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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte jun. 2014

 

ARTIGO

 

Religião ou Ilusão? O embate Freud x Pfister

 

Religion or illusion? Freud x Pfister clash

 

 

Paulo Roberto CeccarelliI; II; III; IV; V; VI; Samuel FrancoVI

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais
IISociété de Psychanalyse Freudienne
IIIAssociação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
IVPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
VUniversidade Federal do Pará
VIUniversidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto propõe um embate entre Freud e Pfister acerca da psicanálise e da religião. Se, para Freud, a religião se iguala a um sonho e a uma ilusão, na busca do homem pelo pai protetor, para Pfister, em A ilusão de um futuro, o “pastor das almas” questiona o esquema freudiano da religião. Para Pfister, o pensamento realista e o desejo não são ilusões e devem conviver com as muitas dimensões da vida, inclusive com a ciência. Para Freud, a ilusão sempre será necessária para acolher nosso desamparo constitutivo. Os autores concluem que, para a psicanálise, o importante é compreender os motivos latentes de nossas crenças e descrenças religiosas. Todo discurso, incluindo a religioso, é um discurso humano que, independentemente de ser neurótico ou sublime, está submetido à determinações inconsciente.

Palavras-chave: Religião, Ilusão, Psicanálise, Freud x Pfister.


ABSTRACT

The text proposes a clash of Freud and Pfister concerning psychoanalysis and religion. Whereas for Freud religion equals to dream and illusion, for Pfister, based on his text “The illusion of a future”, the “Shepherd of Souls” questions Freudian scheme of religion. For Pfister, realistic thinking and desire are not illusions and must live along in different dimensions of life, including science. For Freud, illusion will always be needed to accommodate our constitutive helplessness. The authors conclude that for psychoanalysis what is important is to understand the underlying reasons of religious beliefs and disbeliefs. Every speech, including the religious one is human. Regardless of being neurotic or sublime, it is subjected to unconscious determinations.

Keywords: Religion, Illusion, Psychoanalysis, Freud x Pfister.


 

 

A psicanálise em si não é religiosa
nem antirreligiosa,
mas um instrumento apartidário
do qual tanto o religioso como o laico
poderão servir-se, desde que aconteça tão somente
a serviço da libertação dos sofredores.

FREUD, [1909] 1963, p. 47.

 

Introdução

A religião sempre foi um fenômeno social de grande importância. É inegável sua influência na vida e no comportamento moral do homem. Se a humanidade foi evoluindo com o passar do tempo, a religião foi sofrendo mudanças relativas à sua inserção social, de acordo com o desenvolvimento histórico-social em que está inserida. Em todo fenômeno religioso, encontramos referências aos fundamentos últimos do homem quanto à origem, quanto ao fim e quanto à profundidade (ZILLES, 1991). A problemática religiosa marca o homem em sua raiz ontológica. Toda religião sempre tentou responder às questões a respeito do sentido da vida e da morte.

Em suas inúmeras expressões, a religião se manteve resistente aos desafios do desenvolvimento e da modernidade ao longo da história da humanidade. Podemos observar que a religião, no século XXI, ainda exerce uma forte influência na vida das pessoas. Observamos também uma explosão das mais diversas manifestações religiosas e um enorme envolvimento das pessoas em relação ao sagrado, que vem deixando sua marca no comportamento dos indivíduos (CECCARELLI, 2012).

A religião, e a experiência religiosa, sempre ocuparam um espaço considerável dentro do pensamento freudiano. Entre 1914 e 1939, Freud dedicou uma parte significativa de seu trabalho a questões ligadas à religião. E ainda hoje as posições freudianas sobre a religião têm sido palco de inúmeras discussões.

O diálogo entre psicanálise e religião nunca foi uma tarefa simples. Os preconceitos, o medo e, quem sabe, também mecanismos inconscientes, impossibilitaram encarar o tema com coragem para escutar aquilo que a outra parte dizia. Os devotos de alguma religião, muitas vezes se sentem constrangidos e ameaçados diante da psicanálise. Embora afirmemos que houve um grande avanço nesse diálogo, ainda há receio e surdez. Universidades e templos em algumas ocasiões se furtam de conversar sobre a temática (MORANO, 2008).

O embate entre psicanálise e religião poderia ter trilhado outros caminhos caso não houvesse acontecido instigante e inflamado encontro entre Freud, um “judeu sem Deus”, e Pfister, homem de uma fé cristã profunda e entusiasta pela psicanálise. Apesar das diferenças quanto à religião, Freud e Pfister mantiveram, durante quase trinta anos, uma amizade tão estreita a ponto de frequentarem a casa um do outro, trocando presentes e confidências, além de uma vasta correspondência.

Expor um breve pensamento desses pensadores, mostrando seus efeitos e impasses acerca da psicanálise e religião é o que tentamos desenvolver neste artigo. Nossa intenção não é dar um veredito final sobre este assunto tão delicado e profundo, mas apontar uma possível direção, abrir novas possibilidades de leitura e construções teóricas na área da psicanálise e religião.

 

Freud, religião e ilusão

A relação entre neurose e religião sempre esteve presente nos textos freudianos desde o primeiro momento. A primeira publicação de Freud sobre o tema foi em 1907 com o titulo Atos obsessivos e práticas religiosas. Já a relação entre religião e o sonho se manifestou um pouco mais tarde (MORANO, 2003). A partir do momento em que Freud foi desenvolvendo suas teorias, sua visão perante a realidade foi ficando cada vez mais pessimista e dramática. A religião, para ele, foi se moldando como no modelo do sonho: um modo de realização de desejos, ou seja, o indivíduo criaria para si uma realidade imaginária, e a partir daí surgiria a ideia de ilusão, frente à realidade concreta.

Porém, a partir do texto Reflexões para tempos de guerra e morte (FREUD, 1915), é que a ilusão vai se desenrolar como uma oposição à realidade da vida. Essa ilusão se vê ligada ao conceito de decepção, pois nesse texto Freud nos diz que o homem e a realidade em si, na verdade, não correspondem ao que pensávamos que fossem. Nós, falsamente, a colorimos com a força do desejo.

Em sua obra posterior, O futuro de uma ilusão, Freud (1927) faz uma severa crítica à religião. Ele inicia o texto questionando o valor das ideias religiosas e acreditando que, num futuro próximo, com o avanço das ciências, as pessoas tratariam a religião como uma ilusão, semelhante aos contos de fadas com que hoje lidamos.

Freud (1927) acreditava que em geral o homem prefere viver na ilusão a viver na realidade. Viver na ilusão o afastaria das dificuldades, das angústias e dos paradoxos trazidos pela vida, refugiando-o em um mundo imaginário, no qual seus desejos seriam satisfeitos, e nada seria empecilho para sua felicidade. Nessa perspectiva, a religião ofereceria a promessa de felicidade, porém uma promessa ilusória, um sonho, já que este é representado pelo autor como uma tentativa de realização de desejos. Ambos buscam prazer e satisfação, negando qualquer limite ou barreiras impostas pela realidade. Nesse sentido, ainda de acordo com Freud (1927), a religião poderia igualmente ser comparada a um delírio, pois descartaria a realidade que a crença religiosa não consideraria muito.

Entretanto, é importante compreender que a ilusão, para Freud (1927), não significa erro nem necessariamente algo falso. É possível que a ilusão possa se transformar em verdade, porém não há nenhuma base racional para crer que ela seja ou venha a ser.

Podemos chamar de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor a verificação (FREUD, [1927] 1996, p. 40).

A formação da religião seria a reação do homem diante da nostalgia do pai protetor (FREUD, 1927). O sujeito, em seu desamparo, retrocede a uma situação infantil a fim de encontrar novamente a presença do pai protetor, forte e poderoso que irá sempre salvá-lo.

A religião oferece, então, uma contribuição poderosa para a civilização, porque controla as pulsões destrutivas e antissociais, de modo que sem ela, o homem se aniquilaria (FREUD, 1927). Porém, a religião contribuiu também para reprimir desejos sexuais e outros desejos profundos do sujeito. Então, com o objetivo de fazer o homem um sujeito mais harmônico e feliz, a religião falha gerando mal-estar e insatisfação na civilização.

Em sua obra O mal-estar na civilização Freud (1930) diz que o Eu tem tendência a afastar tudo o que causa desprazer ao indivíduo, tentando, assim, evitar o sofrimento. Todavia, é mais fácil o homem experimentar o sofrimento do que a felicidade, porque a vida é repleta de paradoxos e situações angustiantes das quais não temos controle. Diante dessa realidade, tendemos a criar uma providência divina, que é o protótipo da figura do pai. Um pai compreensivo que irá nos proteger do mundo hostil. Essa medida, no entanto, é paliativa e tem influência no psiquismo humano, assim como as fantasias e as drogas. Reiterando, as necessidades religiosas têm origem a partir do desamparo infantil. O adulto, a fim de reencontrar “aquele” pai que lhe dava proteção e amor, irá recorrer à religião. Para Freud, a religião, enfim, seria:

O sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que, por outro lhe garantem que uma providencia cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui (FREUD, [1930] 1996, p. 82).

Como a realidade sempre lhe causa sofrimento, o indivíduo rompe com ela e cria para si uma nova realidade. Freud considera a importância da ilusão em nossa vida para diminuir um pouco o nosso sofrimento (CECCARELLI, 2013).

Nem a ciência nem religião tornaram o homem mais feliz, entretanto a ciência contribuiu de certa forma para amenizar o seu sofrimento e melhorar sua qualidade de vida. Mas a religião contribuiu no sentido de fortalecer o homem para suportar a vida, já que a evolução da civilização não o livrou das dificuldades e dos paradoxos da existência. Por outro lado, Freud (1930) critica a religião, no sentido de que ela restringe a escolha do sujeito em encontrar seu próprio caminho. A religião impõe ao sujeito um meio próprio para obter felicidade e se proteger contra o sofrimento, e as pessoas que foram educadas para uma formação religiosa não suportariam viver sem a presença dela.

Em A questão de uma Weltanschauung, Freud ([1933] 1996) mais uma vez afirma que qualquer visão religiosa é incompatível com a visão científica, o que torna inviável a possibilidade de um diálogo entre as duas. Entre a arte, a filosofia e a religião, Freud ([1933] 1996) considera a religião a força mais perigosa, já que exerce uma influência direta na grande massa da humanidade e age sobre as emoções humanas.

Novamente, Freud ([1933] 1996) afirma que a religião tem essa força, pois ela se originou a partir do desamparo da criança, desamparo que permanece no adulto (desejo e necessidade infantis de proteção).

Freud ([1933] 1996) alega que as doutrinas religiosas não se sustentam diante dos questionamentos científicos. Para ele é evidente a inexistência de um Deus que protege o homem e conduz todas as coisas a um final feliz; na prática não se constata a ideia de que a virtude é compensada, e o mal é punido.

Freud ([1933] 1996) mantém a esperança de que num futuro a razão e o saber científico possam ter domínio sobre a vida mental do homem, ressaltando o perigo que a religião exerce sobre a evolução da humanidade, que a razão se sustenta nos desejos ideais dos seres humanos e não dá margem para questionamentos e discussões.

Pfister ([1928] 2003) discorda de Freud nesse ponto afirmando que a religião não é hostil à razão e aos seus questionamentos, uma vez que os grandes avanços da teologia se obtiveram através de seu rigoroso raciocínio realista. Pfister concorda com Freud em alguns pontos, por exemplo, que a religião pode servir como proteção contra as neuroses, bem como entender que sua ortodoxia leva a uma neurose compulsiva. Para Pfister ([1928] 2008), se a fé fosse algo falso, ela teria que ser combatida apesar de suas realizações: “[...] é melhor ir para o inferno com a verdade que ao céu à custa de mentiras” (PFISTER, [1928] 2003, p. 53).

Enfim para o autor, o problema não está na religião em si, mas, antes, na forma como a devoção é construída. Para Pfister ([1928] 2003) uma religião esclarecida só pode surgir através de um diálogo entre fé e ciência, a partir de uma junção entre o pensamento de desejo e o pensamento realista, na qual, entretanto, o conteúdo do pensamento do real não pode sofrer nenhuma falsificação da realidade e de suas correlações.

 

Pfister, psicanálise, religião e ilusão

Na primeira parte de A ilusão de um futuro, ensaio escrito em resposta a O futuro de uma ilusão, de Freud ([1927] 1996), Pfister ([1928] 2003) discute o conceito de ilusão. Sob a ótica psicanalítica, baseando-se em Winnicott e no conceito de objeto transicional, Pfister ([1928] 2003) mostra um valor positivo da ilusão diante da tarefa de manter inter-relacionadas as realidades interna e externa. Pfister ([1928] 2003) acreditava que a ilusão pode coexistir com pensamentos perfeitamente adaptados à realidade. Ele cita o exemplo de Freud ([1927] 1996) a respeito da ilusão quando fala de Cristóvão Colombo no descobrimento das Índias. Pfister ([1928] 2003) diz que a ilusão de Colombo foi compatível com seus exatos conhecimentos geográficos, que se ligava a um projeto que abriu um novo futuro. Para o autor, o pensamento realista e o desejo podem coexistir e, de fato, se veem obrigados a conviver em muitas dimensões da vida, incluída a própria ciência.

Em relação à obsessão neurótica, segundo aspecto abordado, por Pfister ([1928] 2003) concorda com Freud que a experiência religiosa em várias ocasiões esteve profundamente aparentada com a neurose obsessiva. Contudo, essa relação somente ocorreu nas primeiras etapas do desenvolvimento religioso e nos momentos em que a ortodoxia religiosa se fez particularmente intensa na vida dos indivíduos e coletividades. Portanto, para Pfister ([1928] 2003) a ortodoxia religiosa não representa o essencial da religião. O autor relata que, a partir de sua própria dinâmica, a religião avança excluindo pouco a pouco seus elementos imaturos. Na religiosidade evoluída, a compulsão obsessiva é superada pela introdução da dinâmica do amor, que supera a lei e culpabilidade. Dessa forma, Pfister ([1928] 2003) diz que a representação paterna se torna livre de qualquer fixação edipiana através de uma proposta que supera todo tipo de heteronomia. O que se espera de um sujeito é que ele se assinta à sua própria essência e à sua verdadeira determinação, num espírito de liberdade superando, assim, a representação de Deus determinada pelas fixações edipianas que, pela força da ambivalência afetiva, tivesse fatalmente desembocado num mecanismo de negação do pai ou negação do filho. Para o autor, Freud se equivoca ao não reconhecer as manifestações mais elaboradas da religião, pois são etapas pré-religiosas que criam as obsessões neuróticas, conduzindo a representações e rituais que têm esse formato.

Em um outro momento, Pfister ([1928] 2003) se debruça sobre a problemática da religião como criação imaginária do desejo. O autor reconhece a transformação do desejo nas entranhas das representações religiosas, contudo advoga que esse fenômeno não é exclusivo da religião:

E será o patrimônio exclusivo da religião entre desejar e ser? Ou será que haveria na religião e na ciência, sim, até na arte e na moral o recalcamento posterior do pensamento do desejo pelo pensamento real, e a mobilização do pensamento real pelo pensamento do desejo formariam o ideal, ao encontro do qual o desenvolvimento mental se dirige de modo ofegante, esperançoso e sempre de novo penosamente decepcionado? (PFISTER, [1928] 2003, p. 26).

O desejo se faz presente em toda criação humana seja ela imaginária ou não, inclusive na ciência que Freud procura situar à margem. Pfister ([1928] 2003) diz que a partir de Jesus os valores religiosos e morais não emergem como um substituto oculto e regressivo de desejos sexuais e agressivos insatisfeitos como se poderia observar na visão do céu para o islâmico, na qual a renúncia às pulsões é recompensada com o paraíso, ou como na alucinação, na qual o desejo emerge à margem da realidade. Contudo, dependerá da maturidade pessoal articular desejo e realidade com sabedoria. E é assim que o autor encontra na figura de Jesus quando o mostra articulando representações que são expressões da interioridade (a mensagem das bem-aventuranças e do amor) assim como todos os mandamentos de Moisés. Portanto, um desejo, seria possível dizer, que sabe se estruturar e se organizar atendendo as demandas e as exigências da realidade.

Por outro lado, o problema está em saber se a imaginação simbólica também está nas entranhas da ciência, até como fonte primeira para seu desenvolvimento. Seus conceitos, afirma Pfister ([1928] 2003), como (causa, ação, força, lei), com efeitos estão embriagados de um necessário antropomorfismo. Contudo, o autor questiona por que a teologia deveria se apresentar como uma exceção a essa regra. Ainda relata que, não sem dor e não sem dificuldades, a religião soube assimilar Copérnico, Galileu e Darwin. Pfister ([1928] 2003) nesse ponto questiona a concepção de Freud de que a religião é inimiga do pensamento.

Para Pfister ([1928] 2003) os grandes pensadores não encontraram nenhuma incompatibilidade entre sua fé, a filosofia e seus afazeres científicos. Para exemplificar, relata um número significativo de físicos, químicos, historiadores, filósofos e matemáticos que souberam lidar com sua fé enquanto estavam em seus laboratórios. Chega ainda a frisar que Einstein, Becher e Driesch chegaram a grandes questões religiosas por meio de suas atividades cientificas. Diante dessa situação, o autor não vê sentido na afirmação de Freud que uma educação sem religião levaria o sujeito a um adicional de inteligência. Esse tipo de educação já ocorreu em massa nos círculos comunistas, e não houve entre os educandos um desenvolvimento mais vantajoso das bases de raciocínio.

Pfister ([1928] 2003) confronta Freud também em relação à religião como proteção da cultura. Ele não concorda com Freud que a religião seja freio para as pulsões nem consolação para as inúmeras renúncias às quais a civilização deve recorrer para manutenção de si mesma. A religião, para Pfister, deve tratar de sensibilizar e transformar os homens diante uma civilização em plena decadência. Nesse sentido, a religião é convocada para ser o fundamento de uma crítica da cultura: sua função, idealista e não coercitiva, é ajudar os homens a vencer as aflições reais da vida abrindo caminho para novas formas mais elevadas tanto na moral quanto na ética na vida social.

“O cientificismo de Freud”, nome dado por Pfister ([1928] 2003) a uma parte da obra do psicanalista, inicia um questionamento da posição de Freud em relação à ciência como salvadora da humanidade. Pfister ([1928] 2003) declara que Freud na verdade cai na mesma ilusão que tanto critica, quando substitui a religião pela ciência. O otimismo de Freud pela ciência e sua posição positivista, sustenta Pfister ([1928] 2003), não tem nada de novo: seria uma ilusão acreditar que a ciência está alheia a qualquer tipo de metafísica, assim como é uma ilusão acreditar na “experiência pura”. Nossas categorias mentais estão sempre presentes invadindo todo tipo de experiência.

Seria bastante duvidoso, continua Pfister ([1928] 2003), que a ciência venha proporcionar maior felicidade ao sujeito. Parece que a partir do que coloca a serviço do dinheiro e suas causas, a ciência se entrega a todo tipo de paixão e crueldade.

Na verdade, Freud ([1927] 1996) prediz o fim da ilusão com o começo de outra quando defende que não poderíamos encontrar nada melhor que a ciência. Pfister ([1928] 2003) se pergunta como a ciência poderia explicar a beleza de uma sinfonia de Mahler. Como a ética pode se fundamentar em aparato cientifico se não é neutra? Pfister ([1928] 2003) declara que muitas de suas conquistas e aprendizados vieram da religião e da arte. A religião, por ter um valor poético e por seu sentido emocional da realidade, é também uma forma de educação que a ciência não pode suprir.

Pfister ([1928] 2003) conclui dizendo que a ilusão pode ser muito válida. A grande questão para religião será se libertar de qualquer forma de pensamento mágico, antropomórfico e elaborar um pensamento maduro, que tem em Deus a própria encarnação do amor.

Uma religião esclarecida só pode surgir do entrelaçamento harmônico entre fé e ciência, a partir de uma mútua interpretação entre o pensamento e desejo e o pensamento realista, na qual, entretanto, o conteúdo do pensamento do real não pode sofrer nenhuma falsificação da realidade e das suas correlações (PFISTER, [1928] 2003, p. 22).

A razão, em definitivo, tem um grande trabalho a realizar. Para isso, todavia, não será necessário anular ou matar o desejo (PFISTER, [1928] 2003).

 

Reflexões finais

Um dos pontos principais que Freud e Pfister despertaram em seus diálogos foi precisamente o conceito de ilusão. O pensamento realista e o desejo, para Pfister, devem conviver com as muitas dimensões da vida, inclusive com a ciência. Para Freud, a ilusão sempre será necessária para acolher nosso desamparo constitutivo (CECCARELLI, 2013).

O homem sempre distorceu a realidade quando ela não lhe agrada. Em alguma medida e em certas ocasiões, isso é necessário para que ele se sustente dentro de uma organização social. A ilusão, portanto, pode ser vista como uma questão de sobrevivência, e não apenas como um obstáculo para realidade (MORANO, 2008).

Ilusão e crença apresentam estruturas fundamentais para o psiquismo humano. Parafraseando Pontalis, Morano (2008) afirma que somente os mortos não creem. Talvez a crença mais forte seja que não se crê em nada. A crença, a ilusão, a realização de desejos estão implicados na maioria das vezes em nossas escolhas e nossas opções de vida.

Para a psicanálise, o importante é não discursar sobre a existência ou não de Deus, mas compreender os motivos latentes de nossa crença e nossa descrença religiosa. Sabemos que todo discurso inclusive o religioso é um discurso humano. Independentemente se neurótico ou sublime, está submetido às leis que a psicanálise demonstrou a partir do inconsciente (MORANO, 2008).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Paulo Roberto Ceccarelli
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E-mail: paulocbh@terra.com.br paulocbh@pq.cnpq.br
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Samuel Franco
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E-mail: samuelpsicologo@yahoo.com.br

Recebido em: 09/03/2014
Aprovado em: 20/03/2014

 

 

Sobre os autores

Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro da Société de Psychanalyse Freudienne (Paris). Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII. Pós-doutor por Paris VII. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Professor da PUC Minas. Professor da Pós-Graduação em Psicologia da UFPA. Professor do Mestrado Profissional de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência da Faculdade de Medicina da UFMG. Diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental (CESAME http://www.cesamebh.com.br). Pesquisador do CNPq.

Samuel Franco
Psicólogo. Especialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG.