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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.69 Belo Horizonte June 2015

 

ARTIGO

 

Augusta dos Anjos e seu desejo de morte ou como tornar a vida viável

 

Augusta dos Anjos and his death wish or how to make viable life

 

 

Elga Rosalva Silva;I Guiomar Antonieta Lage;I Jane Maria da Silva Cravo; Maria Auxiliadora Toledo Garcia FreireI

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo revisitamos a teoria do trauma, tal como organizada nas obras de Freud e Ferenczi, tangenciando pontos de confluência e de fricção entre elas. Para tanto, apresentamos um caso clínico objetivando clarear essa noção, sabida que é a importância da contribuição da clínica para o desenvolvimento teórico de nossa disciplina.

Palavras-chave: Psicanálise, Trauma, Sedução, Autoclivagem narcísica.


ABSTRACT

This article revisit the trauma theory as organized in the studies of Freud and Ferenczi, identifying points of confluence and friction between them. Therefore we present a clinical case aiming to clear this notion, which is known the importance of clinical contribution to the theoretical development of the psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis, Trauma, Seduction, Self narcissistic cleavage.


 

A Esperança

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.
Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?
Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro – avança!
E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!

AUGUSTO DOS ANJOS

 

Introdução

A paciente Augusta dos Anjos foi encaminhada pelo ambulatório de psiquiatria para atendimento em equipe multidisciplinar, visto se tratar de grave quadro depressivo, refratário a todo tipo de medicação.

Acolhida, Augusta falava baixo, de maneira infantilizada e gaguejando. De olhos fechados, foi enumerando seus sintomas: “Sinto dores no peito, sensação de sufocamento, tem um zumbido e barulho de grilo na minha cabeça, e parece que é choro de criança”. Dizia ver sombras em seu quarto, onde permanecia por quase todo o tempo: “Lá ninguém me incomoda”, justificou-se. Relatava ainda que via sangue em seu banheiro: na pia, no espelho, na banheira e na toalha; que tinha a sensação de respirarem em seu pescoço. Com frequência, batia a cabeça na parede até sangrar, especialmente quando contrariada. Ao longo do tratamento, falava sobre a existência de uma personagem imaginária com quem conversava e se aconselhava, apontando para a sua presença na cadeira ao lado da sua.

Tentou o suicídio várias vezes e a todo o tempo planejava sua morte. Dizia: “Preciso arranjar uma forma que não dê errado”. No entanto, se preocupava em não comprometer os outros, mas de alguma forma atraía a atenção deles para socorrê-la. Essa sintomatologia se repetiu monotonamente, ao longo do tempo e a cada consulta com os profissionais. Durante muito tempo tomou medicamentos e pensou em morrer.

Mas algo foi instalado a partir do momento em que se procurou escutar mais do que o dito. Ao se sentir ouvida pela psicanalista, Augusta dos Anjos podia desfiar a sua história e pensar sobre ela.

Caçula de sete filhos (duas mulheres e cinco homens), Augusta veio ao mundo fruto da relação extraconjugal da sua mãe que, lavadeira de profissão, se prostituía para completar a renda familiar. O marido da mãe, tido e havido como seu pai, era alcoólatra e, segundo Augusta, um fraco: “Só minha mãe é forte. O meu pai era fraco, ele bebia, por isso minha mãe tinha amigos. Ninguém respeitava ele. Ele era tão fraco que minha mãe saía com os amigos dela, e ele não fazia nada. Minha mãe precisava fazer isso”.

Augusta mal dormia à noite. Chorava e vigiava. Temia que a mãe não retornasse, pois cresceu ouvindo-a dizer que iria embora:

Um dia disse que só não tinha ido por minha causa, pois eu ainda era muito pequena. Mesmo tendo falado que não ia por minha causa, se deixasse de me importar, ela iria.

Acompanhava a mãe aos encontros com seus “amigos”. Ela a chamava para ir buscar lenha, deixando-a sentada em algum lugar no meio do mato com a ordem expressa de não sair dali. Augusta conta que esperava muito tempo e tinha muito medo de ficar sozinha.

Só que um dia eu não conseguia dominar o medo. Aí saí procurando por minha mãe. Então presenciei o que ela fazia e por que me fazia esperar. Voltei para o lugar que estava e fiquei quietinha, e não deixei ela saber que havia visto. Estava talvez com nove anos. Quando ia buscar lenha com ela, e já tinha descoberto o que fazia, tentava protegê-la para que ninguém descobrisse, vigiava para que não vissem os dois. Não entendo por que tinha mania de, quando eu falava de coisa séria, ela só falava pra esquecer. Como quando contei que ele havia dito para chamá-lo de pai, ela respondeu: “Esqueça disso”.

Era também costume da mãe deixar os filhos mais velhos tomando conta dos menores quando ia trabalhar. Por muito tempo, “uma eternidade”, segundo Augusta, ela sofreu abuso por parte do irmão de 16 anos.

Ele me dizia: “Vamos brincar” ou “vou te ensinar umas coisas que aprendi com as mulheres de lá” (da zona meretrícia). Ele me machucava e dizia: “Não conte para minha mãe, se contar vou te bater e muito”. Eu não contava porque ela ia sair e eu ia ficar com ele de novo.

Nessa época acompanhava a mãe aos encontros e diz: “Mas eu não sabia o que ela fazia e não entendia o que ele fazia”. Ao ser indagada sobre a relação entre as duas situações, Augusta disse que passou a se sentir suja. Ao descobrirem os abusos que sofria, ela passou a ser protegida pelo irmão mais velho, mas a mãe, de quem esperaria vir o amparo, lhe disse: “Esquece isso, ele é doente”.

Esse irmão, que abusava dela, suicidou-se aos 21 anos. Naquela ocasião Augusta estava com 12 anos, época da sua primeira tentativa de suicídio, ingerindo o Dienpax da mãe: “Não foi por causa dele, ele era mau... Tenho desde pequena vontade de morrer”, justificou-se. Nesse momento a lei da mãe não fez barra, e Augusta atuou, a primeira de uma série de atuações.

Augusta cresceu arredia. Inteligente, ela se sobressaía nos estudos e ajudava colegas nas tarefas escolares mediante o pagamento de um valor em dinheiro. Foi a forma que encontrou de ter um lugar na escola. Na vida sempre se sentia sobrando e pensava que ninguém gostava dela. Diz: “Me sinto sobrando até dentro da minha casa”.

Frequentemente Augusta dizia que a analista e a psiquiatra que a atendiam iriam embora um dia, pois não gostavam dela. Desse modo, ela não podia melhorar, pois corria o risco de perdê-las. E repetia na transferência sua relação com a mãe, ao deixá-las de sobreaviso quanto ao risco de se matar.

Passou a adolescência em seu quarto e tinha poucas amizades. Até que, já cursando o segundo grau, fez amizade com a orientadora da escola, e esse fato, somado à ausência de namorados, suscitou na irmã dúvidas sobre sua orientação sexual. “Como poderia gostar de homem?”, ela pergunta.

Augusta arrumou um namorado com o único intuito de provar que não era homossexual. Ela acredita que tiveram dois encontros, mas engravidou: “Quando descobri que estava grávida, já não estava mais com ele. Não precisava mais dele”.

Tentou se matar novamente tomando veneno de rato. Um local próximo à área hospitalar foi escolhido para tomá-lo, o que facilitou que fosse socorrida. Foi internada e após a alta, foi levada pela mãe e a irmã para abortar: “Não disse que sim nem que não”.

Desse episódio, ficaram as lembranças de um local sujo, de mulheres que diziam que ela era fraca, de uma banheira suja de sangue seco. Desse episódio ficou a pesada culpa que ela sentia, tema de muitos de seus poemas.

Pouco tempo depois começou a dar aulas no ensino público de primeiro grau. Foi quando escolheu um colega de trabalho para namorar: “Era a possibilidade que eu tinha de engravidar novamente e ter outro bebê”. Casou-se e logo engravidou, mas sofreu um aborto: “Eu não entendi, fiz tudo tão certinho”. Um novo episódio depressivo se instalou. Mas logo depois vieram os filhos.

Por 12 anos ficou estabilizada, trabalhando como professora e chegou ao cargo de diretora escolar. Sentindo-se cansada, deixou a direção e logo em seguida se candidatou a um cargo público eletivo. Venceu, mas não pôde assumir, pois novamente se deprimiu.

Chama nossa atenção a ocorrência de três fatos importantes nessa mesma época: (1) A mãe, já viúva, foi procurada pelo pai biológico de Augusta, que lhe propôs morarem juntos. Ela recusou, e ele tentou matá-la. Ele foi levado a julgamento, e a mãe foi chamada a depor. (2) A família se mudou de residência e foi morar em frente à casa da mãe de Augusta. (3) A entrada de sua filha na adolescência.

Qual teria sido a consequência desses acontecimentos na sua vida? Qual o valor deles para a direção do tratamento?

Tudo isso nos mostra como as situações traumáticas se revelaram a tônica na vida de Augusta, e é pelo viés da teoria do trauma que seguiremos com nossa escrita.

 

A teoria e sua articulação com a clínica

Quando ouvimos a palavra “trauma”, nos vem de pronto a ideia de uma ferida profunda, doída, provocada por algo externo sobre o qual não temos controle, para o qual não encontramos explicação e que deixa aturdido e desamparado o sujeito por ele atingido. Vale lembrar que estar desamparado é se sentir abandonado pelo outro de quem se esperava proteção.

Desde Charcot, o trauma era considerado uma irrupção intensa com sérias consequências sobre o psiquismo. A questão não passou em branco para Freud, que testemunhou o trabalho de Charcot e em seus Estudos sobre a histeria (1893-1895), ao lado de Breuer, desenvolveu o método catártico para tratamento do trauma. A defesa freudiana do caráter sexual dos conflitos psíquicos, portanto também do trauma, teve a discordância de Breuer, e ambos tomam caminhos diversos.

Como consequência das novas descobertas, o trauma passa a ser concebido como um corpo estranho, aquele que não encontra lugar na cadeia associativa por representar uma vivência ou impressão de afetos dolorosos que o sistema psíquico não encontraria forma de resolver por meio dos recursos à sua disposição.

O paradigma dessa situação seria a sedução da criança pelo adulto em quem ela confiava, situação vivida de forma submissa e passiva, determinando um sofrimento psíquico: o trauma adviria daí. Freud descobrirá que esses casos traumáticos de sedução não haviam ocorrido realmente e, na Carta 69 a Fliess (1897), afirma definitivamente não acreditar mais em sua neurótica.

O que poderia ter ocorrido se não houve sedução? O conceito de fantasia vem responder a essa pergunta: os desejos inconscientes da criança, dirigidos aos pais, seriam fantasiados por ela, vividos e relatados como verdade. Essa verdade ficcional levará a teoria psicanalítica a defender a existência de uma realidade psíquica tão ou mais importante que a realidade factual.

Esses novos encaminhamentos teóricos têm desdobramento através do desenvolvimento da metapsicologia e das tentativas de desvendar a sexualidade infantil, o que provoca uma mudança importante. As situações traumáticas paradigmáticas passam a ser, a partir daí, a angústia de separação, a angústia de castração, a cena primária e, por fim, o complexo de Édipo, teorização impossível de conceber sem o advento da concepção da existência de conteúdos fantasísticos que a atravessam.

O escrito freudiano Uma criança é espancada (1919), texto princeps da teoria da fantasia, nos encaminhará para a questão da fantasia inconsciente e sua articulação com o sujeito do inconsciente. A noção de trauma evoluiu do evento vivenciado, passando pelo acontecimento como lembrança até a sua substituição pelo conceito de fantasia, cujo aparecimento representa uma reviravolta na maneira de pensar o trauma que a partir daí se torna o eixo central da psicanálise.

Contudo, dados de sua clínica com seus estudos sobre as neuroses de guerra, juntamente com Sándor Ferenczi, apontaram para a não primazia do princípio do prazer. Indagando seus pacientes sobre a repetição dos sonhos traumáticos da neurose de guerra, bem como sobre as repetições na clínica de eventos desprazerosos e articulando seus achados clínicos com a teoria, Freud se deparou com situações em que a vigência do princípio de prazer não se sustentava.

Observou ele que, ao contrário do que se esperava, o paciente repetia aquilo que lhe trazia desprazer. A conclusão de que havia um além apontava para a compulsão à repetição como um princípio de funcionamento psíquico. Em Além do principio do prazer (1920) Freud opera uma torção introduzindo o conceito de pulsão de morte.

Estabeleceu-se a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte. E com a definição de estruturas do id, ego e superego, a noção de trauma adquiriu referências intrassistêmicas e pulsionais.

Aquilo que insiste pela sua articulação com a pulsão, aquilo que repete seu conteúdo leva Freud a introduzir o conceito de Nachtraglich, ou seja, o passado retornado, o efeito retardado, o a posteriori, e com Lacan o après-coup.

Ferenczi comunga com as ideias freudianas até determinado ponto, pois nunca abandonou a teoria da sedução, uma sedução calcada na genitalidade e na confusão de línguas entre o adulto e a criança. Ele defenderá, em seu texto Confusão de línguas entre os adultos e a criança (1933) que

[...] mesmo crianças pertencentes a famílias respeitáveis são com mais frequência do que se ousaria pensar, vítimas de violências e de estupro (FERENCZI, [1933] 2011, p. 116).

O psicanalista assinala que

[...] a objeção à teoria da sedução [...] objeção, a saber, que se trataria de fantasias da própria criança [...] perde lamentavelmente a força em conseqüência do número considerável de pacientes,em análise, que confessam ter mantido relações sexuais com crianças (FERENCZI, [1933] 2011, p. 116).

O autor afirma que, ao brincar com um adulto amado, a criança usa a linguagem da ternura, enquanto o adulto, usando a linguagem da paixão, pode vê-la como alguém que atingiu a maturidade sexual e, dependendo de suas “tendências psicopatológicas” (FERENCZI, [1933] 2011, p. 116), pode tomar as brincadeiras como anuência da criança.

O factual teria importância cabal na teoria ferencziana. A partir daí ele apresentará o conceito de introjeção do agressor como fator neurotizante quando a agressão deixa de existir externamente, e a criança tenta recuperar a situação de ternura anterior.

O agressor, via de regra, se comporta como se nada houvesse acontecido. E a criança é colocada em um estado tal de confusão e culpa que minará sua capacidade de confiar em seus sentidos.

Para Augusta o irmão dizia: “Vou te ensinar umas coisas que aprendi com as mulheres de lá” (da zona meretrícia). E a mãe dizia para Augusta: “Esquece isso”. O desamparo se apresenta quando essa criança não é levada a sério pelo adulto que reputa o relato a meras tolices.

Revendo este caso clínico, fizemos alguns apontamentos referentes a momentos que consideramos cruciais, traumáticos na vida dessa mulher. Tomemos a contribuição de Ferenczi, em seu texto A criança mal-acolhida e sua pulsão de morte (1929).

Como se teriam dado a concepção e o nascimento de Augusta? Sabemos que o sujeito começa a existir na fala dos pais, no desejo deles em relação a quem está por vir. A partir de sua história podemos pensar que Augusta não fora desejada por sua mãe. Ela teria sido “um hóspede não bem-vindo na família”. Afinal, ela era a prova cabal das traições da mãe.

Ferenczi afirma que crianças nessa situação estão sujeitas à intensificação da pulsão de morte e facilmente podem morrer. Como não foi esse o caso de Augusta, vemos, então, a pulsão se manifestando na sua desconfiança de estar sempre “sobrando”; de não gostarem dela; por um terrível e insistente desejo de morrer manifestado seja nos frequentes planos de morte, seja nas tentativas de autoextermínio (a primeira aos 12 anos e, posteriormente, aos 21 anos), seja nas incursões em meio ao trânsito intenso pelas vias onde passava, aproveitando o descuido do seu acompanhante, seja na tentativa sempre sinalizada de ingerir quantidades maiores da medicação.

Tudo em sua vida foi traumático. Como ela mesma certa vez declarou: “Conheço muita gente que sofreu uma coisa ou outra. Mas tudo junto?!”. Partindo de sua pergunta, indagamos: Que efeitos traumáticos o eu poderia ter sofrido e que gerariam seu aniquilamento? Com essa história de vida poderíamos supor que ela enlouqueceria tamanha a “confusão de línguas”.

Em O trauma e seus destinos, Ana Lila Lejarraga (1996) defende a noção da clivagem do eu, postulada por Freud, como aquela que mais se aproxima das alterações ocorridas no ego como efeito do trauma. Entretanto, a autora sustenta que não é Freud, e sim Ferenczi quem desenvolve a teoria do trauma, relativamente aos traumas infantis, naquilo que eles têm de desestruturantes, colocando no centro da teoria a ideia de “autoclivagem narcísica”, de “fragmentação do eu”. Ou seja, para sobreviver ao trauma sem inscrição, o sujeito destrói uma parte de si para que o resto sobreviva.

Pensamos que todos os sucessos alcançados por Augusta – sair-se bem na escola como aluna, professora, diretora, e como mãe e esposa – ficam mais bem compreendidos se os tomamos a partir da perspectiva ferencziana.

Entendemos que os sintomas característicos de uma afecção mais grave, quais sejam, visão de sangue e vultos, sensação de respirarem em seu pescoço (fantasias alucinatórias próprias da histeria), são uma defesa do ego.

Desamparada pela mãe, que lhe dizia para esquecer tudo que lhe acontecia, e pelo pai, que a deixava à mercê dessa mãe, ela se segurou no simbólico (vendia seu saber aos colegas, mais tarde escrevia poemas) e no imaginário (a amiga imaginária), para sobreviver. E conseguiu.

Ela ficou estabilizada por doze anos, período que contempla o casamento, a criação de filhos, o trabalho reconhecido. Eleita vereadora, não pôde assumir, pois estava novamente acometida por sério episódio depressivo.

O que teria ocorrido para desencadear nova e tão grave recaída? Coincidentes com o período de seu adoecimento estão os três fatos importantes e anteriormente descritos:

(1) O julgamento do amante expondo para a sociedade a vida dupla da mãe e da qual era testemunha, e expondo para Augusta o desejo da mãe, e não sua necessidade: “Ela não precisava mais fazer aquilo. Por que ela abriu a porta?”.

(2) A mudança de residência com o propósito de cumprir a promessa feita a si mesma de cuidar da mãe e, onde ela marca a torção feita: “Mas é ela que cuida de mim. As coisas se inverteram” Augusta resgatava o cuidado materno desejado por ela, mas pagando o alto preço cobrado pela neurose.

(3) A entrada de sua filha na adolescência que, podemos pensar, teria reativado a sua própria adolescência marcada pelo encontro com o traumático Real do sexo. Indagada, pela analista, sobre como aquilo a tocou, respondeu perguntando: “E o que isso tem a ver?”.

Essas três situações indicam o Nachtraglich, o efeito retardado, o a posteriori, agora revistos dentro da análise, possibilitando a elaboração e a reescrita de sua vida.

Podendo falar das suas feridas, antes numa posição vitimizada e depois, a muito custo, podendo falar da raiva sentida em relação à mãe e se culpando por isso, Augusta abriu caminhos para a criação (de novo modo de vida?). Aquilo que não podia ser interpretado, por carecer de representação, pedia inscrição sob outra forma.

E Lejarraga nos lembra que Freud, em seu texto Construções em análise (1937), é quem vem ao nosso socorro ao nos mostrar que nem tudo pode ser interpretado num processo analítico, já que nem tudo foi inscrito no campo das representações.

Desse modo, Freud propõe o recurso da construção quando o processo de deciframento se torna ineficaz, uma vez que não se constituíram os traços a ser decifrados.

É exatamente num processo analítico que se pode construir, criar traços, inventar fantasias para promover a inscrição psíquica, ligando Eros e Tanatos.

Foi na transferência que Augusta pôde atualizar as primeiras cenas de sedução como também os desamparos infantis sofridos. O processo analítico permitiu a representação do insuportável excesso de afeto; permitiu construir a partir do vazio e transformar o horror instaurado pelo trauma em força de criação.

Uma sessão foi escolhida para marcar a articulação teoria e clínica: “Eu me sinto muito irritada com as pessoas. Quero machucá-las e, pra não fazê-lo, bato com minha cabeça na parede”. A analista pergunta: “E por que elas te irritam?” “Não sei”, ela responde.

Então, a analista lembra-lhe da sua irritação em relação às colegas da loja onde aprendia trabalhos manuais, porque elas lhe mostravam aquilo que ela ainda não dava conta de fazer: rir, brincar, conversar, etc.

E Augusta responde: “Eu disse isso? Não me lembro. Eu fico surpreendida como você se lembra de mim. Eu achava que, quando eu saísse pela porta, você só se lembraria de mim quando eu voltasse”. “E o que significa isso pra você?”, a analista pergunta. “Não sei, isso é novo para mim”, ela responde.

E a vida seguiu seu rumo. Reformou sua antiga casa e para lá retornou. Desejava voltar a dirigir o carro (e a própria vida), comemorou bodas de prata, tornou-se oficineira na instituição em que se tratava, não “gaguejava” mais, a amiga imaginária desapareceu.

Teve uma recaída diante da tentativa do filho de ingressar na vida política, para vereador, chegando a ser internada, mas elaborou o ocorrido e logo saiu. Recebeu alta e foi orientada a buscar análise em sua cidade.

Viver tornou-se viável!

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Elga Rosalva Silva
Rua Alagoas, 1270/301 - Savassi
30130-160 - Belo Horizonte - MG
E-mail: elgarosalva@yahoo.com.br

Recebido em: 10/03/2015
Aprovado em: 17/03/2015

 

 

Sobre as Autoras

Elga Rosalva Silva
Psicóloga. Psicanalista.
Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Guiomar Antonieta Lage
Psicóloga. Psicanalista.
Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Jane Maria da Silva Cravo
Dentista. Psicanalista.

Maria Auxiliadora Toledo Garcia Freire
Psicóloga. Psicanalista.
Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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