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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.68 Belo Horizonte Dec. 2014

 

ARTIGO

 

Vou pedir sua mão... mas o que eu faço com ela? Conjugalidade e psicanálise

 

I will propose to you... But what do i do next? Conjugality and psychoanalysis

 

 

Cláudia Ferreira Melo;I, II Cláudia Leite;I, III Fernando de Oliveira Santos;I Jaime Gontijo;I Tiago Mileib de SouzaIV

I Parlêtre: Psicanálise, Pesquisa e Transmissão
II Faculdade de Divinópolis
III Universiade Estadual de Campinas - UNICAMP
IV Associação de Combate ao Câncer do Centro-Oeste de Minas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho discute a conjugalidade que opera pelo encontro entre duas pessoas. Considera as transformações sofridas desde a antiguidade até a cena contemporânea, em que a quebra dos ideais de laço conjugal nos coloca frente a impasses clínicos e sociais. Questiona o quanto o laço conjugal ainda está afetado pelo ponto de vista que nasceu na era burguesa e como a perspectiva do discurso do capitalista o coloca submetido aos ditames da sociedade do espetáculo. A busca de amor e de felicidade ganha ênfase nas relações afetivas. Os afetos recebem o estatuto de mercadoria.

Palavras-chave: Conjugalidade, Psicanálise, Sociedade do espetáculo, Discurso do capitalista.


ABSTRACT

The current study discusses the marching conjugality when to people meet each other. It is considered the transformations for which these relationships passed through from antiquity to contemporaneity. It is investigated the rupture of ideal conjugal bonds which points to clinical and social impasses. It is questioned, as well, in which ways the conjugal bond is affected by the context of those who were born in bourgeois era and how the perspective of the capitalist discourse subject them to a spectacle society. In this society, searching for love and happiness is highlighted in emotional relationships and affections are treated as if they were merchandise.

Keywords: Conjugality, Psychoanalysis, Spectacle society, Capitalist discourse.


 

 

Conjugalidade: marcas do tempo

O encontro entre duas pessoas jamais foi estratégia simples para as culturas na história da humanidade. No cenário contemporâneo, a palavra “casamento” e os discursos inflamados, ancorados nas doutrinas religiosas ou morais, asseveram que o casamento é uma união divina, suprema, que promove a procriação e, dessa forma, a família. Até a proposta dos recasados, dos casais homoafetivos, do reconhecimento das famílias monoparentais, entre outros, promove as mais diversas reações na vida de qualquer sujeito. Dessa forma, nosso cenário nos convida a revisitar esse lugar que estabelece a especificidade de um encontro.

Para demarcar o encontro entre dois sujeitos, optou-se pelo termo “conjugalidade”, que abrange a união entre seres que, pautando-se ou não nos modelos jurídicos, religiosos ou sociais, decidem conjugar um espaço afetivo e vivencial em comum. O termo “conjugalidade” amplia o reconhecimento de vínculos entre dois sujeitos para além daqueles estabelecidos social e juridicamente.

O que se conhece hoje como conjugalidade, conforme Araújo (2001), surgiu com a ordem burguesa a partir do século XVIII, quando a sexualidade passou a ocupar um lugar importante dentro do casamento. Antes da era mercantil, o amor não era o requisito básico para o casamento, e a sexualidade não era vivida como lugar de prazer, pois sua função específica era a reprodução.

Pode-se encontrar a novidade na entrada da sexualidade na vida conjugal nas palavras do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), que em seu livro Metafísica dos costumes (1797) define o casamento como “a ligação entre duas pessoas de sexo diferente tendo em vista a posse recíproca e perpétua de suas propriedades sexuais”.

A finalidade de gerar e educar filhos pode ser sempre uma finalidade da natureza, para a qual ela implanta a inclinação recíproca dos sexos; mas para a legitimação dessa ligação não é exigência obrigatória que o ser humano que contrai o matrimônio tenha de propor a si mesmo essa finalidade; pois, do contrário, cessando a procriação, o casamento ao mesmo tempo se dissolveria por si só (KANT apud BENJAMIN, 2009, p. 16).

Segundo Araújo (2001) essa nova proposta para o casamento quebra a configuração oriunda da antiguidade, que perpassou a Idade Média. Durante esse tempo, os pais escolhiam o casamento para os filhos. Essa escolha era um negócio de família, um contrato que prezava a preservação da família e dos bens. O casamento foi incorporado pela Igreja, que o elevou ao estatuto de sacramento com caráter indissolúvel e monogâmico. O principal papel era servir de base às alianças cuja importância se sobrepunha ao amor e à sexualidade. As escolhas subjetivas e o amor não pesavam nessas decisões, e a sexualidade para a reprodução era parte da aliança firmada.

Ariès (1987) reforça que as grandes mudanças no casamento iniciaram com a modernidade. Segundo ele, a valorização do amor individual, presente na ideologia burguesa, estabeleceu o casamento por amor, amor-paixão, com predomínio do erotismo na relação conjugal. Nesse novo prisma, a conjugalidade impõe aos sujeitos que se amem ou que “pareçam se amar” e tenham expectativas a respeito do amor e da felicidade. Essa imposição também traz consequências e contradições.

 

Laço conjugal e o discurso do capitalista

A mudança de perspectiva no laço conjugal ao longo do tempo coloca hoje impasses clínicos e sociais. Um desses impasses se estabelece diante da armadilha que captura muitos casais à medida que se acentuaram suas idealizações e, consequentemente, os conflitos resultantes da desilusão pelo não atendimento das expectativas.

Nessa perspectiva, questiona-se nesse trabalho, o quanto o laço conjugal, na contemporaneidade, ainda está afetado pelo ponto de vista que nasceu na era burguesa e como a perspectiva do discurso capitalista coloca a conjugalidade submetida aos ditames da sociedade do espetáculo. A busca de amor e de felicidade ganha ênfase nas relações afetivas existentes na contemporaneidade. Assim, faz-se de tudo pela busca de satisfação, e os afetos recebem o estatuto de mercadoria. Numa sociedade em que o imperativo é “goze!”, seja como for ou com quem for, a quantidade é o que conta.

Nesse contexto, o espetáculo (DEBORD, 1997) é o regulador dos laços e do espaço social. “[...] O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (DEBORD, 1997, p. 14). Por meio dessa comunicação essencialmente unilateral, administra-se a sociedade contemporânea. O que está no cerne do sistema espetacular é a promoção de uma ilusão, pela organização sistemática das aparências. Trata-se de um sistema de imagens que, como o mercado, conquistou autonomia sobre a realidade. O espetáculo, assim, seria capaz de borrar as fronteiras entre verdade e falsidade, gerando uma situação na qual o sujeito se torna incapaz de reconhecer sua própria situação.

Essa maneira de tomar a conjugalidade pela via da materialização do amor e da felicidade, como mercadoria, eixo do espetáculo, aproxima-se do estabelecimento do discurso do capitalista. Pode-se retomar a proposta de Lacan ([1969-1970] 1992), que escreve, de forma algébrica, quatro discursos: discurso da histérica, discurso do analista, discurso do mestre e discurso universitário. Mediante esses quatro discursos radicais, Lacan designa quatro fórmulas de estruturação do laço social. Nos discursos se encontram quatro lugares invariantes (agente, outro, produção, verdade), que são ocupados por quatro elementos: , S1, S2, a.

A relação entre saber e verdade, a mobilização do desejo, o corpo, o gozo podem ser lidos e articulados de maneiras distintas em cada um dos modos discursivos. Propõe-se pensar a conjugalidade, no campo do laço social, estabelecida nesses discursos. Mas para os propósitos desse trabalho, situam-se os efeitos que se colhem quando a conjugalidade ganha ares de espetáculo se enquadrando no discurso do capitalista.

Foi durante uma jornada de trabalhos em Milão (12/05/1972) que Lacan deduziu um discurso chamado “discurso do capitalista”. Esse discurso foi promovido pela inversão na primeira coluna de elementos do discurso do Mestre. Ocorre, desse modo, uma ligação direta entre o objeto e o sujeito barrado. Porém, o objeto já não é o objeto-causa do desejar, mas sim, o objeto produzido pelo sujeito como agente do discurso. Nesse panorama, o sujeito se acha fixado a um objeto produzido por ele mesmo. Por estar no lugar de agente, credita a si o equivocado lugar de ser mestre das coisas e da língua, na crença de poder não ser assujeitado a nada.

Os efeitos do discurso do capitalista são a produção incessante de objetos que são descartados, para que a repetição de novos objetos recriem a ilusão de completude e a efetivação da negação da castração. Submetido ao discurso do capitalista, o laço conjugal ganha estatuto de “objeto descartável”, que pode ser trocado tão logo a insatisfação alcance um dos parceiros. A lei do mercado apresenta novos modos de gozo, de relações de satisfações amorosas e sexuais. O apagamento do sujeito é consequência visível e pouco resta de espaço para a construção dos laços identificatórios que se incluem na experiência faltosa com o Outro e nas modalidades de aproximação com os outros.

 

Quero sua mão, seu corpo e algo que eu ainda não sei...

A psicanálise permite tratar a conjugalidade, considerando seus “pontos de falta”. A forma mais primitiva de laço emocional, nomeada por Freud de identificação é a operação que enlaça um ao outro. A falta permite o laço e o encontro com o outro. Foram os efeitos do complexo de Édipo, estabelecido no romance familiar, que permitiram a Freud formular que o espaço de trocas afetivas marcava profundamente a posição de um sujeito e seu destino identificatório. Nesse contexto, Freud formula:

A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo (FREUD, 1969 [1921], p. 133).

Ao longo da construção freudiana, o conceito de identificação ganhou uma atenção constante no texto Psicologia de grupo e análise do eu, no qual Freud (1969 [1921], p. 135) define a identificação como “a forma mais primitiva e original do laço emocional”. Resgatando essa articulação, Freud apresenta três formas de identificação: ao pai, ao traço, ao desejo.

Freud ressalta que a identificação ao pai corresponde ao que se articula no complexo de Édipo, em que a lei do pai é incorporada. A identificação ao traço corresponde à apropriação de um elemento, um traço de outrem, e da utilização desse traço como próprio. O terceiro modo de identificação é ao desejo. Esse modo compartilhado de identificação se estabelece pela possibilidade ou pelo desejo de colocar-se em uma situação vivida por alguém.

Sobre esses três modos de identificação, Freud aponta:

O que aprendemos dessas três fontes pode ser assim resumido: primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção do objeto no ego; e terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum compartilhada com alguma outra pessoa que não é objeto da pulsão sexual (FREUD, 1969 [1921], p. 136).

Quando Jacques Lacan se dedica ao Seminário 9: a identificação (1961-1962), ele destaca que os três modelos de identificação apresentados por Freud não formam uma classe. Entende-se que essas identificações propiciam movimentos fundadores e dinâmicos ao longo da constituição do sujeito. Dessa maneira, segundo Lacan, a primeira identificação (por incorporação) é o movimento que permite a constituição do corpo. No que se refere à segunda identificação (ao traço), Lacan se dedica cuidadosamente a ela, pois é a referência fundamental para a constituição do sujeito. Quanto à terceira identificação (ao desejo), Lacan elege a como a fórmula suporte, referida ao objeto.

Os movimentos lógicos que constituem corpo, sujeito e objeto se estabelecem pelas identificações, conforme nos apresenta Cruglak:

Que o sujeito possa aceder a seu próprio corpo não é algo natural. O corpo, o que chamamos corpo próprio, sofre um dispêndio de gozo pelo fato de que é tomado pelo significante precisamente para ser corpo. O que distingue ‘essa presença de corpo animal do que logo nomeamos corpo próprio’ é a inscrição de uma marca significante. Isso depende inteiramente do Outro não somente porque, como bem sabemos, o significante está no campo do Outro, senão porque é um ‘pequeno gesto de amor’ que esboça a marca. É possível que deste pequeno gesto dependam os destinos da inscrição, já que nela está comprometida a lógica da extração pela qual, desde o movimento inicial, a marca terá chance de ordenar-se em uma cadeia significante para poder ser marca própria ou não (CRUGLAK, 2001, p. 129).

A identificação, que demarca a constituição do sujeito pelas vias do significante, revela a inconsistência de tomar a conjugalidade como campo do espetáculo ou como campo de trocas mercadológicas, pois a inclusão do corpo do outro (da mão) já estabelece os elementos que “não cessam de não se escrever”, que escapam ao discurso do capitalista.

 

Referências

ALVARENGA, L. L. Uma leitura psicanalítica do laço conjugal. In: FERES-CARNEIRO, T. (Org.). Relação amorosa, casamento, separação e terapia de casal. Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, 1996. (Coletâneas da Anpepp n. 1).         [ Links ]

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CRUGLAK, C. Clínica da identificação. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.         [ Links ]

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). In: ______. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 79-154. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).         [ Links ]

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SOUZA, A. Os discursos na psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 29/10/2014
Aprovado em: 05/11/2014

 

 

SOBRE O AUTOR

Cláudia F. Melo
Psicóloga. Psicanalista do Parlêtre: Psicanálise, Pesquisa e Transmissão. Docente da Faculdade Divinópolis - FACED. E-mail: <melo.claudia@hotmail.com>

Cláudia Leite
Psicóloga. Psicanalista do Parlêtre: Psicanálise, Pesquisa e Transmissão; Centro de Pesquisa Outrarte - IEL/Unicamp. E-mail: <caoleite@yahoo.com.br>

Fernando de Oliveira Santos
Psicólogo. Psicanalista do Parlêtre: Psicanálise, Pesquisa e Transmissão. E-mail: <fernandoliveira33@yahoo.com.br>

Jaime Gontijo
Psicólogo. Psicanalista do Parlêtre: Psicanálise, Pesquisa e Transmissão. E-mail: <jaimegontijo@hotmail.com>

Tiago Mileib de Souza
Psicólogo clínico da Associação de Combate ao Câncer do Centro-Oeste de Minas (ACCCOM). E-mail: <mileib2005@yahoo.com.br>

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