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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.69 Belo Horizonte June 2015

 

ARTIGO

 

Do Witz ao gay sçavoir: contribuições à psicologia do humor

 

From Witz to gay sçavoir: contributions to the psychology of laughter

 

 

Bernardo Costa Couto Maranhão

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda conexões possíveis entre humor e psicanálise, a partir de dois estudos de Freud – Os chistes e sua relação com o Inconsciente (1905) e O humor (1927) – e de seus desdobramentos posteriores na tradição psicanalítica, para discutir temas como: relações entre o humor freudiano e o humor judaico; aspectos metapsicológicos do humor; pertinência do humor na clínica psicanalítica; o humor e a gaia ciência no ensino de Lacan.

Palavras-chave: Humor judaico, Sublimação, Clínica, Transferência, Gaia ciência.


ABSTRACT

This article explores possible connections between humor and psychoanalysis, departing from two studies by Freud – Jokes and their relation to the unconscious (1905) and Humor (1927) – and its further repercussions in the psychoanalytic tradition, in order to discuss issues such as: relationships between Freudian humor and Jewish humor; metapsychological aspects of humor; pertinence of humor in psychoanalytic clinic; humor and gai savoir in Lacan’s teaching.

Keywords: Jewish humor, Sublimation, Clinic, Transference, Gai savoir.


 

 

I

Um dos reflexos da ampla difusão do discurso psicanalítico na cultura é o fato de o psicanalista ter se tornado personagem querido dos humoristas. Monossilábico, sisudo, carrancudo até, metido em trajes sóbrios, o rosto ornado por barba grisalha e charuto, eis o analista típico de quadrinhos, charges, crônicas e comédias.1 Tal figura, que em nada difere do Freud das fotografias mais conhecidas, empresta boa parte de seus traços à estampa de analistas ainda hoje encontradiços detrás dos divãs. Com efeito, não são poucos os analistas que encarnam para seus pacientes a austeridade, a frieza e o distanciamento afetivo,

[...] sendo o ‘voto’ de silêncio e a não interpretação da transferência duas das figuras mais caricaturais da crueldade exercida contra os pacientes (MACEDO, 2011, p. 273).

No entanto, como argumenta Daniel Kupermann (2005, p. 45),

[...] é legítimo questionar os efeitos sobre um analisando que é levado a crer que seu analista é incapaz de rir, sobretudo de si mesmo.

Embora o humor tenha ocupado espaço de relevo na pesquisa de Freud – seja pelos dois estudos que o autor dedica ao tema, seja pelo estilo de escrita que caracteriza sua obra –, verifica-se uma espécie de recalque desse elemento na tradição psicanalítica. Mesmo nos tempos heroicos do movimento psicanalítico da primeira hora, a produção teórica sobre os chistes e o humor é “limitada e eminentemente pobre” (BIRMAN, 2005, p. 96). Décadas mais tarde, já nos anos 1950, Ernst Jones (1989, p. 337) constata que o texto de Freud menos consultado pela comunidade psicanalítica é o estudo sobre os chistes, de 1905. Lacan evidencia a importância desse estudo em seu seminário As formações do inconsciente, de 1957, mas este vem a ser publicado muito tempo depois (FRANÇA, 1998; BRASIL, 1999). Um levantamento da produção teórica recente sobre o riso e o humor em psicanálise (BIRMAN, 2005, p. 96) permite supor que a constatação de Jones permanece atual.2

 

II

Em A interpretação dos sonhos (1900), Freud faz notar que, em alemão, seu nome significa alegria. Compatível com a dor, o desencanto e a aceitação da morte, a alegria freudiana parece ser, em grande medida, tributária de um senso de humor tipicamente judaico. “A alegria é feita para os judeus e o judeu é feito para a alegria”, escreve Sigmund numa carta à sua noiva Martha. Sabe-se bem como as pérolas do humor judaico são itens caros ao Freud colecionista, vide, principalmente, Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905).

O humor judaico, ensina Renato Mezan, é fruto da experiência sócio-histórica dos judeus do leste europeu sob o domínio do Império Russo no século XIX, e sua gênese se deve à combinação de três fatores. O primeiro deles é a “hostilidade do ambiente” aos judeus, que, em sua maioria, enfrentam opressão e dificuldades econômicas extremas no período. O segundo é a “agudeza de raciocínio” resultante do estudo dos textos religiosos do judaísmo, uma vez que tal estudo requer e favorece o exercício de capacidades como

[...] a memória, a inteligência verbal, o raciocínio indutivo e dedutivo, a percepção de analogias entre coisas aparentemente distantes umas das outras, a habilidade para ler entre as linhas e daí retirar significados pertinentes (MEZAN, 2002, p. 290).3

O terceiro fator é a “mudança na relação com a autoridade”, reflexo do Iluminismo e da Revolução Francesa. A partir desse evento, na Rússia czarista como em outras partes do mundo, difunde-se uma percepção, bastante nova, de que o status quo não é imutável, de que é possível pô-lo em xeque e transformá-lo.

E como esse status quo, no caso dos que inventaram o humor judaico, era dos mais injustos e opressivos, [...] o humor se revelou uma arma bastante poderosa para criticá-lo, para expor suas entranhas e também abrir uma réstia de esperança no ambiente sufocante em que viviam aquelas comunidades (MEZAN, 2002, p. 292).

Não é por acaso, portanto, que o humor, para Freud, é irresignado, teimoso, rebelde. Trata-se de um modo privilegiado de brincar com as palavras, em desafio à realidade opressiva e mesmo à morte iminente, como na célebre anedota do homem que é levado ao patíbulo para ser executado, numa segunda-feira, e exclama: “Veja, a semana começa bem!”.

Em sua obra, Freud se serve duas vezes dessa historieta: primeiro, em 1905, no final de Os chistes e sua relação com o inconsciente, para destacar no humor o triunfo narcísico do eu4 em face do infortúnio (o supereu ainda não está em questão, pois não houve ainda a virada dos anos 1920, com a segunda tópica e o Além do princípio de prazer). Depois, no artigo sobre O humor (1927), o supereu está no centro do debate: numa passagem singular da obra freudiana, revela-se uma face benevolente do supereu. Este, em vez de se manifestar tirânico, feroz e obsceno como de costume, é apresentado como a instância capaz, no humor, de consolar o eu e aliviar seu sofrimento.

Com efeito, a piada que o humor produz não é o essencial, tem apenas um valor de amostra. O principal é a intenção que o humor realiza, quer se exerça sobre a própria pessoa ou sobre os outros (FREUD, [1927] 1977 p. 191).

O supereu, no humor, parece querer dizer ao eu intimidado:

Olhe, aqui está o mundo que parece tão perigoso. Não passa de um jogo de crianças, que só serve para que dele façamos piadas (FREUD, [1927] 1977, p. 191).

O prazer propiciado pelo humor, ainda que pouco intenso em comparação com o riso solto do cômico ou do chiste,5 é particularmente libertador e enaltecedor, e nós lhe atribuímos um valor elevado (FREUD, [1905] 1977, p. 191). Já em 1905, no livro sobre os chistes, Freud reconhece que o humor parece ter “[...] qualquer coisa de sublime” (FREUD, [1905] 1977, p. 190).

Como indica Bernard Nominé,

[...] essa qualquer coisa de sublime se manifesta na medida em que o prazer de uma boa palavra, ou seja, o gozo do significante, permite a seu autor transcender a falta a gozar encontrada na vida (NOMINÉ, 2009, p. 82).6

A operação em jogo, diz Nominé (2009, p. 82), é “[...] um verdadeiro trabalho sobre a língua, um trabalho que, sem dúvida, é da ordem da sublimação”.7

As conexões entre sublimação e humor são interrogadas por Daniel Kupermann em alentados estudos sobre o tema (KUPERMANN, 2003; 2005; 2010). As proposições do autor merecem uma apreciação detalhada que foge ao escopo deste artigo. Em todo caso, convém ter presente que:

Há, de fato, importantes pontos de convergência entre sublimação e humor: ambos implicam processos que se situam na fronteira entre a defesa frente à angústia promovida pelos excessos pulsionais e o movimento criador; encontram suas fontes originárias no brincar infantil; indicam uma afirmação do sujeito e de suas experiências de prazer e de alegria apesar do reconhecimento dos limites impostos a qualquer triunfo onipotente; e, finalmente, produzem uma modalidade de laço social baseado não na repressão pulsional, mas no compartilhamento afetivo (KUPERMANN, 2010, p. 200).

Para Kupermann, o estudo do humor propicia uma melhor compreensão do que está em jogo na sublimação e vice-versa. A seu ver, esse exercício permite retirar ambos os temas de uma espécie de zona de sombra a que parecem ter sido relegados pelos estudos psicanalíticos.8 De fato, como observa Birman, o território da sublimação é ainda pouco explorado (BIRMAN apud KUPERMANN, 2010, p. 199). O mesmo vale para o humor, como se viu.

 

III

Além disso, o humor nos recorda que “ainda temos muitíssimo a aprender sobre a essência do supereu” (FREUD, [1905] 1977, p. 162). Sobre essa aprendizagem, cuja necessidade nem sempre é levada em conta, comenta Heitor de Macedo (2011, p. 276):

Antes tarde do que nunca, mas não podemos deixar de constatar (e lamentar) os efeitos devastadores que esse atraso teve sobre a clínica.9

Alguns autores, em especial, são atentos às raízes amorosas do supereu, àquela sua face benevolente que faz com que Freud reconheça que ainda temos muito a aprender sobre essa instância. Destacam-se, sob essa perspectiva, Winnicott e, antes dele, Ferenczi.10 A atenção dada por esses e outros autores àquelas observações sobre o supereu feitas por Freud ao final de O humor traz consequências à condução do tratamento, as quais Heitor de Macedo sintetiza nos seguintes termos:

Primeiramente, a posição do analista, em vez de se situar apenas na filiação da função proibidora do incesto, passa agora a ser também uma função protetora, consoladora, amorosa (são os termos freudianos). Supõe-se que o analista seja capaz de humor e, portanto, nada justifica que ele se conceba sério como um papa, duro feito um catatônico, fóbico e obsessivo em relação a qualquer manifestação de afeto sua ou no acolhimento da de seus pacientes. O analista não é um simples espelho; também deve permitir que seu paciente ria do mundo e, para isso, tem de ter a sensibilidade – o tato, dizia Ferenczi –, para brincar com seu paciente (MACEDO, 2011, p. 279, grifo do autor).

Em reforço de sua argumentação, Macedo cita alguns comentários de Winnicott, dos quais merece destaque o seguinte:

O senso de humor é a marca de uma certa liberdade: o inverso da rigidez das defesas características da doença. Ele é aliado do terapeuta, que, graças a ele, experimenta um sentimento de confiança e se sente autorizado a uma certa liberdade de manobra. É uma prova da imaginação criativa da criança e de sua alegria de viver (WINNICOTT apud MACEDO, 2011, p. 279).

Curiosamente, observa Kupermann, tanto Ferenczi quanto Winnicott são identificados, por parte da comunidade psicanalítica, como defensores de uma posição maternalizante do analista. De fato, a fim de reabilitar a potência erótica e criativa da palavra no contexto analítico, ambos realizam um movimento de feminilização ou, mais propriamente, de desfalicização da posição do analista. Dito de outro modo, os dois declinam da posição, imaginada por Freud, do analista como “substituto paterno” no campo transferencial, companheiros que são de descrença no poder soberano do instrumento interpretativo. No entanto, mais do que “mães” protetoras, eles se apresentam, no dizer de Kupermann, como órfãos de qualquer álibi de transcendência que pretenda garantir o exercício da clínica. A orfandade é, talvez, o ponto de aproximação entre a metapsicologia do analista e a do humorista, entendido o órfão11 como “[...] aquele que, não tendo mais nada a perder, aprendeu a rir com a vida” (KUPERMANN, 2005, p. 44-45).

Mesmo Freud, embora depositando ainda grande crença no “poder soberano do instrumento interpretativo” (KUPERMANN, 2005, p. 44) e no papel do analista como substituto de um pai seu tanto severo, atribui ao riso um papel relevante na dinâmica do tratamento, como faz notar em Os chistes e sua relação com o inconsciente:

Muitos de meus pacientes neuróticos sob tratamento psicanalítico demonstram regularmente o hábito de confirmar algum fato pelo riso quando consigo dar-lhes um quadro fiel de seu inconsciente, ocultado à percepção consciente; riem mesmo quando o conteúdo desvelado não justifica absolutamente o riso. Tal fato sujeita-se, naturalmente, a uma aproximação do material inconsciente, íntima o bastante para captá-lo, depois que o médico o detecta e o apresenta a ele (FREUD, [1905] 1977, p. 195).

Esse riso, sugere Birman, pode abrir caminho à desdramatização da narrativa do paciente, de forma a

[...] esvaziar o estilo de seriedade e de fatalidade que os pacientes costumam atribuir aos males que os acossam e [...] retirar momentaneamente a intensidade negativa que alimenta a resistência, possibilitando então a melhor circulação psíquica das experiências dolorosas (BIRMAN, 2005, p. 89).

Poder-se-ia objetar que, em tais circunstâncias, embora o riso se manifeste, não necessariamente está presente o humor no sentido em que Freud o concebe. Afinal, esse humor tem algo de sublime e

[...] nem todos os homens são capazes da atitude humorística; é um dom raro e muitos nem sequer conseguem fruir do prazer humorístico que lhes oferecem (FREUD, [1905] 1977, p. 190).

O humor freudiano é, pois, um dom precioso, não apenas devido ao prazer sutil que proporciona, mas também por conta de sua raridade.

Seja como for, conforme atesta Bernard Nominé,

A clínica demonstra que um sujeito que acede a esse nível de ouvir a alteridade12 do que se diz é logo capturado pelo desejo de saber, e a transferência que disso resulta faz passar ao segundo plano sua dificuldade existencial. A interpretação analítica, que se pôde comparar à estrutura do dito espirituoso, desloca o sujeito. Pode-se esperar de uma psicanálise que ela permita ao analisante tomar distância com relação ao destino sombrio que torna sua existência forçosamente penosa e saber gozar a vida mesmo que ela seja eivada de alguns infortúnios ordinários (NOMINÉ, 2009, p. 90).13

O trecho final desse comentário faz eco à célebre fórmula de Freud, segundo a qual uma análise pode ser considerada bem sucedida se conduzir o sujeito a “[...] transformar a miséria neurótica em sofrimento ordinário”. Essa divisa, aliás, é uma fina amostra do humor freudiano. Percebe-se nela o pessimismo alegre que marca tantas passagens da vida e da obra de Freud.14 Precisamente, essa atitude vital de pessimismo alegre15 é algo que, na opinião do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, falta ao ocidente na atualidade. Para o autor, essa é uma atitude a ser aprendida com outras culturas:

Acho que os índios podem também nos ensinar a aceitar os imponderáveis, os imprevistos e os desastres da vida com o pessimismo alegre. [...] O pessimismo alegre caracteriza a atitude vital dos índios e demais povos que vivem à margem da civilização bipolar que é a nossa, que está sempre oscilando entre um otimismo maníaco e um desespero melancólico. Os índios aceitam que nós somos mortais e que do mundo nada se leva. [...] Se você perguntar para o índio, ele vai dizer: estamos todos fritos, um dia o mundo vai acabar caindo na nossa cabeça, mas isso não impede que você se distraia, que se divirta, que ria um pouco dessa condição meio patética que é a de todo ser humano, em que ele vive como se fosse imortal e ao mesmo tempo sabe que vai morrer (VIVEIROS DE CASTRO; DANOWSKI, 2014).

Também no curso de uma análise aprende-se a entremear ao “sofrimento ordinário” e mesmo à restante “miséria neurótica” – para retomar os termos da fórmula freudiana – a alegria cotidianamente possível. Mas isso não decorre necessariamente da experiência analítica. Como observa Luis Izcovich, citando Lacan, a destituição subjetiva – isto é, a queda dos ideais, a renúncia ao gozo absoluto, a separação dos significantes mestres que vinham orientando a vida do sujeito – está “inscrita no bilhete de entrada da análise” (LACAN, apud IZCOVICH, 2009, p. 72). Já o saber alegre que disso pode derivar, não. Este seria fruto de um modo próprio de relação com a língua e com o significante, um modo sobre o qual se aprende com a poesia.

 

IV

O “saber alegre” ou “gaio saber” torna-se tema em uma fase tardia da obra lacaniana e se vincula ao enquadramento da práxis psicanalítica no plano de uma ética do bem dizer.16 Lacan recupera, nesse passo, a dignidade da ars bene dicendi dos retóricos, os quais sempre foram vistos com suspeita pela tradição, juntamente com os poetas.17 Aliás, é aos trovadores provençais que Lacan faz referência quando alude ao gay sçavoir. É de se notar que, onde o francês contemporâneo escreveria gai savoir, Lacan opta por uma grafia atenta à origem provençal e pré-moderna da expressão. Essa grafia, comenta Michel Bousseyroux (2009, p. 20), permite ler que

[...] há o ça da pulsão nesse saber que torna gaio [àquele que o cultiva], alegre como um moleque, gay com um y vindo do provençal e do gótico, língua em que gaheis quer dizer ‘livre, vivo, impetuoso’.18

A “língua dos pássaros”, utilizada na Idade Média pelos artesãos das catedrais, os boticários, os filósofos, os diplomatas e os trovadores, é um dos recursos caros à gaia ciência. Trata-se de um uso codificado da língua que é capaz de burlar a censura eclesiástica, baseando-se na homofonia entre as palavras (MALGOUYRES, 2009, p. 29). Some-se a isso o deleite estético resultante da arte do bem dizer, especialmente daquela cultivada pelos trovadores. Esse saber do poeta, do qual Lacan convida o psicanalista a levar uma semente,

[...] é o saber alegre, o saber livre e impetuoso da lalíngua, essa língua das palavras retorcidas que nada têm a ver com o dicionário, na qual o inconsciente deita raízes sonoras e da qual o poeta chega a colher a fina flor (BOUSSEYROUX, 2009, p. 22).19

No documentário de Gérard Miller, Rendez-vous chez Lacan, há um depoimento que, possivelmente, exemplifica bem o uso que Lacan faz da homofonia própria à gaia ciência em seu trabalho de analista:

Suzanne Hommel: “Sou da Alemanha e nasci em 1938. Portanto, vivi os anos da guerra com todos os horrores, as angústias, o pós-guerra, a fome, as mentiras. Sempre quis deixar a Alemanha por causa disso. E, desde o início das primeiras sessões, eu perguntei a Lacan: ‘Posso me curar desse sofrimento?’… e, dizendo isso, entendi que não. Eu havia pensado que podia arrancar essa dor de mim com a análise. Não, havia uma maneira de me olhar que me fez perceber: ‘Não. Será preciso fazer isso a vida toda.’ Um dia, numa sessão, contei a Lacan um sonho que tive. Eu disse: ‘Acordo todo dia às 5h’, e acrescentei: ‘Era às 5h que a Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas’. Nesse momento, Lacan se levantou como uma flecha de sua poltrona, veio na minha direção e me fez um carinho muito doce no rosto. Eu entendi: ‘geste à peau’, o gesto…”

Gérard Miller: “Ele transformou a ‘Gestapo’ em um ‘geste à peau’.”

Suzanne Hommel: “Em um gesto carinhoso. Um gesto extremamente carinhoso. E essa surpresa não diminuiu a dor, mas fez outra coisa. A prova, agora, quarenta anos depois, é que eu ainda conto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto. É um gesto tão… é um chamado à humanidade, qualquer coisa assim” (HOMMEL apud MILLER, 2011).

A trilha aberta por Freud em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) conduz à gaia ciência, com Lacan. Num insight cheio de nachträglichkeit, Daniel Kupermann perfaz, virtuoso, um circuito que reúne as pontas dessa linha, ao sugerir, com apoio na etimologia das línguas germânicas, uma aproximação entre o saber alegre na psicanálise, o gay sçavoir, e a engenhosidade do dito espirituoso, o Witz:

Se a palavra Witz, em alemão, remete ao verbo wissen, que significa saber, teríamos, com o humor, uma boa definição para o gaio saber que move o psicanalisar (KUPERMANN, 2005, p. 45).

Com efeito, transformar nossa miséria neurótica em sofrimento ordinário requer, na melhor das hipóteses, a presença desse humor algo sublime, de um pessimismo alegre que balança entre o som e o sentido. Eis aí um humor que parece guardar consonância com a “tristezalegria” vibrante do canto iídiche e, noutra vertente, com certa linhagem da canção brasileira. A propósito, “[...] o samba é pai do prazer, o samba é filho da dor, o grande poder transformador”,20 reza o cancioneiro nacional, verdadeiro compêndio de gaia ciência.21

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Grão Pará, 926/802 - Funcionários
30150-341 Belo Horizonte - MG
E-mail: maranhao.bernardo@gmail.com

Recebido em: 03/03/2015
Aprovado em: 17/03/2015

 

 

Sobre o Autor

Bernardo Costa Couto Maranhão
Psicólogo. Advogado.
Mestre em Teoria do Direito pela PUC Minas.
Candidato em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

 

 

1 Ver, por exemplo, as tirinhas O filho do Freud, de Pacha Urbano, e a entrevista concedida pelo autor a Juliana Caldeira Borges. Cf. BORGES, 2014.
2 Em todo caso, alguns pesquisadores têm desenvolvido trabalhos valiosos sobre o tema. No Brasil, destacam-se o livro Ousar rir, de Daniel Kupermann, fruto de sua tese de doutorado na USP, e a coletânea por ele organizada em parceria com Abrão Slavutzky, intitulada Seria trágico... se não fosse cômico, que reúne textos de autores consagrados. Essa coletânea, lançada em 2005 – ano do centenário de publicação de Os chistes e sua relação com o Inconsciente –, parece ter aberto caminho a uma nova série de estudos sobre humor e psicanálise no País, a exemplo daqueles desenvolvidos no âmbito do CPMG por Ana Cristina Teixeira da Costa Salles, Juliana Marques Caldeira Borges, Maria Mazarello Cotta Ribeiro e Marília Brandão Lemos de Morais, e publicados nas revistas Reverso e Estudos de Psicanálise.
3 Ao comentar os dois primeiros fatores, Mezan (2002, p. 291) ressalta que nada há neles de muito novo, em comparação com outras épocas da história judaica, nas quais a resposta do humor não foi um aspecto eminente. A seu ver, a intervenção do terceiro fator – a Revolução Francesa e o racionalismo que a precede – é a novidade que propicia a gênese do humor judaico como o conhecemos hoje.
4 Hoje, após as reconsiderações a que o próprio Freud submeteu a questão, talvez seja mais acertado pensar, como sugere Kupermann, numa afirmação das potências do erotismo e do desejo: “Estaríamos lidando assim, na questão do humor, não com o triunfo do ego, que se quer imperecível, mas com a afirmação rebelde e teimosa do erotismo e do desejo frente às adversidades do real” (KUPERMANN, 2003 p. 57).
5 Sobre as distinções entre o humor, o cômico e o chiste, ver RIBEIRO, 2008.
6 No original: “Ce quelque chose de sublime se manifeste lorsque le plaisir d’un bon mot, c’est-à-dire la jouissance du signifiant, permet à son auteur transcender le manque à jouir rencontré dans la vie” (NOMINE, 2009, p. 82).
7 No original: “Chez l’humoriste, il s’agit non pas d’un automatisme mais d’un véritable travail sur la langue. Ce travail est sans doute de l’ordre de la sublimation” (NOMINE, 2009, p. 82).
8 Sobre humor e sublimação, cf. SALLES, 2011.
9 O comentário de Macedo prossegue assim: “Se a isso acrescentarmos as demoras de tradução – em francês, esse texto [O humor] só foi publicado em 1994! –, você pode avaliar o estrago, imaginar a quantidade de contrassensos e mal-entendidos, ter uma ideia da extensão do desastre. Por exemplo, você agora tem a possibilidade de entender melhor a união entre os apparatchiks e os boy-scouts do establishment analítico, defensores do templo do Supereu severo, que zelarão para que Ferenczi, Balint, Winicott e Bion – que refletiram sobre as raízes amorosas do Supereu – sejam incluídos na categoria dos excêntricos tolerados. Por outro lado, você pode se dar conta de nossa dívida para com a resistência salutar que esses pesquisadores da psicanálise – junto com muitos outros – opuseram à tolice, ao conformismo, à preguiça mental e à denegação de fatos clínicos indiscutíveis” (MACEDO, 2011, p. 276).
10 Cf. MACEDO, 2011, p. 37-45 e 267-281.
11 Maria Rita Kehl (2005, p. 73), em seu estudo sobre o humor na infância, sugere uma semelhança entre a figura do órfão e a do estrangeiro: “O órfão, no sentido real ou figurado [...], está na mesma condição que o estrangeiro, o forasteiro que não consegue enxergar como naturais as convenções da sociedade que o acolhe”.
12 Nominé indica, algumas linhas acima no mesmo parágrafo, que “o princípio da interpretação analítica é poder ler outra coisa naquilo que se escuta” (Qu’on puisse lire autre chose dans ce qui s’entend, c’est le principe de l’interprétation analytique). Esse comentário se dá no contexto de uma análise da homofonia na obra poética do humorista francês Alphonse Allais, mais precisamente em vista do seguinte dístico de Allais: “Par les bois du Djinn où s’entasse de l’effroi / Parle et bois du gin ou cent tasses de lait froid”. Em português: “Pelos bosques do Djinn onde tudo dá arrepio / Fala e bebe gim, ou cem xícaras de leite frio”, sendo que, no original em francês, é perfeita a homofonia entre o primeiro e o segundo verso.
13 No original: Mais la clinique démontre qu’un sujet qui accède à ce niveau d’entendre l’alterité de ce que se dit est très vite pris par le désir de savoir, et le transfert qui s’ensuit fait passer au second plan sa difficulté existentielle. L’interprétation analytique, qu’on a pu comparer à la structure du mot d’esprit, déplace le sujet. On peut attendre d’une psychanalyse qu’elle permette à l’analysant de prendre de la distance par rapport à la sombre destinée qui lui rend l’éxistence forcément pénible et de savoir jouir de la vie même si elle est émaillée de quelques malheurs ordinaires.
14 Sobre manifestações do humor na vida e na obra de Freud, cf. MORAIS, 2008.
15 A expressão “pessimismo alegre” é aproveitada por Viveiros de Castro dos estudos do filósofo francês François Zourabichvili, que a utiliza originalmente para se referir à obra de Gilles Deleuze.
16 Como observa Philippe Sollers, “Lacan era tudo menos um progressista ou um humanista. Trata-se de alguém que pensava que o ser humano tem verdadeiramente muito más intenções. Ele pensava coisas bastante duras a esse respeito. Um pessimismo transformado, no entanto, em saber alegre. É espantoso: como é possível, ao mesmo, tempo ter um pessimismo tão profundo, tão radical, e levá-lo assim na brincadeira. Porque ele era brincalhão” (SOLLERS, 2002). No original: “Lacan était tout sauf un progressiste ou un humaniste. C’est quelqu’un qui pensait que l’être humain a vraiment de très très mauvaises intentions. Il pensait donc des choses extrêmement raides à ce sujet. Un pessimisme transformé malgré tout en gai savoir. C’est étonnant: comment peut-on avoir à la fois un pessimisme aussi profond, aussi radical, et le prendre un peu à la rigolade quand même. Parce qu’il était rigolo” (SOLLERS, 2002, s .p.).
17 O marco, por excelência, dessa prevenção contra poetas e retóricos é A República, de Platão, na qual estes e aqueles são retratados como corruptores da juventude, subversivos da ordem jurídico-política e indutores dos vícios da alma.
18 No original: “Certes, tel que Lacan l’orthographie, ça donne à lire qu’il y a du ça, de la pulsion, dans ce sçavoir qui le rend gai comme un gamin, gay avec un y venant du provençal et du gothique où gaheis veut dire ‘ libre, vif, impétueux’” (BOUSSEYROUX, 2009, p. 20).
19 No original: “C’est le sçavoir gay, le savoir libre et impétueux de la lalangue, celle des mots tordus qui n’ont rien à voir avec le dictionnaire, où l’inconscient a pris racine sonore et dont il arrive que le poète cueille la fine fleur” (BOUSSEYROUX, 2009, p. 22).
20 Caetano Veloso. Desde que o samba é samba. CD Tropicália 2. 1993
21 Cf. WISNIK, 2004, p. 218.

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