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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.68 Belo Horizonte Dec. 2014

 

ARTIGO

 

Barrar a pulsão ou ouvir o grito de alerta?

 

Would you block the natural mental energy strain or would you listen to the warning scream?

 

 

Aleksander Oliveira Barbosa; César Augusto ParoI

I Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presente reflexão articula uma leitura a partir da perspectiva da psicanálise sobre a dinâmica contemporânea da psiquiatria em hiperdiagnosticar e em hipermedicar. Para tal, discute como modelo teórico a hipermedicalização do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), bem como os critérios diagnósticos impostos pelo DSM no que se refere a esse suposto transtorno.

Palavras-chave: Psicanálise, Psiquiatria, TDAH, Diagnóstico.


ABSTRACT

The aim of this text is to relate Psychoanalysis view to the contemporain medical practice upon Attention Deficit Hiperactivity Disorder, including the medical practice on excessive medicalization and high medical number of diagnosis of this disorder.

Keywords: Psychoanalysis, Psychiatry, ADHD, Diagnosis.


 

 

O transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) é “um padrão persistente de desatenção e/ou comportamento hiperativo e impulsivo que é mais grave do que o esperado em crianças de idade e nível de determinado desenvolvimento” (SADOCK; SADOCK, 2007, p. 1304). A psiquiatria leva como referência que isso cause prejuízo na escola e em mais algum outro ambiente. Dado o risco de atraso no desenvolvimento da criança e do adolescente, além do comprometimento da qualidade de vida dos adultos, preconiza-se a medicação dos casos diagnosticados como TDAH.

Como características do paciente com TDAH, citam-se: hiperatividade, prejuízo motor perceptivo, labilidade emocional, déficit de coordenação geral, déficit de atenção, impulsividade, déficits de memória, incapacidades de aprendizagem específicas e déficits de fala e audição. Parte desses pacientes também pode apresentar sintomas de comportamento agressivo e desafiador (SADOCK; SADOCK, 2007, p. 1304).

Esses sintomas são características do indivíduo ou de transtorno? Trata-se de algo patológico ou de condições de uma educação com falhas? Trata-se de transtorno cerebral? Ou apenas a máscara de uma pulsão? Ou o verbo (não) manifesto?

A atitude médica diante desse dito transtorno de comportamento não é estanque de toda a prática da psiquiatria contemporânea e situa-se no contexto de uma medicina que se propõe medicalizar excessivamente. Ao se fazer essa observação sobre a excessiva medicalização do paciente TDAH, pode-se inferir uma ideia (falsa) de rejeição extremada à psicofarmacologia.

Meira (2014, p. 136) defende que:

Não se trata obviamente de criticar a medicação de doenças, nem de negar as bases biológicas do comportamento humano. O que se defende é uma firme contraposição em relação às tentativas de se transformar problemas de viver em sintomas de doenças ou de se explicar a subjetividade humana pela via estrita dos aspectos orgânicos.

Entre as situações de transformar problemas simples de viver em sintomas de doenças, pode-se entender que o transtorno de ajustamento de uma criança à sua escola ou de um adulto ao seu trabalho sejam patologizáveis, tornando-se, assim, objeto de preocupação da medicina do comportamento. Na hipótese de pensar o sofrimento como exclusivamente biológico, exclui-se o Sujeito de seu próprio cenário como autor de sua vida e senhor de suas escolhas pessoais.

Situando a historicidade da construção do saber médico, a formação médica tradicional privilegia pouco o metafísico e o simbólico, uma vez que é centrada em disciplinas que são “voltadas para uma formação tecnicista e para especialidades” (LAZARINI; GOULART, 2013, p. 307). Isso em parte se explica pelo modelo tecnicista e cartesiano da formação médica: esse conceito em que a formação médica clássica seja volta para o “tabelamento” de sintomas X, Y, Z..., os quais resultariam em diagnóstico de doenças A, B, C..., não havendo o desenvolvimento da escuta do médico em formação.

Felizmente, desde 2001 assiste-se no Brasil a um empenho na transformação dos parâmetros curriculares. Tais mudanças facilitam ao médico reconhecer que os pacientes, além de demandar tratamento de seus sintomas, almejam ressignificar suas narrativas. Isso significa uma luz e uma atitude de mudança empreendida pelos educadores médicos voltados para uma formação de médicos que atenda as necessidades de crescente emprego de tecnologia sem, contudo, ensinar uma técnica que prescinda de seu real objetivo, que é o Sujeito, e evitar que O torne uma categoria diagnóstica. A postura de valorizar o subjetivo é um movimento contrário ao movimento social mais amplo de baixa valorização do metafísico. Tal qual

[...] parece irresistível a vocação que o homem possui de estar sempre voltado para o seu exterior, fugindo àquilo que tem de mais próximo que é o seu próprio interior. Os olhos do homem levam-no à contemplação do circundante, como se estivesse permanentemente sendo desafiado pelos órgãos dos sentidos a buscar sempre um encadeamento mais além, escapando de si mesmo (CORRÊA, 2009, p. 31).

Então, trata-se de uma reordenação de paradigmas educacionais na contramão para corrigir o fluxo ainda vigente.

O SNAP-IV é um instrumento desenvolvido com fins de avaliação dos sintomas do TDAH em crianças e adolescentes (MATTOS et al., 2006). Trata-se, pois, de uma tabela de domínio público de preenchimento direto, com vários itens, e cada item pode ser classificado em quatro graus de cada sintoma. A partir de uma contagem de pontos do SNAP-IV, pode-se considerar a possibilidade de TDAH. Ao se praticar uma medicina baseada exclusivamente em preencher tabelas e dar resultados objetivos sobre diagnósticos de comportamento, arrisca-se à “falta de uma análise crítica sobre as relações entre os fenômenos que ocorrem na educação e o contexto histórico-social que a determina” (MEIRA, 2014, p. 138). O empenho e a contribuição da psicanálise podem transformar essa realidade patologizante, a qual tem como resultado o excesso de medicalização.

Ademais, essa nomenclatura (a sigla TDAH) se espraiou para além da psiquiatria, sendo aplicada por médicos de diversas especialidades e foi ao público leigo em medicina, como pais e professores, os quais se permitem inferir hipóteses diagnósticas sobre TDAH.

Para Lima (2005, p. 14),

[...] paulatinamente a experiência de si e a identidade pessoal passam a ser contaminadas pelo reconhecimento, nos critérios diagnósticos do transtorno, de novas leituras para antigas dificuldades pessoais.

E ao se referir às dificuldades pessoais, o autor informa a respeito de experiências humanas cotidianas, as quais atualmente vêm sendo reescritas, assumindo novo significado no corpo, sendo assim inscritas no corpo como sintoma, fazendo-se a constituição do parâmetro corporal como medida de todas as coisas.

Nesse sentido, a medicina se permite sentar-se “à direita de Deus Pai e julgar os vivos e os mortos”, exclusivamente sob a ótica do corpo, do sinal e do sintoma. Portanto, é inegável a importância de discutir o conceito de sintoma.

“Veja bem, nosso caso é uma porta entreaberta, eu busquei a palavra mais certa [...].” Retoma-se, assim, os versos de Gonzaguinha, para dizer o que o Sujeito falaria ao ser perguntado sobre o porquê de seus sintomas. Definitivamente, a leitura psicofarmacológica não se apoia na pergunta “por quê?”. Ela se sustenta sobre “quais são e quantos são os seus sintomas?”. Assim, o indivíduo é patologizado, enquanto o seu discurso é apagado. Relutando contra esse sistema de apagamento do sujeito, o sintoma é uma expressão corporal daquilo que a psique deseja representar.

Para Lima (2005, p. 59), “a psiquiatria e suas categorias diagnósticas têm sido um meio de transmissão da cultura de bioidentidades ao cotidiano do sujeito”. Nesse contexto do poder psiquiátrico de estabelecer o valor que os problemas de saúde, seja questões corporais, seja questões relacionais/sociais, é por meio da intervenção psicofarmacológica que se apazigua o sofrimento, “a solução é individual e consagra-se na compra e no uso do medicamento” (RABELLO; CAMARGO JÚNIOR, 2012, p. 357).

Pergunta-se em que medida a psicanálise poderia ajudar o sujeito a encontrar “a palavra mais certa” com que se expressar, antes que os sintomas se tornem incapacitantes para o indivíduo, ou em que medida a psicanálise pode contribuir para a readaptação do paciente às suas necessidades psicossociais quando os sintomas já forem proeminentes. Ou, avançando na concepção do tratamento eficaz, contribuir para o Sujeito entender por que ele construiu tais sintomas.

Pode-se pensar, então, que a lógica da psicanálise é a lógica do encontro do Sujeito com sua realidade, enquanto a da psicofarmacologia é a “uma lógica por meio da qual os indivíduos tendem a interpretar problemas de diversas raízes como se fossem fatos clínicos objetivos” (TOASSA, 2012, 430). Para Dacorso (2006), a psicanálise teria o “mérito de solucionar, reconhecer e desvendar a fala carregada de fantasias, desejos, amores e ódios”.

A presença do sintoma e do sinal aponta para existência de um discurso não dito, da porta entreaberta, a qual manifesta o Inconsciente. Inserir esse conceito no raciocínio técnico é abrir a via da possibilidade e a via da impossibilidade. A via da possibilidade no sentido de que ela nos leva a respostas. A via da impossibilidade no sentido dos obstáculos que ela nos impõe para analisá-la.

Lacan ([1957-1958] 1999, p. 330) acredita que se trata

[...] de lhes mostrar em que perspectiva, em que alameda se deixa vislumbrar a possibilidade de uma normatização – uma normatização terapêutica – que toda experiência analítica está aí para lhes mostrar que se choca, no entanto, com as antinomias internas de qualquer normatização na condição humana.

É válido considerar que sintoma e sinal em medicina são palavras distintas, mas aqui a partir deste ponto se fará uso da palavra sintoma, somente, e se atribuirá a ela a conotação de “sintoma é aquilo que é analisável” (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 335).

Para Lacan

[...] o sintoma vai no sentido do reconhecimento do desejo. [...] Esse reconhecimento tendia a se manifestar, procurava seu caminho, mas só se manifestava pela criação do que chamamos máscara, que é uma coisa fechada para o outro (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 338).

A manifestação sintomática, logo, não é decifrada pelo olhar semiológico da psiquiatria, empobrecido em análise do discurso. Sobre a importância do discurso, Lacan ([1964] 1979, p. 24) informa “[...] que elas saibam que, durante alguns anos, foi preciso todo meu esforço para revalorizar aos olhos deles esse instrumento, a fala [...]”. Assim, o psicanalista reforça a teoria de que a fala do paciente se faz importante, não obstante o fato de o DSM citar uma tabela diagnóstica de “enquadramento” do indivíduo.

À força constante que possui um impulso e se direciona à satisfação denomina-se pulsão. Ela flui sem objeto específico e, então, pode escolher objetos diversos, em variadas situações. Sendo assim, o sintoma é uma das possíveis manifestações dessa força, como um retorno do material recalcado. E essa força constante não tem objeto que a barre e seja capaz de suprimi-la. Os sintomas de TDAH tabelados pelo Diagnostic Statistical Manual (DSM) representam a expressão de uma pulsão que se transforma.

Qual o papel dessa proposta medicalizadora? Barrar a pulsão?

 

Referências

CORRÊA, C. P. O homem contra o sujeito. Estudos de Psicanálise, Aracaju, n. 32, p. 31-38, nov. 2009. Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

DACORSO, T. M. Psicanálise e psicanalista: demandas, intervenções e questões. Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte, n. 28, set. 2006. Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Disponível em: <http://www.cbp.org.br/rev2815.htm>. Acesso em: 30 de set. de 2014.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Rua Pedro de Carvalho, 775, ap. 304
Lins de Vasconcelos
20725-231 - Rio de Janeiro - RJ
E-mail: aleksanderbarbosamedicina@gmail.com

Recebido em: 21/10/2014
Aprovado em: 27/10/2014

 

 

SOBRE OS AUTORES

Aleksander Oliveira Barbosa
Médico. Pós-graduando em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional pela Universidade Veiga de Almeida.

César Augusto Paro
Fonoaudiólogo. Residente em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduado em Gestão de Saúde pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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