever dentro de uma lei biológica. Mas em seguida, como se ele quisesse reunir Ferenczi e Fliess, ele faz da recusa do feminino uma verdade biológica. Ele não chega a dissociar duas ideias, no entanto, diferentes: de um lado, o recalcamento inconsciente tem uma relação maior com a questão da diferença dos sexos pensada como “recusa do feminino” e, de outro lado, esse feminino recalcado seria uma lei da natureza viva. Ele confunde Ferenczi e Fliess. E os tradutores que o seguiram o fazem ainda mais, traduzindo por “rochedo de castração” aquilo em torno do qual circulam tanto o inconsciente quanto a diferença dos sexos. Vejamos o texto.

Trata-se da célebre frase sobre o “rochedo da castração”, que é tão ligada a todas as esquivas psíquicas (obrigada, Ferenczi) quanto ao fato biológico de que existem dois sexos e que esse fato é um enigma (obrigada, Fliess). O rochedo da castração será tanto a defesa pelos fantasmas contra a diferença dos sexos e o que ela implica de incompletude no sexual, quanto a relação desse protesto psíquico ao fato biológico da dualidade dos sexos. Freud faria do biológico o fundamento do fantasmático nomeando rochedo biológico a relação necessária entre o fantasma e a diferença biológica? Não exatamente. Freud não fala do rochedo biológico nesse texto, mas de “gewachsenen Fels”, ou seja, de “promontório rochoso”. A diferença dos sexos é essa rocha que avança sem que possamos evitar. Não é o fundamento orgânico ao qual seria conveniente reconduzir todas as dificuldades psicológicas, é aquilo com o qual o psicológico tem necessariamente de lidar. Não é uma origem, é uma barreira que exige voltas. Esse rochedo que avança é o que as defesas contornam, que a análise esclarece e contra a qual ela se bate. Por que então Freud se volta ao biológico, ou seja, a Fliess? “Die Ablehnung der Weiblichkeit kann ja nichts anderes sein al seine biologische Tatsache, ein Stück jenes grossen Rätsels der Geschlechtigkeit” (A recusa do feminino não pode, portanto, ser outra coisa que um dado biológico, uma parte deste grande enigma da sexuação).

Se nos referimos ao artigo Bate-se numa criança (ein Kind wird geschlagen), a bissexualidade é precisamente a presença recalcada do outro sexo em si. Tal proposição deve à biologia a ideia da predominância de múltiplos fatores determinantes, ou seja, de um sexo dominante. Mas essa frase não tem o mesmo sentido em biologia e em psicanálise, como faz crer a “bissexualidade”. O fato biológico do qual Fliess parte é mais complexo ainda do que ele dizia, o que é confirmado por todas as pesquisas recentes: sexo genético, gonádico, hormonal, psíquico, social. Ele não pode tampouco ignorar a importância do biológico, que tem suas leis próprias. O ponto sobre o qual Freud e Fliess pareciam concordar era a coincidência entre a ideia de dominância final na ontogênese de um sexo sobre outro e o recalcamento. Mas desde 1919, Freud explicitava que a ideia da predominância não tinha o mesmo sentido em biologia – onde ele se refere à organização final e diferenciada dos órgãos genitais – e em psicanálise!

Em psicanálise não há organização final simples da diferença dos sexos, que faria naturalmente predominar um sexo sobre outro para cada um. Aí está a questão, aquela que aponta bem Ferenczi no momento em que acusa Freud de não aceitar que ele, Ferenczi, tenha feito uma transferência diferente da de filho à figura do pai. Recusando tomá-lo para análise, Freud rejeitou sua própria feminilidade à qual correspondia a demanda de Ferenczi.

 

III Deve-se manter o termo “bissexualidade psíquica”?

Todos nós conhecemos entre nossos amigos, nossos conhecidos e nossos pacientes, pessoas cuja escolha do objeto mudou no curso de suas existências. Geralmente eles suscitam dos próximos uma interrogação divertida, mais ou menos bem intencionada: será que ele vai realmente ficar com uma mulher? Não será simplesmente para ter um bebê? O que se prepara como experiência futura, quando sua verdadeira inclinação ressurgir? Em oposição a essa desconfiança, que indica quanto essa experiência nos outros nos questiona, a psicanálise contemporânea coloca como uma evidência que todos os sujeitos desejantes estariam relacionados com a bissexualidade. Não importa qual, claro, mas frequentemente acrescentamos “bissexualidade psíquica” para torná-la menos inquietante. Não se sabe ainda a que se opõe “psíquica”. Nesse caso, trata-se de dizer que não é uma bissexualidade orgânica? Ou que não é uma bissexualidade atuada? Que ela diz respeito a representações, elementos de identificação com os genitores dos dois sexos na crise edipiana que, quando tiver passado, tudo se acalmará: depois de hesitar a estar no erotismo ativo – mulher de sua mãe – a filha se decidirá, por um lado, a se identificar com alguns traços do pai e, por outro lado, a esperar de um homem que tenha os traços de seu pai – um filho que o pai não lhe deu.

Na clínica, esse esquema ideal é raramente encontrado: antes, temos a tratar, por exemplo, determinada mulher para a qual a negação dos componentes recalcados da sua sexualidade desaparece, não com seu marido, poderoso em todos os sentidos do termo, mas com um homem encontrado durante a análise e que ela diz ser muito mais “feminino”.

Eu evoquei longamente o tratamento de Laurence Desproges no livro Elogio dos acasos na vida sexual sem ter usado o termo “bissexualidade”. Ou ainda um menino de uns oito anos, fascinado pela elegância e pela doçura do pai, que o havia escolhido como filho predileto, e temente do poder da mãe, foi atingido como por um raio na sua história, quando o pai foi destruído pela doença durante o período da idolatria. A sexualidade dele ficou congelada nessa experiência, esperando sempre reencontrar nas mulheres esse acordo perfeito que ele conhecera, antes que tudo desaparecesse de repente. E como não encontra o que quer, ele se torna violento, buscando forçar o desejo do outro, não fazendo nenhuma concessão com relação a seus desejos, mas não suportando a própria violência. Entretanto, algumas relações sexuais que ele teve com homens tampouco foram satisfatórias. Nesse sentido, a bissexualidade seria uma hesitação na escolha do objeto e na posição subjetiva (“amar como um homem”, “amar como uma mulher”), que diz respeito a todo mundo, mas que alguns resolvem melhor que outros.

Aí estamos, portanto, de volta à questão da normatividade da escuta psicanalítica e a experiência da diferença dos sexos como experiência maior na história das nossas sexualidades. Mas nesse caso, então, não se pode propriamente falar de bissexualidade, seja psíquica, seja atuada. Há uma hesitação entre homossexualidade e heterossexualidade, que será vivenciada de maneira diversa.

Outros analistas insistem, ao contrário, que a bissexualidade deve ser entendida não unicamente a partir do Édipo e do reconhecimento mais ou menos assumido da diferença dos sexos. Ela seria um componente pré-edipiano, que merece o nome de sexualidade, desde que ampliemos o conceito de pulsão sexual para um tipo de relação na qual nem a polarização por um objeto total diferenciado, nem por um objeto pulsional substituível (quer dizer, do qual podemos fazer o luto) não domine o desejo em formação.

Bissexualidade remete, então, ao que Freud denomina um desejo indistinto e que Melanie Klein chama “pais combinados”. A diferença da perspectiva precedente é que a hesitação, aqui, pode dar oportunidade para uma elaboração in situ dessa dimensão do desejo que não passa mais pelo Édipo, mas que pode encontrar vias de transformação específicas às experiências vividas: se uma mudança de regime do desejo pelo genitor do mesmo sexo não se produz in situ, não vemos como um outro tipo de desejo, aquele pelo pai, poderia transformá-lo.

Dessas duas posições eu tomarei alguns exemplos dentro dos trabalhos recentes de psicanalistas de língua francesa.

Jacqueline Schaeffer em Bissexualidade e diferença dos sexos no tratamento (2002) traz de volta a bissexualidade a uma predominância abusiva dentro do pensamento psicanalítico do modelo fálico, confundido desde o próprio Freud, com a diferença dos sexos. Ora, afirma com ardor Jacqueline Schaeffer, existe um além da fase fálica e mesmo da genitalidade, que, isoladamente, merece o nome de experiência da diferença dos sexos: é o acesso à violência necessária do ato sexual diferenciado que será capaz de separar homens e mulheres do maternal. A fase fálica não alcança a diferença dos sexos, que é uma experiência de separação. Podemos fazer essa justiça ao autor, pois quando Freud introduziu em 1923 a fase fálica, ele deixa bem claro que é porque a diferença entre masculino e feminino é impensável que “ter ou não ter” ocupa todo o espaço na evitação da diferenciação. Na verdade, lendo bem o texto A organização genital infantil, o que foi dito antes não se acomoda muito bem. Impensada na fase fálica, a diferença dos sexos bem poderia permanecer impensável, pois, em seguida, o menino, que ele toma como exemplo, em uma espécie de delírio defensivo insidioso, imagina todas as espécies de soluções para não se sentir demasiadamente ameaçado no seu prazer pela ideia de que o prazer só terá sentido em relação a outras pessoas que não tenham pênis. As meninas fizeram certamente algo mau para terem sido castradas, mas seguramente minha mãe terá um etc.

Até o fim do artigo, efetivamente, a diferença dos sexos continua impensável, porque é para “acalmar o jogo” que o adolescente, cuja mãe está grávida, elabora inconscientemente a seguinte teoria: “se são as mulheres que fazem os bebês, então, eu fico com meu pênis”. Nesse pensamento, percebemos que o maternal vem en lieu et place do feminino impensável e que a única determinação do masculino é o medo da castração. Freud não é Lacan, ele reconhece, pelo menos nesse texto, o enigma da diferença dos sexos, justamente porque todo o destino pulsional gira em volta dessa questão sem resposta. O enigma aqui não é biológico; ele mostra a insistência de uma questão que não tem resposta em termos de essência do feminino nem do masculino.

A “solução” da não relação sexual e das fórmulas da sexuação, em Lacan, consiste em esperar que os recursos de uma lógica atípica (aquela do todo e do não-todo fálico) permitam dar uma fórmula da diferença dos sexos, que toma o falo como único termo ao qual se referem diferentemente o masculino e o feminino.

Em Freud, a diferença dos sexos continua um enigma. As únicas respostas obtidas são defensivas, o que ele resume por “protesto viril” (expressão tomada de Adler) e por “medo da feminilidade”, que é, de fato, menos o medo de se fundir com o feminino em uma relação heterossexual do que o medo de ser penetrado, quer dizer, feminilizado pelo pai.

Mas Jacqueline Schaeffer (2000) crê poder dar uma solução positiva a essa questão da diferença dos sexos: só a experiência da relação sexual como violência afasta as defesas do Eu (moi) nos dois sexos que se diferenciam por isso. A astúcia desse pensamento é que, mesmo se ele recorre a uma experiência empírica (e exterior ao tratamento), é o efeito inconsciente dessa experiência que lhe dá seu valor e seu poder separador de nossas ilusões de completude bissexual.

O inconveniente dessa perspectiva é quando não compreendemos mais como uma análise pode permitir aceder a uma escolha do objeto homossexual, que validará um destino de pulsões de maneira tão satisfatória quanto a heterossexual. A análise não poderia ser uma pedagogia exaltada das relações heterossexuais.

Outro exemplo é o de Dominique Guyomard em L’effet-Mère (2010). Ela descreve clinicamente como a relação de uma filha com a mãe passa por uma crise que transforma a ligação passional, marcada menos pela indistinção do que por seu caráter insuportável, pela não distinção entre amor e ódio em uma relação sem que o pai simbólico seja agente da transformação. De maneira semelhante, em L’Hysterique entre Freud et Lacan e em Les constructions de l’Universel, eu também tinha mostrado que as delícias e os impasses da relação das mulheres com o maternal criam transformações que colocam em primeiro plano nos tratamentos como na “vida” a questão da melancolia e não a “solução fálica”.

Eu cito esses poucos exemplos pela seguinte razão: a crítica da solução fálica foi guiada em grande parte pelos movimentos gays. Judith Butler afirmou em Gender Trouble (1990) que a “melancolia do gênero” está ligada à impossibilidade de um trabalho de luto concernindo os amores incestuosos pelo genitor de mesmo sexo. Isso porque a homossexualidade primária não poderia ser reconhecida pelos sujeitos desejantes em uma sociedade heterocentrada. Se quisermos discutir de maneira útil com os teóricos do gênero, teremos que nos referir às múltiplas elaborações das psicanalistas mulheres, feitas durante os anos em que eles formularam as críticas da psicanálise, pois foram as mulheres que puseram em primeiro plano a questão da melancolia. Entretanto, não o fizeram da mesma maneira: a plasticidade, que especifica desde Freud as pulsões como pulsões sexuais, não é a sociabilidade do gênero.

Resta disso que, de um lado, as críticas concernentes ao falocentrismo e o estatuto tido como regressivo das homossexualidades na psicanálise são frequentemente justificados e, de outro lado, que é decisivo mostrar quais são, para a experiência da transferência, os destinos das pulsões que transformam essa espécie de melancolia, pelos quais o feminino pode se constituir. Essa maneira eu propus chamar “a imaginação do pior” (As construções do universal) e sugeri que ela destaca mais o registro da sublimação que do recalcamento.

 

Conclusão

Dizemos frequentemente que no inconsciente é a bissexualidade que reina, como são testemunhos todos os mitos de todas as culturas e que a psicanálise oscila entre reconhecer o desdobramento dos mitos individuais da bissexualidade do qual vivem todos(as) os(as) neuróticos(as) e esperar que a transferência, os colocando em dia, permita que façam o luto.

Eu espero ter demonstrado antes que o conceito de bissexualidade não é estável, nem indispensável. A bissexualidade está generalizada como vivência na história da sexualidade e leva à pluralidade necessária de nossas experiências infantis. Eu me pergunto então se esses paradoxos em relação à bissexualidade não podem ser levados de novo, conceitualmente, ao contraste entre o fato de que escolhas sexuais e a posição subjetiva representem a determinação de nosso destino sexuado, quando, ao mesmo tempo, a ideia de uma bifurcação nas nossas escolhas recorre à contingência, decisiva mas não determinada de antemão, dessas mesmas escolhas. Daí meu título: Deve-se falar de bissexualidade ou de contingência na determinação de nossos destinos pulsionais? O próprio termo “destinos pulsionais” (Triebschicksale) como dizia Freud, traz em si esse paradoxo: O que é mais determinado do que um destino? E, no entanto, como pensar que o tempo se introduz nas transformações que permite a gramática das pulsões assim como as substituições dos objetos das quais Freud fala?

 

Referências

BUTLER, J. Gender Trouble, Feminism and Subversion of Identity (1990). New York: Routledge, 1999.         [ Links ]

BUTLER, J. Sexualités, genres et mélancolie. S’entretenir avec Judith Butler. Paris: Campagne Première, 2009.         [ Links ]

FLIESS, W. Bisexualité et différence des sexes, Masculin et feminin. Nouvelle Revue de psychanalyse, n. 7, 1973. Editada em livro pela Gallimard, p.2551-273. (Collection Folio Essais, n. 359).         [ Links ]

FREUD, S. Gesammelte Werke, Band XII, p. 222. Tradução da autora. Oeuvres complètes, tome XV, p. 143.         [ Links ]

FREUD, S. Gesammelte Werke, Band XVI, S. 99. Tradução francesa sob a direção de J. Laplanche. Oeuvres complètes, tome XX, p. 5.         [ Links ]

FREUD, S. Lettres à Wilhelm Fliess, n. 285, 23 jul. 1904. Paris: PUF, 2006. p. 583.         [ Links ]

SCHAEFFER, J. In: Bisexualité, Subjectivité, Bisexualité et différence des sexes dans la cure, Topique Revue Freudienne, Paris: Ed. L’Esprit du Temps, 2002/1 (n. 78), p. 21-32.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
29, Place du Marché St. Honoré
75001 Paris
E-mail: mdm01paris@aol.com

Recebido em: 01/10/2013
Aprovado em: 20/10/2013

 

 

Sobre a autora

Monique David-Ménard
Psicanalista, com formação conjunta em filosofia e psicanálise. Doutora em psicopatologia clínica e psicanálise, sob a orientação de Pierre Fédida (1978), Universidade de Paris 7. Doutora em filosofia, sob a orientação de Jean-Marie Beyssade (1990), Universidade de Paris 4/Sorbonne-nouvelle. Membro da Escola Freudiana de Paris (1979-1980), do Centro de Formação e Pesquisa Psicanalítica (1982-1994) e da Sociedade de Psicanálise Freudiana desde 1994. Títulos e funções atuais: psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise Freudiana; professora emérita de cadeiras superiores; orientadora de pesquisa da Universidade Paris-Diderot, Escola de Pós-Graduação. Membro da Rede Internacional de Mulheres Filósofas, da UNESCO. <winmail.dat>.

 

 

1Título original: Faut-il dire bisexualité ou contingence dans la sexuation?
2Como esta tradução em francês não é elegante, aqui vai o texto alemão: Das stärker ausgebildete, in der Person vorherrschende Geschlecht habe die seelische Vertretung des unterlegenen Geschlechtes ins Unbewusste verdrängt. Der Kern des Unbewussten, das Verdrängte, sei also bei jedem Menschen das in ihm vorhandene Geschlechtliche (G.W., v. XII, p. 222). “O sexo que encontrou sua forma mais desenvolvida, e que domina uma pessoa, recusou no inconsciente a representação no âmago do sexo subordinado.”