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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte June 2014

 

ARTIGO

 

A realidade desde Freud

 

Reality since Freud

 

 

Paulo Eduardo Viana Vidal

Universidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando como ponto de partida a ampla repercussão nos meios de comunicação do ato falho cometido por um político brasileiro, o artigo objetiva demonstrar que a realidade desde Freud não é a mesma, pois nossa cultura comporta desde então a noção de que o ato falho, conflito paradigmático entre enunciado e enunciação, traz uma verdade e se endereça ao Outro.

Palavras-chave: Ato falho, Realidade, Sujeito, Verdade, Outro.


ABSTRACT

Taking as its starting point the case widely reported in the media of the parapraxis committed by a Brazilian politician, the article aims to demonstrate that reality after Freud is not the same as before, because our culture comprehends since then the idea that the freudian split, paradigmatic conflict between statement and enunciation, brings a truth with it and addresses itself to the Other.

Keywords: Parapraxis, Reality, Subject, Truth, Other.


 

 

Em 2005, em plena sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que investigava o chamado “mensalão”, foi perguntado a um dos deputados se ele se considerava inocente da acusação que lhe era feita de ser o capo, o arquiteto do chamado “mensalão”, esquema de distribuição de propinas a parlamentares em troca de apoio político nas votações congressuais. À guisa de resposta, o ilustre parlamentar declarou “eu sou inocêncio”, em vez de “eu sou inocente”.

Embora o parlamentar não tenha se deixado representar por esse ato falho, testemunho da sua divisão subjetiva, um dos deputados presentes acusou a recepção da mensagem: se pôs a declamar o poema E agora, José?, de Carlos Drummond de Andrade. A derrapada tampouco escapou à grande imprensa e à internet, na qual foi amplamente disseminada via blogs, que proliferavam na época. Um bom exemplo dessa repercussão é o artigo do colunista H. Neder, da Folha de São Paulo (12 set. 2005), no qual lemos que, em “lapso exemplar como revelação”, o congressista em causa

[...] comparou-se a Inocêncio Oliveira, do PFL, aquele que foi acusado por José Genoíno de ter usado “o prestígio do seu mandato”, num “procedimento imoral”, ao solicitar ao Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) a perfuração de dois poços artesianos, numa fazenda e numa revenda de motos, ambos de sua propriedade.

Em suma, logo no dia seguinte o ato falho foi celebrado pela mídia como um “incidente psicanalítico”. Em nosso entender, tal rubrica atesta como a referência freudiana integra um dos discursos constitutivos da realidade, da nossa realidade – o discurso midiático – para o qual a psicanálise tem um valor de uso de referência cultural, subordinada evidentemente às exigências próprias a tal discurso. Em consequência, a realidade desde Freud, o discurso desde Freud compreenderia dois polos: de um lado, a existência do discurso psicanalítico, discurso ao qual sujeitos podem recorrer para tratar na sua particularidade os efeitos do mal-estar na civilização; de outro lado, haveria em outros discursos (político, midiático no nosso exemplo) a insistência de referências psicanalíticas, certamente empregadas de acordo com a ambição própria a esses discursos.

Entre os dois polos que acabo de mencionar, o sujeito em análise e a manchete “incidente psicanalítico”, nos deparamos, todavia, cotidianamente com uma ampla franja de sujeitos que, bem alojados no discurso que veiculam, quando cometem um ato falho são capazes de denotar que não são de todo cegos quanto à própria enunciação, posto que capazes de reconhecer, na interferência de Outro discurso em seus ditos, um efeito de verdade.

Levando em conta as considerações que acabamos de tecer, não nos parece demasiado atrevimento formular a hipótese, hipótese que certamente necessita maior demonstração, de que a realidade desde Freud comporta essa função de perturbação do enunciado pela enunciação cujo paradigma é o ato falho, função que torna o sujeito senão um analisante em potencial, pelo menos um sujeito inclinado à histericização, à produção de atos falhos ou acting outs (no sentido de colocar em cena, mostrar aquilo que não é ouvido pelo Outro). De fato, é notório que basta alguém se declarar analista ou mesmo psi em certos ambientes, numa reunião social, por exemplo, para que os atos falhos comecem a pulular entre os convidados, discreta ou espetacularmente, como se a invenção freudiana houvesse instituído na cultura um Outro do endereçamento, Outro que comporta o analista.

Isso não é de estranhar, visto que afinal um analista se detém no que falha, nos tropeços da fala. Surgida do fracasso da medicina do século XIX diante do sintoma histérico, a psicanálise se interessa pelo que outros saberes produzem como resto: sintoma, ato falho, delírio, etc. Respondendo à possível crítica de que a psicanálise perderia tempo pesquisando trivialidades em vez de enfrentar questões de peso e urgentes, Freud argumentou:

É verdade que a psicanálise não pode vangloriar-se de jamais haver-se ocupado de trivialidades. Pelo contrário, o material para a sua observação é geralmente proporcionado pelos acontecimentos banais, postos de lado pelas demais ciências como sendo bastante insignificantes – o refugo, poderíamos dizer, do mundo dos fenômenos. Porém, não estão os senhores fazendo confusão, em suas críticas, entre a vastidão dos problemas e a evidência que aponta para eles? Não existem coisas muito importantes que, sob determinadas condições e épocas, só se podem revelar por indicações bastante débeis? (FREUD, [1916-1917] 1976, p. 41).

Conforme assinala Clavreul (1983), para a racionalidade objetivante dessa medicina do século XIX, a qual se constituiu historicamente numa aliança com o discurso da ciência, o sintoma é um signo que representa alguma coisa – uma doença localizável no organismo – para o discurso da medicina. Tornado signo de alguma coisa, o sintoma não pode mais representar a verdade de alguém, um sujeito, para aquele que o escuta.

Por isso, contemporâneo da transformação cada vez maior dos laços sociais pelo discurso da ciência, o analista não dialoga com os anjos nem nada espera dos ideais e dos mestres; ele se orienta antes pelo que a ciência constitutivamente produz como excluído: esse sujeito que emerge nas falhas do discurso. Dada uma formação do inconsciente, Freud supõe nela um sujeito, como fica evidente nessa obra inaugural que é a Interpretação de sonhos (1900). É o passo radical da modernidade de Freud: enquanto os antigos supunham que o sonho trazia uma mensagem dos deuses, cumprindo, portanto, uma função oracular, o inventor da psicanálise supõe que, no sonho, se realiza o desejo de um sujeito que não sabe o que diz nem aquilo que quer.

Mas, em última instância, por que o sujeito comete atos falhos, tem sintomas, produz sonhos? Segundo Freud, é porque lhe faltam palavras para dizer o sexo. É no lugar desse vazio que o sujeito produz sintomas. Para Freud, o sujeito não dispõe do conhecimento que o instinto provê ao animal, mas de pulsões cujos objetos e metas não se acham dados de antemão, de tal forma que o sujeito necessita de uma suplência – o famoso complexo de Édipo – para constituir a si e aos seus objetos. Que a realidade do inconsciente seja sexual implica que a relação do sujeito com o sexo é da ordem de um saber impossível, escapando de toda apreensão pelo conhecimento, cognitivista e, consequentemente, de qualquer subordinação à norma social e cultural.

Em poucas palavras, a invenção psicanalítica pôs em cena que o modo de gozar dos sujeitos, que não é programado pela natureza, depende de uma montagem significante, de uma ficção, de um semblante. Nesse sentido, a psicanálise integra o movimento da modernidade, o qual evidencia o caráter artificial, construído, de semblante de todas as coisas: do laço social, das crenças, dos fundamentos pretensamente inconcussos e absolutos – Deus, pátria, família, revolução, etc. O Outro freudiano não é mais habitado pelos deuses do destino, tal como ocorria na tragédia antiga. Frente a esse Outro inconsistente, incompleto, compete a cada sujeito efetuar uma nomeação, sempre sintomática, falha, do seu vazio estrutural.

Como se nota, lemos Freud não sem Lacan, cujo procedimento de leitura no seu famoso retorno a Freud justamente coloca em tensão o texto de Freud com o texto da atualidade, as perguntas da atualidade. Por isso, é um comentário vivo que opera ao mesmo tempo dentro e fora do texto de Freud. Desde fora do texto da tradição porque o texto da atualidade ainda não está dito, estará sempre por vir; desde dentro, porque dependerá do leitor dizer, a partir do seu acidentado hoje, com as palavras do Outro-texto, o que se encontra sem palavras, sem cair na superstição de que isso já tenha sido dito. Ou seja, o que surge como enigma na leitura solicita do leitor um trabalho, a resolução do enigma em um novo texto, na escrita.

Tal operação de leitura empreendida por Lacan cuidadosamente evita dois escolhos, dois descaminhos: o primeiro é a leitura “progressista”, para a qual o texto fundante, o texto de Freud, se acha superado; em consequência, procura saltar fora, na direção de outro campo. Contudo, é um salto que não implica nenhuma travessia, foi o caminho tomado por certos pós-freudianos, cuja esterilidade é gritante: na tentativa de incluir a psicanálise na psicologia geral, a psicologia do eu americana, por exemplo, retirou toda a virulência da noção freudiana de inconsciente, o descentramento do eu que implica. O segundo descaminho, fundamentalista, é a superstição de que há um texto original, que fala a verdade sobre a verdade, devendo ser guardado intacto na sua intraduzibilidade, o que faz do texto de Freud um texto oracular, legiferante.

As duas posições guardam em comum o fato de cancelarem o que o texto de Freud traz de enigmático, porque é um texto não oracular, um texto incompleto, que nos interroga desde as suas lacunas, solicitando do leitor de hoje que o decifre produzindo um novo texto, o qual reinscreva de maneira inédita o dito primeiro de Freud, formalizando, assim, um avanço sobre o real. Pois a leitura que tensiona o texto da tradição com o texto da atualidade cumpre uma função essencial, necessária à sobrevivência da psicanálise: servir de dobra, fazer circular o texto entre o público restrito (analistas, analisantes) e a opinião pública, de tal modo que subsista a função de endereçamento do sintoma ao Outro, que este não seja reduzido ao bioquímico, por exemplo. É preciso, para tanto, que os analistas levem em conta a seguinte afirmação de Lacan:

O sentido do que disse Freud pode ser comunicado a qualquer um, porque, mesmo dirigido a todos, cada um estará interessado – e basta uma palavra para fazer senti-lo: a descoberta de Freud questiona a verdade, e não há ninguém que não seja pessoalmente afetado pela verdade (LACAN, [1956] 1998, p. 406).

 

Referências

CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense, 1983.         [ Links ]

FREUD, S. A interpretação de sonhos (1900). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 4).         [ Links ]

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900-1901). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5).         [ Links ]

FREUD, S. Conferência I: Introdução. In: ______. Conferências introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) (1915-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 25-33. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 15).         [ Links ]

FREUD, S. Conferência II: Parapraxias. In: ______. Conferências introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) (1915-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 35-48. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 15).         [ Links ]

LACAN, J. A coisa freudiana (1956). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 402-437.         [ Links ]

NEDER, H. Cansei de Dirceu (12/09/2005). In http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/diariodepressaoefama/ult2855u23.shtml

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Tupis, 292 - São Francisco
24360-400 - NITERÓI/RJ
E-mail: paulovidal@id.uff.br

Recebido em:15/09/2013
Aprovado em: 20/03/2014

 

 

Sobre o autor

Paulo Eduardo Viana Vidal
Professor doutor associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).