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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.68 Belo Horizonte dez. 2014

 

ARTIGO

 

Os caminhos cruzados da adoção: do abandono precoce à última esperança

 

The crossroad of adoption: from the precocious abandonment to the last hope

 

 

Olímpia Helena Costa Couto

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como ponto de partida a experiência de adoção internacional tardia de crianças brasileiras por famílias francesas. A criança em lista no Cadastro Nacional de Adoção é um sujeito-objeto em um abrigo público, à espera do quase milagre de ser desejado por alguma família. Tendo como recorte o olhar sobre a criança, busca-se tecer, à luz da psicanálise, algumas considerações sobre o tema complexo do infante vitimado pelo abandono precoce e os seus (des)caminhos até a última esperança, a adoção internacional tardia.

Palavras-chave: Desamparo, Trauma, Desejo, Pulsão, Simbólico.


ABSTRACT

This work focuses in the experience of late foreign adoption of Brazilian children by French families. The child enlisted in the National Adoption Registration is a subject-object in a public shelter, waiting for the miracle of being desired by some family. Casting an eye on the child, under the light of psychoanalysis, this work proposes some considerations on the complex theme of the infant victim of precocious abandonment and his/her path until the last hope that is the late foreign adoption.

Keywords: Helplessnes, Trauma, Desire, Pulsion, Symbolic.


 

 

A elaboração deste trabalho teve origem em uma conversa com Marisa Maia Drummond, doutora em odontologia pela Universidade Federal Fluminense, residente na França e vice-presidente da Conféderation Française pour l’Adoption (COFA - Cognac), que trabalha com adoção de crianças do Brasil, Haiti e Vietnã por casais franceses. Segue um relato de trechos dessa entrevista para se ter um panorama sucinto do processo.

A adoção internacional é regida pela Convenção de Haia de 1993, da qual o Brasil é signatário desde 1997. Seus princípios orientadores são:

1. Todos os países devem cuidar e conservar suas crianças em seu território;

2. Somente quando não é possível a adoção no país de origem é que a criança poderá ser encaminhada para adoção internacional.

No Brasil são levados em conta a Convenção de Haia e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cujo entendimento também é de que só quando é impossível a adoção por uma família brasileira é que a criança poderá ser adotada no exterior. De um universo de aproximadamente cinco mil e quatrocentas crianças registradas no Cadastro Nacional de Adoção, 96% permanecem no Brasil e 4% seguem para adoção internacional.

Há uma Autoridade Central subordinada ao Ministério da Justiça, bem como um órgão oficial de controle, a Comissão Estadual Jurídica de Adoção (CEJA) em cada estado da nação brasileira, que coordenam e fiscalizam todos os organismos internacionais de adoção e acompanham cada processo. Na França existem quarenta organismos como a COFA, que são também fiscalizados pelo governo francês.

A CEJA é constituída por desembargadores, juízes da infância e da juventude e promotores. Essa comissão recebe dos municípios listas de crianças que não foram aceitas para adoção no Brasil e as encaminha aos organismos internacionais de adoção habilitados nos estados que escolheram se registrar.

A COFA trabalha com o referencial teórico do princípio da ruptura, conforme descrito no livro “La normalité adoptive”, de Johanne Lemieux, que considera que ocorrem três rupturas sucessivas na vida da criança que chega para a adoção internacional, que são:

• Ruptura 1: A criança é afastada dos pais que cuidam mal dela e sente-se sequestrada, chora muito e diz que a mãe é boa. A mãe e a equipe psicossocial costumam dizer que a mãe vai buscá-la quando estiver bem, o que não acontece. A criança se sente traída pela mentira do adulto.

• Ruptura 2: O Conselho Tutelar tenta a reinserção na família biológica ampliada, por um período de três meses. Devolvida ao Conselho Tutelar, a criança sofre a segunda ruptura.

• Ruptura 3: A criança é inscrita no Cadastro Nacional de Adoção e o Conselho Tutelar solicita a destituição do pátrio poder, processo que pode levar dois anos. É a exclusão definitiva dos pais biológicos da vida da criança.

Portanto, a criança que segue para adoção internacional já passou por diversas tentativas de adoção. Inicialmente, o poder público a encaminhou à família biológica ampliada, que a devolveu. Depois foram feitas tentativas com mais de uma família, e ela foi sempre novamente devolvida ao abrigo público. Uma família pode ficar com a guarda provisória de uma criança por até dois anos e devolvê-la a qualquer momento durante o período de tramitação do processo de destituição do pátrio poder. Se, em outra situação, uma criança permanece no abrigo público por mais de seis meses sem que ninguém se interesse em adotá-la, seu nome fica em lista na CEJA, podendo ser encaminhada para adoção internacional.

Costumam chegar para adoção internacional grupos de irmãos, sendo o mais velho com idade em torno de dez anos ou crianças sozinhas com idades diversas e sempre com histórias de fracasso nas tentativas de adoção nacional. Muitas sofreram as mais diversas formas de abuso. São prevalentemente filhos de pessoas usuárias de drogas lícitas ou não, muitas vezes filhas de portadores de transtornos mentais. Há um mito de que criança pequena tem maior facilidade de adaptação. Na verdade, a diferença não está na idade em que foi adotada, mas na idade em que sofreu o abandono, se recebeu algum amor até então e no número de rupturas que sofreu. O impacto do abandono precoce é muito grande. Na adoção internacional, a criança se vê por um período de teste de cerca de trinta dias com duas pessoas que não falam a seu idioma e comem coisas diferentes. Ela terá que ficar com essas pessoas ou voltará para o abrigo público. É a sua última chance de ser adotada.

A experiência mostra que as crianças costumam ter duas reações: ou ela se mostra muito desagradável, infernal, desde o início, ou se apresenta sedutora para poder sair do Brasil. A sedução não pode ser mantida por muito tempo, acaba acontecendo um “rebote”, em que a criança volta sua agressividade sobre o casal. Muitas vezes acontece também um “misto” das duas situações, uma oscilação entre os dois polos.

Vou ilustrar com fragmentos de dois casos de adoção que acompanhei, com nomes diferentes para preservar o sigilo, destacando que o medo do abandono no estrangeiro é enorme. O primeiro caso é de Júlia, sete anos, que já estava com os pais adotivos há um mês e meio, período no qual ela havia se mostrado gentil e delicada. Nada se sabe da vida pregressa da menina, encontrada sozinha na rua. No dia do embarque para a Europa, a mãe adotiva acorda e sente um forte mau cheiro. Vai ao quarto da menina e a encontra suja de cocô, a roupa de cama e as paredes também. Júlia pergunta:

“E agora, você vai me adotar? Vai me adotar com tudo isso que fiz de cocô?”

A mãe deu uma resposta ótima, dizendo “Eu já te adotei, mas agora vamos limpar isso para irmos embora. Juntas”.

No segundo caso, três irmãs: Taís com oito anos, Carla com cinco e Márcia com três anos iam viajar comigo e os casais que as adotaram. Márcia, a menor, ficaria com uma família, enquanto as duas meninas maiores ficariam com outro casal. Há o compromisso legal de que as famílias mantenham os laços de convivência entre as crianças. No abrigo, Taís cuidava das irmãzinhas como se fosse sua mãe.

Na sala de embarque do aeroporto, percebo Taís muito nervosa, me pedindo para levá-la ao banheiro. Lá ela me entrega um guardanapo de papel e pede para que eu escreva “polícia”, “abrigo”, “irmãs” e outras palavras em francês. Muito aflita, ela fala comigo:

“Como é que eu falo polícia em francês, como é que eu peço para arranjar um abrigo para mim e para minhas irmãs? Minha mãe me abandonou quando eu tinha cinco anos. Essa eu conheci há dois meses, quando eu quebrar alguma coisa cara ela vai me abandonar. Como vamos ficar na rua sem saber a língua?”

O trabalho de adoção internacional é muito bonito, mas não é fácil, finaliza Marisa Drummond.

Este relato sobre a adoção internacional me fez pensar na situação da criança e me lembrar do livro de Mário de Andrade, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, marco do Modernismo no Brasil, e que começa assim:

No fundo da mata virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmúrio do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma (ANDRADE, 1997, p. 1).

O texto de Mário de Andrade traz o herói da nossa gente nascido na floresta amazônica, ao som do rio Uriracoera em Roraima, sem nenhum contato com o modelo civilizatório europeu. Macunaíma é negro, parido por índia iletrada e não tem pai: ele é “filho do medo da noite”. Recorremos ao parágrafo inicial do livro sem nenhuma ambição de fazer um estudo aprofundado do texto. A intenção foi mesmo provocar um mal-estar que possibilitasse colocar em foco o desamparo extremo de um bebê que nasce em condições inóspitas, contando com acolhimento mínimo e desprovido de uma referência paterna tangível. Essa é a condição de milhares de crianças que nascem no Brasil a cada dia, não na floresta amazônica, mas hoje sobretudo na selva urbana, ao som do rugido da cidade, entre pedras de crack e garrafas de cachaça, na mendicância, nas favelas, vitimadas por toda sorte de violência, num desamparo ainda maior que o de Macunaíma.

A criança que segue para adoção internacional tardia é uma sobrevivente de várias rejeições. Talvez se perceba feia como Macunaíma e se sinta também filha do medo da noite. Terá que deixar o mundo que conhece, por mais duro que seja, e ir para um mundo novo, de gente que fala outra língua e come outras coisas. É se adaptar ou voltar para o abrigo público no Brasil.

O ato de adoção de uma criança envolve não só um longo e difícil processo judicial, mas principalmente complexas questões subjetivas relativas ao casal adotante e à criança. Do lado do casal há uma delicada tessitura inconsciente em jogo, que envolve um trabalho árduo de elaboração psíquica, muitas vezes de luto pela impossibilidade de gerar um filho biológico. É preciso trabalhar a mudança do desejo de ter um filho por ter um filho adotivo, com todas as dificuldades, inclusive de ordem narcísica, que isso poderia implicar. O filho adotivo não poderá nunca corresponder ao filho imaginarizado pelos pais. Na França, a COFA faz um acompanhamento psicossocial da família candidata por um período de nove meses, tempo de uma gestação simbólica do filho que nascerá de outro corpo.

Voltamos a Macunaíma para lembrar que a criança virá não só de um corpo biológico desconhecido, mas de um corpo social estranho, de uma cultura não europeia. Sem pretensão de dar uma resposta, nos interrogamos sobre o que mobiliza o desejo do casal, qual será o lugar que a criança vai ocupar no desejo de cada um do par parental e, às vezes, no desejo de irmãos que já existem na família.

Do lado da criança ocorre uma inversão do romance familiar, no qual ela resta como um sujeito-objeto à espera de ser adotado por alguém. Percorrendo caminhos pavimentados de medo e rejeição, a criança chega à sua última esperança: a possibilidade da adoção internacional tardia. Oferecida como objeto de desejo a uma família desconhecida, que mora em um país estranho, considera que o sucesso ou não da sua adoção depende de si mesma, da sua condição de se fazer desejar.

Lembramos Freud que, parafraseando Goethe, nos recomenda “um retorno proveitoso da cinzenta teoria para o verde perpétuo da existência” ([1924], 1976, p. 189). Para pensar um pouco, então, sobre o tema, foram considerados como fragmentos de casos clínicos os dois episódios da história de crianças adotadas no Brasil, já a caminho da França. Na entrevista com a qual se inicia este trabalho, há a observação de que as crianças que receberam um pouco de cuidado amoroso da mãe antes do seu afastamento definitivo conseguem se adaptar melhor em uma nova família.

A primeira infância tem importância central na teoria psicanalítica. Freud destaca que, desde o início, o investimento narcísico dos pais constitui a base para a organização do psiquismo da criança. Considera que o desamparo é inerente ao ser humano, o que situa a questão do trauma como estrutural. Pondera que tanto os estímulos vindos do mundo exterior quanto o excesso de excitações internas podem ameaçar o aparelho psíquico do bebê. Freud iniciou suas elaborações acerca do trauma e a etiologia das neuroses, teorizou sobre a relação da fantasia com o trauma, chegando à compulsão à repetição e à pulsão de morte. Embora o conceito de trauma perpasse a obra freudiana com alterações ao longo do tempo, a relevância do fator econômico é mantida. Freud enfatiza que a situação traumática é inassimilável e vê a narrativa como uma saída simbólica possível.

Em Inibições, sintoma e ansiedade (1926), Freud apresenta o trauma do nascimento como o protótipo da vivência de angústia originada da separação do corpo materno, mas principalmente do transbordamento interno de energia sem inscrição no campo das representações. Sem dispor de condições mínimas de viver por seus próprios meios, separado da mãe o recém-nascido só pode sentir a vertente corporal da angústia, numa vivência sem representação simbólica, o que a aproxima da angústia de morte. Esse transbordamento energético primordial é sentido pelo bebê como um perigo interno e será reativado sempre que uma nova situação angustiante ocorrer.

Para além do trauma do nascimento, um recém-nascido pode sofrer a intensificação avassaladora da angústia de aniquilamento quando não encontra a função materna acolhedora ao nascer. Cabe à figura materna o acolhimento amoroso que irá fazendo contenção à angústia do recém-nascido, possibilitando amenizar a força patogênica do excesso de excitação interna e externa.

Quando se trata de uma criança a ser adotada, uma vez que há uma mãe biológica perdida para sempre, seja pela sua impossibilidade, seja pelas condições desfavoráveis da maternagem, a vida exige dessa criança que se adapte ao mundo inóspito que a ela se apresenta ou às mais diversas constelações parentais.

Retomemos o pequeno fragmento do caso de Júlia, adotada aos sete anos sem saber nada sobre sua história de vida, que se apresenta gentil durante quarenta e cinco dias com os pais adotivos e tem um ‘rebote’ quando faz a atuação de se sujar e ao seu quarto de cocô na hora de ir para a França. Júlia parece reviver, com seu comportamento autodestrutivo, a angústia de aniquilamento primordial. Por que uma criança vitimada por tanto abandono agiu dessa maneira, colocando em risco sua última chance de ser adotada?

Em Além do princípio de prazer (1920), Freud discorre sobre as bases pulsionais da vida orgânica e define os conceitos de pulsão de vida e de pulsão de morte, como Eros, que se opõe a Thanatos. Considera que a pulsão de vida tem mais contato com a percepção interna e produz o rompimento da paz para obter prazer com o alívio posterior das tensões, enquanto a pulsão de morte é silenciosa e parece servir ao princípio de prazer. Freud ([1920] 1976, p. 85) acrescenta:

É verdade que [a pulsão de morte] mantém guarda sobre os estímulos provindos de fora, que são encarados como perigos por ambos os tipos de instintos (pulsões), mas se acha mais especialmente em guarda contra os aumentos de estimulação provindos de dentro, que tornariam mais difícil a tarefa de viver.

Nessa perspectiva da dualidade pulsional e da impossibilidade de defusão total entre pulsão de vida e pulsão de morte, podemos pensar que Júlia atuou de forma inconsciente para colocar em xeque o desejo da mãe adotiva. Por outro lado, as fezes são não só um desafio mas também um presente, pois são a primeira produção do próprio corpo de que a criança pequena tem noção. Primeiramente, de maneira regredida, Júlia atuou usando o corpo como forma de expressão para, em seguida, conseguir perguntar à mãe se ainda seria capaz de aceitá-la. Isso indica que Júlia já havia conseguido estabelecer uma relação de objeto amorosa com a mãe adotiva. A resposta da mãe mostra que tinha sensibilidade em relação à dor indizível da menina e condições de lhe oferecer a segurança necessária para que pudesse seguir em frente.

No fragmento do caso das três irmãs – Taís, Carla e Márcia – percebe-se pela fala de Taís que a mãe as havia abandonado há três anos, possivelmente quando Márcia nascera. Taís tinha então cinco anos e passara a cuidar das irmãs mais novas no abrigo a que foram recolhidas. Ainda com apenas oito anos, sentia-se responsável por elas. Enquanto, no caso anterior, Júlia fez uma atuação com caráter de autodestrutividade, no episódio das três irmãs Taís age, toma decisões e confia em um adulto para ajudá-la a escrever as palavras capazes de salvar sua pequena família do perigo no desconhecido mundo novo. Taís não atua com o corpo, mas toma medidas protetivas racionais para si e as irmãs. Há uma maior presença do simbólico e o estabelecimento de uma relação de confiança com Marisa Drummond, a quem a menina parece entender como autoridade.

O que diferencia os casos das duas meninas, Júlia e Taís?

Podemos considerar, na perspectiva da maternagem na primeira infância, que talvez Taís tenha recebido cuidados amorosos por mais tempo, uma vez que ela disse que sua mãe a abandonara quando tinha cinco anos. Há uma mãe perdida, mas há também a marca da sua presença na alma da filha. Júlia, no entanto, não tem memória nem palavras para dizer da sua história, da qual se pode inferir uma mãe que nunca foi presente.

Ferenczi, em Confusão de línguas entre adultos e crianças (1933), relaciona o trauma ao fato de a criança ter que confiar no adulto para sobreviver e afirma que qualquer ato violento do adulto contra a criança constitui um abuso. O mais traumático para a criança, segundo esse autor, não é nem mesmo a violência de que foi vítima, mas o desmentido do adulto, que impede que ela possa significar e construir um sentido para o que sofreu. Retornando a Freud, é necessário dar a palavra à criança para que possa construir a narrativa que lhe for possível para o que viveu.

A criança com história de abandono precoce precisará fazer um trabalho de luto para que possa, de alguma forma, elaborar sua história. Poder voltar a confiar em um adulto é um desafio que com frequência permanece por toda a vida. A família adotante precisará não só elaborar suas próprias dificuldades mas também não recuar diante das marcas sofridas da história do filho tardio, acolhendo a verdade da criança e apostando na sua capacidade de criação. Afinal, ela conseguiu sobreviver a tanta coisa por ter a capacidade de se reinventar. Considerando a proposição lacaniana dos três registros (R.S.I.), há um trabalho de esvaziamento do imaginário, de admissão do real inexorável do biológico para a construção de uma saída pela via do simbólico. É preciso a família aceitar que o biológico é intransferível para que possa construir uma história de filiação em que laços familiares ancorados no simbólico sejam construídos. É possível criar com a criança uma delicada tessitura de narrativa que faça borda entre sua história anterior e sua nova história, inaugurando uma árvore familiar não genealógica, mas com raízes no simbólico. É uma possibilidade de filiação simbólica que, embora tardia, traz um presente mais leve e aposta em um futuro mais promissor para essas crianças.

Por parte da criança, no entanto, permanece o traumático do suposto não desejo primordial, um furo que faz pulsar a pergunta latejante sobre o seu lugar no desejo da mãe biológica. Como delicadamente Ferenczi ([1929] 1992, p. 49) expressa no artigo A criança mal acolhida e sua pulsão de morte: “Mas por que foi, então, que me trouxeram ao mundo, se não estavam dispostos a acolher-me carinhosamente?”

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Ouro Fino, 395, sala 401 - Cruzeiro
30310-110 - Belo Horizonte (MG)
E-mail: ohccouto@gmail.com

Recebido em: 16/09/2014
Aprovado em: 22/09/2014

 

 

SOBRE A AUTORA

Olímpia Helena Costa Couto
Psicóloga. Psicanalista. Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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