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Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.67 Belo Horizonte jun. 2014

 

ENTREVISTA

 

Psicanálise e humor

 

Psychoanalysis and humor

 

 

Juliana Marques Caldeira Borges

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Entrevista de Pacha Urbano, criador das tirinhas As fantásticas traumáticas aventuras do filho do Freud, concedida a Juliana Marques Caldeira Borges, psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Pacha esteve em Belo Horizonte para o lançamento do livro O filho do Freud no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), com sessão de autógrafos, em 15 nov. 2013, às 18:00, na Serraria Souza Pinto.

 

 

Juliana: Pacha, como surgiu a ideia de escrever as tirinhas As fantásticas traumáticas aventuras do filho do Freud?
Pacha: Foi durante uma aula de Psicanálise e Educação, no ano passado, na faculdade onde curso Pedagogia. A professora passou uma cinebiografia sobre Freud, e ao final do filme pensei: “Deve ter sido uma droga ser filho do Freud”, porque um homem tão devoto ao próprio trabalho não teria muito tempo para compartilhar com a família, além, claro, de como lhe pareceriam óbvias todas as gracinhas de uma criança. E veio aquele estalo! Sempre levo comigo algum caderno de desenho e então rabisquei a que viria a ser a primeira tirinha da série. Nela o primogênito do Freud aparecia no consultório com uma toalha nas costas e uma cueca na cabeça, se mostrando para o pai como sendo o superego, essas coisas que as crianças fazem, e nós rimos, mas para o pobre Jean-Martin o resultado foi traumático.

 

 

Juliana: Você imaginava qual a repercussão que elas teriam?
Pacha: Não fazia ideia. Até hoje me surpreendo com a quantidade de gente que diz conhecer as tirinhas, ou mesmo o tráfego de curtidores na página do Facebook. A princípio publiquei uma foto do meu caderno com a tirinha rabiscada no meu perfil, para meus amigos, e a coisa foi compartilhada por uma porção de pessoas. Acabou que alguns meses depois um site de humor a republicou, sem qualquer crédito para mim, e isso me deixou preocupado. Como virava e mexia me pediam outras tirinhas, decidi fazer mais algumas dentro daquele mesmo clima da primeira e passei a publicá-las num tumblr, e então no Facebook, e foi aí que a coisa se proliferou de verdade. De 31 de maio do ano passado [2012], data da primeira tirinha publicada no Facebook, até hoje, toda terça-feira, e às vezes em outros dias da semana também, publico uma tirinha nova, que é compartilhada por centenas (algumas delas por milhares) de pessoas. Logo nas primeiras tirinhas eu fui convidado para participar de um simpósio de Psicanálise na UNESP de Bauru, além de editoras querendo publicá-las em livro. Era surreal para mim a velocidade com que as coisas foram se dando. A progressão é ainda maior porque elas são traduzidas por voluntários para outros três idiomas: inglês, francês e espanhol. Então é normal receber comentários de gente de outros países, pedindo atualização das tirinhas. Soube também que alguns professores e alunos usam as tirinhas em seus trabalhos. E pensar que tudo começou como uma gozação...

 

 

Juliana: As tirinhas são ótimas. Qual o seu conhecimento dos conceitos desenvolvidos por Freud tais como complexo de Édipo, histeria, inconsciente, entre outros, para conseguir utilizá-los com propriedade e humor em suas criações?
Pacha: Estudo psicanálise como autodidata há alguns anos, porque é um assunto que me interessa muito. Entrei em contato com as obras de Freud quando fui fazer uma pesquisa sobre indumentária do século XIX para um projeto de quadrinhos passado nessa época (e que acabou nem sendo publicado), no início dos anos 2000. Como não tinha acesso à internet naquela época, recorri a revistas e livros que tivessem fotos da Europa nesse período e me esbarrei com Teratologia e psiquiatria na era vitoriana, a antropologia criminal de Cesare Lombroso, as investigações sobre hipnotismo de Jean-Martin Charcot, e então Freud e o estudo sobre sonhos. Desde então estudei as obras completas e alguns trabalhos dos seus discípulos. Acho que esse projeto das tirinhas é uma tentativa minha de comprimir todos esses anos de estudos em quatro quadrinhos por vez. Até mesmo para poder compreendê-los, jogar com eles. Com o agravante obviamente de tentar fazer as tirinhas parecerem engraçadas também para o leigo, não só para quem já está familiarizado com a psicanálise. É o meu desafio a cada vez que abro o computador e penso na próxima tirinha: quantos níveis de compreensão eu consigo embutir nestes quatro quadrinhos? Como analisando e como entusiasta da psicanálise é bastante proveitoso, porque me deparo com temas complexos e os desconstruo para fazer caber numa piada. Como artista é divertidíssimo explorar o humor gráfico com o qual não tinha muita intimidade, a não ser como apreciador porque sempre achei dificílimo fazer humor, principalmente tirinhas de humor. Está sendo uma experiência sensacional e um grande aprendizado este exercício.
Juliana: Segundo Freud, “o humor é, pois, a rebelião do ego contra as circunstâncias adversas, transformando o que poderia ser objeto de dor em objeto de prazer [...]”. Qual a sua opinião sobre a capacidade do ser humano de brincar e rir de si mesmo em tempos tão agressivos e pesados, como os da sociedade atual, onde a desigualdade, a violência e o narcisismo têm se mostrado tão em evidência? É possível rir de nossa dor na contemporaneidade?
Pacha: O homem sempre riu de si mesmo, não sei se por um tipo de mecanismo de defesa ou por morbidez, mas procurou sempre encontrar algo de patético no trágico através da ironia. Como ironizar é que é a ciência. Minha grande preocupação nas tirinhas é não ofender alguém ou alguma minoria, que já apanha o suficiente de todos os lados, só para garantir uma piada. É muito fácil fazer troça de quem já está derrubado. Nunca gostei disso. Prefiro fazer piadas que tenham a ver com condutas e escolhas equivocadas ou ainda situações do cotidiano que temos como naturalizadas e que, se vistas de outros ângulos, são extremamente absurdas. Trato de revezar os vetores da piada, justamente para não massacrar ninguém, embora alguns arquétipos eu mantenha; como o Jean-Martin, que é mais ingênuo; a Anna, que é mais maliciosa; o velho Freud, que é mais provocador; a Martha, que é mais compreensiva, e assim por diante, onde todos são alvo das piadas, mas também alfinetam. Por exemplo, ora o Jean-Martin é aterrorizado pela figura paterna, ora é o velho Freud que sofre com a agressão edípica do filho, ora a Martha acolhe os filhos, ora é oprimida pelas neuroses deles. Tudo carregado de humor negro, mas tentando sempre não cruzar a fronteira sutil da ofensa e da baixaria tão fácil de cruzar se não tivermos consideração pelo outro. O mesmo para os pacientes que aparecem no consultório do doutor com suas mazelas e traumas, que, se por um lado não os poupo, ironizando-os, por outro, ataco quem os faz vítima também. Não é um trabalho fácil. Recebo críticas, mas é fundamental aprender a quebrar a sisudez que as pessoas se impõem, principalmente no meio psicanalítico.
Juliana: Em seu artigo Do trágico ao drama, salve-se pelo humor,1 a psicanalista Maria Mazzarello Cotta Ribeiro escreve que “Freud considerava o humor um dom raro e precioso”. A autora acrescenta:

Freud foi descrito, pelos seus biógrafos, como sendo um homem espirituoso. Algumas passagens de sua vida confirmam esse dom, por exemplo, quando as autoridades nazistas exigiram que ele assinasse um documento declarando não ter sofrido maus-tratos. Ele assinou, mas acrescentou de próprio punho: ‘Posso recomendar altamente a Gestapo a todos’. Para sua sorte, seu fino humor passou despercebido pelos oficiais.

Então, para terminarmos brincando, se Freud comparecesse hoje ao FIQ para a sessão de autógrafos de O filho do Freud, o que você diria a ele?
Pacha: Sempre achei o Freud um gozador. Aquela figura séria das fotografias não compete com a imagem que tenho dele ao ler seus textos, cheios de ironias com seus opositores ou as centenas de citações às obras de outros estudiosos, com alguma irreverência. As conferências dele sempre são entrecortadas por algum comentário desse tipo. Entretanto, escreveu um dos livros sobre chistes mais chatos do Ocidente! Hahahaha! É isso: o vejo como um sujeito solene na apresentação de suas ideias, mas que conseguia encontrar graça no absurdo. E se de alguma forma ele pudesse aparecer na sessão de autógrafos de O filho do Freud no FIQ, passada a estupefação inicial de ter diante de você alguém que admira tanto, eu diria: “Obrigado por me ajudar a não me levar tão a sério, doutor”.

 

 

Pacha Urbano, escritor e criador das tirinhas As fantásticas traumáticas aventuras do filho do Freud.

Juliana Marques Caldeira Borges
Psicanalista. Mestre em Ciências da Saúde, Saúde da Criança e do Adolescente pela Faculdade de Medicina da UFMG. Professora da disciplina Formações do inconsciente (Formação em Psicanálise) do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

 

 

1Link do artigo: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0100-34372008000100013&script=sci_arttext