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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.69 Belo Horizonte June 2015

 

ARTIGO

 

Mensagens codificadas no corpo: é possível decifrar?

 

Codified messages in the body: is it possible to decode?

 

 

Léa Meilman

Faculdade Newton Paiva

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Piercing e tatuagem são considerados “marcas da contemporaneidade”. Têm implicações com o olhar do outro. Essas intervenções no corpo só se tornam objeto da psicanálise quando se constituem um sintoma e/ou traduzem um conflito.

Palavras-chave: Intervenções corporais, Imagem corporal, Piercing, Tatuagem, Olhar, Narcisismo, Estádio do espelho, Dor, Gozo.


ABSTRACT

Piercing and Tattoo are considered expressions of modern times. There are implications with the look of the other. These interventions on the body only become a matter of Psychoanalysis if/when they constitute a symptom or represent a conflict.

Keywords: Body interventions, Body image, Piercing, Tattoo, Look, Narcissism, Looking-glass-phase, Pain, Enjoyment.


 

Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro.
MACHADO DE ASSIS. O espelho.

 

Considerações preliminares

É importante comentar que a questão do OLHAR do outro já se constitui em preocupação com a qual convivo desde 1995, quando li no livro de Jean Guir sobre psicossomática o seguinte:

Depois de pesquisas junto a dermatologistas, os cegos de nascimento são praticamente imunes às afecções de pele, o que permite afirmar que a imagem do outro está implicada neste processo. [...] mancha cutânea tem por efeito atrair e fixar a atenção dos que o cercam, permitindo ao sujeito observar o olhar dos outros sobre ele. A focalização no aspecto cutâneo permite evitar o cruzamento dos olhares, e assegura ao portador da afecção um domínio sobre a imagem do outro (GUIR, 1988, p. 40-41, grifos nossos).

 

Introdução

É notório o crescente interesse pelo corpo, a partir das últimas décadas. A discussão sobre o corpo se justifica ao pensarmos na importância dos novos sintomas corporais, que vêm ocupando espaço em nossa clínica.

Esquematicamente, poderíamos agrupar tais sintomas em dois grandes conjuntos:

1. Transtornos na percepção da imagem corporal;

2. Abusos na exploração das sensações corporais.

No primeiro conjunto estariam:

• distúrbios alimentares;
• fisiculturismo compulsivo;
• correção estética cirúrgica compulsiva;
piercings e tatuagens compulsivos e/ou desmesurados;
• ansiedade de exposição (síndrome de pânico e fobias sociais).

No segundo conjunto estaria:
• dependência química de drogas lícitas ou ilícitas.

Vamos tratar de piercings e tatuagens, modificações corporais que estão inseridas num vasto campo temático. É algo que causa estranheza, apesar de familiar. Mas é sempre através do OLHAR do outro que as inquietações são experimentadas. São marcas definitivas, feitas com dor e que deixam cicatriz.

Convém lembrar que são consideradas “marcas da contemporaneidade”, embora existam desde a pré-história, na escassa bibliografia de psicanálise produzida sobre o tema.

Faremos um breve retrospecto histórico, com o objetivo de contextualizar essas intervenções sobre o corpo na nossa cultura.

Considerando que tais transformações privilegiam o hedonismo, mesmo que produzam dor e prazer, simultaneamente, ligado à imagem do corpo que, não por acaso, necessita do olhar/reconhecimento do outro para referendar as mencionadas transformações, trataremos do narcisismo como ponto de sustentação teórica da psicanálise.

 

Considerações históricas

Já foi dito por estudiosos que “a tatuagem é, em certa medida, o reflexo cutâneo de um modo de funcionamento social”. Nas sociedades primitivas, existia espaço para a manipulação do corpo, espaço que passou a faltar na tradição cristã ocidental. A Igreja Católica sempre tendeu a demonizar tais práticas, pois as considera como uma violência feita ao “corpo natural”, uma injúria à criação.

Eis uma contradição: com a colonização e a cristianização dos povos ditos primitivos, a modificação corporal é localizada no terreno do proibido ou da transgressão, e mais, caracteriza o mundo selvagem, não civilizado. Já entre os selvagens, a decoração é a expressão de sua civilização.

É fato que piercing e tatuagem provocam mal-estar na cultura ocidental. Talvez o sentimento seja derivado da moral do Cristianismo, que sacralizou o corpo como tendo sido criado à imagem e semelhança de Deus.

É curioso observar que algumas dessas intervenções têm o endosso da medicina, como os implantes de silicone, as dietas, procedimentos ditos científicos, efetivados pela ação e com o respaldo da ciência médica oficial, e outras são colocadas à margem, como formas mais radicais de piercing, inscrições corporais, como cicatrizes e o stretching (abertura e alargamento de orifícios em determinadas partes do corpo, como língua e orelha).

Entendemos modificações corporais como toda ação de um indivíduo ou de outro, autorizado por ele, ou por algum tipo de pacto grupal e laço social sobre o seu corpo, com intenção de transformá-lo em sua materialidade, de modo visível e pretensamente definitivo.

Sendo o corpo lugar de prazer e dor, uma discussão sobre a sexualidade passa, necessariamente, por ele.

A palavra “tatuagem” foi introduzida no Ocidente, mas é um termo proveniente da Polinésia (tatou quer dizer desenho). A origem do piercing e das tatuagens é muito antiga. Data do período neolítico. Foram encontrados fósseis de um caçador nos Alpes (1991) que apresentava tatuagens nas costas e atrás dos joelhos. Também foram achados fragmentos de pele, com cerca de seis mil anos, tatuados com motivos abstratos. Na Grécia clássica, os escravos eram tatuados com o nome de seu senhor. No Império Romano, os legionários levavam em seus corpos o nome do general que os comandava. A moda atingiu os aristocratas: por exemplo, George V, da Inglaterra, chegou a usar piercing nos genitais. São inúmeras as referências a sinais corporais na realeza, como expressão de marca divina (flor-de-lis, cruz) que os soberanos portariam em determinadas regiões do corpo.

Na Polinésia, o uso de tatuagem é conservado, seguindo uma das tradições mais antigas do mundo. Trata-se de um fenômeno social e cultural, mais ou menos elaborado, constituindo-se numa prova iniciática. Repertório de atos importantes da vida, marca guerreira e símbolo de coragem, signo de integração ao grupo e de identificação entre as tribos, a “tatuagem integral” efetua-se ao longo da vida dos polinésios.

Em outros locais, as marcas designavam os marginais: o herege, o judeu, a prostituta, o carrasco, o leproso – todos os que se situavam à margem da prática cristã instituída. Como exemplo, citamos o brinco na orelha, que servia para marcar a mulher judia. Aos poucos, o adereço foi incorporado e assimilado de forma mais abrangente e, hoje, ninguém identifica mais o piercing de orelha como equivalente aos piercings/ perfurações de outras partes do corpo.

O piercing ainda é associado ao primitivismo tribal. Na África negra, o corpo precisa ser marcado para existir. Os anéis, as pinturas e as escarificações cobrem o corpo do indivíduo, dando-lhe uma identidade. Sem esses elementos, a nudez o deixaria vulnerável. Portanto, além da suposta função ornamental, essas marcas trazem reconhecimento social e religioso, às vezes funcionando como amuletos e proteção.

As tatuagens relatam acontecimentos importantes, sinalizam a condição social ou marital e o pertencimento a um grupo. A sacralização do corpo pelas religiões monoteístas ocasionou o surgimento da operação simbólica de interdição. As marcas na pele ou no corpo seguem o mesmo princípio da coleção.

Portanto, as funções da tatuagem são:
• social (representação do totem do sujeito);
• comemorativa (ex.: puberdade);
• luto (na morte de parente ou amigo);
• mágicas (como condição de proteção);
• terapêuticas (ex.: incisões na coluna em suposto tratamento de artrite);
• ornamentais;
• expiatórias.

É importante ressaltar que as marcas corporais na Idade Média representavam a infâmia e a marginalidade. Foram proscritas socialmente como desonra. O retorno ao seu uso no Ocidente se deu na época das grandes navegações, por intermédio dos marinheiros.

A partir do fim do século XIX, marinheiros, circenses, prostitutas, prisioneiros, homossexuais passaram a se tatuar por iniciativa própria. Com a forma de organização social contemporânea, o marginal passa a ter valor pela exceção. O uso começa a se disseminar entre os jovens.

Ao longo da história, percebe-se que o uso das marcas corporais constitui registros contraditórios: serve tanto para enobrecimento quanto para degradação. É curiosa a insistência de seus retornos, depois de seus banimentos pela vigência do monoteísmo na cultura ocidental.

 

Considerações psicanalíticas

O termo “narcisismo” foi utilizado pela primeira vez por Freud numa nota acrescentada aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1910), ao falar dos invertidos: “[...] tomam-se a si mesmos como objetos sexuais”. Freud considerou o narcisismo um estádio normal da evolução sexual.

Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) Freud definiu o narcisismo como a atitude resultante da transposição, para o eu do sujeito, dos investimentos libidinais antes dirigidos aos objetos do mundo externo.

Freud propôs a existência de uma fase da evolução sexual intermédia, entre o autoerotismo e o amor de objeto, que seria o narcisismo: “O indivíduo começa por tomar a si próprio, seu próprio corpo, como objeto amoroso” (FREUD, [1910] 1975, p. 83). Poderíamos dizer que uma nova ação psíquica é demandada do sujeito.

Vamos nos recordar como é construída a imagem corporal recorrendo a Lacan, que em 1936 denominou “estádio do espelho” um momento psíquico da evolução humana, situado entre os primeiros seis a dezoito meses de vida, durante o qual a criança antecipa o domínio sobre sua unidade corporal, através de uma identificação do semelhante e da percepção de sua própria imagem num espelho. Essa experiência pode se dar tanto diante de um espelho, como diante de outra pessoa; é estruturante do sujeito, mas ainda no nível do imaginário. A vivência do corpo despedaçado (morcelé), anterior à fase do espelho, cede lugar a uma primeira demarcação de si, por um processo de identificação ao outro.

Freud mostrou que “olhar-se” vem antes de “olhar”. Lacan formulou o “fazer-se olhar”.

Jean Guir (1988) pensou que uma falha no início do estádio do espelho leva o sujeito a “completar” sua imagem vacilante com o revestimento de um pedaço do corpo do outro sobre sua face (o primeiro objeto de mimetismo seria a mãe). Antes de seis meses, a criança tem de seu corpo uma imagem despedaçada. Suas relações objetais, ou seja, com o outro diferenciado dela mesma, não estão ainda estabelecidas. Entre os seis meses e os 18 meses, a imagem do corpo se determina, e o estádio do espelho esboça a evolução do recém-nascido em direção à autonomia e à sua posição de sujeito, que ele afirma mais tarde dizendo “eu”. Uma evocação desse período de maturação deficiente da infância deve, segundo Guir, acarretar lesões. Esse desdobramento orgânico terá, por efeito, atrair e fixar a atenção do meio, permitindo ao sujeito observar os outros olhando-o.

Em 1931, o psicólogo Henri Wallon (1879-1962) deu o nome de “prova do espelho” a uma experiência pela qual a criança, colocada diante de um espelho, passa progressivamente a distinguir seu próprio corpo da sua imagem refletida.. Essa operação dialética se efetuaria, segundo Wallon, graças a uma compreensão simbólica, por parte do sujeito, do espaço imaginário em que ele forjava sua unidade. Na perspectiva de Wallon, a prova do espelho especificava a passagem do especular para o imaginário e, em seguida, do imaginário para o simbólico.

Gostaria de mencionar, como curiosidade, algo que ocorreu no Congresso da IPA, de Marienbad, em 1936: Lacan expôs pela segunda vez sua tese sobre o estádio do espelho. Interrompido por Ernest Jones, ao cabo de alguns minutos, ele esqueceu de entregar sua comunicação, que se perdeu. Desse primeiro texto, conservaram-se apenas algumas notas, tomadas por Fraçoise Dolto. Mais tarde, Lacan integrou alguns trechos de sua conferência num texto muito longo, dedicado à família, e publicado em 1938, na Encyclopédie Française, a pedido de Henri Wallon. O tema “estádio do espelho” foi objeto de uma nova comunicação no congresso da IPA, realizado em Zurique, em 1949, sob o título O estádio do espelho como formador da função do Eu (“Je”), tal como nos é revelada na experiência psicanalítica.

Voltemos à tatuagem – marca – que pode ser um representante de uma ligação entre o olhar e o endereçamento de um pedido de decifração. Na passagem para a adolescência, a forma de marcar a pele como suporte de uma singularidade poderá se tornar coletivizável, na medida em que captura o olhar do outro e pode conferir uma identidade ao olhado.

Há experiências sociais nas quais a tatuagem imprime anonimato, por exemplo, tatuagens de números no braço, realizadas no maior campo de concentração nazista, Auschwitz. Novamente aparece um paradoxo: o ato que, costumeiramente, suscita o erotismo e é precondição de uma singularidade socialmente estabelecida passa a ser utilizado na organização nazista como instrumento necessário de deserotização e de despersonalização, pelo qual o corpo torna-se um dejeto sem representação e destinado ao desaparecimento, tal como preconizado pela proposta da solução final sustentada desde 1942 pelo Reich. Temos aí a ambiguidade contida na tatuagem: idealizado versus degradado.

Freud, em Análise terminável e interminável, nos diz: “Às vezes nos sentimos inclinados a duvidar se os dragões dos tempos pré-históricos estão realmente extintos” (FREUD, [1937] 1975, p. 261).

Inspirada na carta-resposta escrita por Freud para uma senhora norte-americana, que resume a postura que ele mantinha há muito tempo em relação à homossexualidade, tecerei algumas reflexões a respeito de piercing e tatuagem. Antes, porém, gostaria de compartilhar com os colegas um trecho da carta publicada por Peter Gay (1989).

Freud diz assim:

Percebo pela sua carta que seu filho é homossexual. Estou profundamente impressionado com o fato de que a senhora não menciona pessoalmente este termo, em suas informações sobre ele. Posso lhe perguntar por que o evita? [...] A homossexualidade certamente não é uma vantagem, [...] mas não é nada de se envergonhar, não é um vício, não é uma degradação, não pode ser classificada como uma doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual, produzida por determinada suspensão do desenvolvimento sexual. [...] Muitos indivíduos altamente respeitáveis dos tempos antigos e modernos foram homossexuais, [...] entre eles, vários dos maiores homens. (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime – e também uma crueldade. Se a senhora não crê em mim, leia os livros de Havelock Ellis (FREUD apud GAY, 1989, p. 551).

E Peter Gay comenta:

Seria difícil responder se poderia ajudar o filho de sua missivista a se converter num heterossexual “normal”, mas ele podia oferecer ao rapaz [...] (GAY, 1989, p. 551).

[...] harmonia, paz de espírito, rendimento pleno, quer continue homossexual ou se transforme (FREUD apud GAY, 1989, p. 551).

Baseada na carta escrita por Freud, se pudermos extrapolar, com alguma ousadia, para a questão do narcisismo, sou levada a pensar que pode haver algo análogo no desenrolar do processo. Dito de outra forma, segundo Freud, na evolução sexual existem três fases:

1. Autoerotismo;
2. Narcisismo (fase intermédia);
3. Amor de objeto.

No processo em que o indivíduo começa por tomar a si mesmo, ao seu próprio corpo, como objeto de amor, suponho que possa ter se produzido uma suspensão do desenvolvimento sexual. Exprime-se num registro arcaico, alimenta um fantasma primitivo, cria defesas rudimentares para se proteger dos perigos irrepresentáveis da primeira relação. Existe a necessidade de preencher um vazio, de forma concreta e palpável – no corpo, na sua materialidade. A falha ocorreu no processo de simbolização, que não se efetivou (suspensão).

E é nesse estranhamento/familiar que o sujeito busca restaurar algo, restabelecer uma experiência que se deu no vácuo, no oco. O indivíduo apresenta a condição de pagar com a própria carne, buscando através da dor, no sacrifício e na cicatriz o motivo de gozo.

Nesse ponto se instituem as ambiguidades, as contradições, os paradoxos, já apontados no decorrer do trabalho. O indivíduo vai buscar reconhecimento, provocando transformações em seu corpo que visam ao olhar do outro. O corpo será depositário do estranho, já que é arquivo e registro da singularidade.

Talvez valha a pena repensar o sexual no mundo contemporâneo, a partir da experiência corporal e de seus efeitos sobre a subjetividade. A experiência do corpo vai além do sexual, e produz efeitos sobre a sexualidade do indivíduo, já que o corpo é um lugar privilegiado, onde se dão as experiências de prazer e dor: território do sexual e, também, região de fronteira, limiar entre dentro e fora, natureza e cultura, eu e outro.

Para encerrar, gostaria de trazer uma ilustração, de autoria de Contardo Calligaris, retirada da crônica intitulada Fama e narcisismo, publicada na Folha de S.Paulo, em 15 mar. 2007:

Em uma “sociedade narcisista”, a invisibilidade é mais intolerável que a prisão. Na conversa leiga, “Fulano é narcisista” significa que ele adora se ver no espelho e nunca pensa nos outros.

Na clínica, o sentido da expressão é diferente: o traço dominante da “personalidade narcisista” é a insegurança. Narcisista é quem está sempre se questionando: “O que os outros enxergam em mim?” Será que gostam do que veem?”

Em ambos os casos, o narcisista se preocupa com sua imagem. Mas, na conversa leiga, ele seria apaixonado por ela (como Narciso do mito), enquanto, segundo a clínica, ele seria dramaticamente atormentado pelo sentimento de que sua imagem depende do olhar dos outros.

De fato, a clínica tem razão: no espelho, enxergamos sempre e apenas o que os outros veem (ou o que imaginamos que eles vejam). O mesmo mal-entendido aparece quando a gente constata que vive numa “sociedade narcisista”.

Na conversa leiga, essa constatação soa como uma queixa moral: estaríamos vivendo no mundo do “cada um por si”. A clínica sugere o contrário: numa sociedade narcisista, cada um depende excessivamente dos outros. Somos desprovidos de essência: sou filho SE meus pais me amam, sou pai SE meus filhos gostam de mim, sou psicanalista SE pacientes e colegas me reconhecem. [...] O espelho que nos define não é o de Narciso, é o da bruxa de Branca de Neve, um espelho que interrogamos, ansiosos.

[...] uma vontade dolorosa de despertar um olhar de reconhecimento não só no público, mas nos seus familiares, ausentes e indiferentes. Era como se eles estivessem dispostos a qualquer coisa para deixar, enfim, de ser invisíveis: “Riam de mim, mas ao menos me vejam”. Pode parecer paradoxal que alguém tente chamar a atenção (do pai, da mãe, da irmã, e do mundo) expondo-se ao ridículo e ao fracasso.

Mas, aparentemente, acontece que escárnio e zombaria são um preço aceitável por um (triste) momento de fama.

Uma analogia talvez nos ajude a entender. As estatísticas dizem que há mais jovens que adultos delinquentes. Justificação tradicional (além da “testosterona” da adolescência): os jovens andam em grupo.

Portanto, é frequente, no caso deles, que haja mais de um réu por crime.

Certo. Mas também tudo indica que os jovens delinquentes são presos mais facilmente que os adultos. Não é imperícia: parece que, de uma certa forma, eles se deixam prender, como se o gesto transgressor tivesse como finalidade última o encontro com a polícia e o juiz. Por quê?

Para a dramática insegurança do narcisismo (aqui no sentido clínico), uma condenação ou um fracasso humilhante apresentam uma vantagem parecida: ambos são preferíveis ao silêncio do outro. Num mundo em que a gente só existe pelo olhar alheio, a invisibilidade é mais intolerável do que o escárnio ou a prisão.

Para concluir, podemos pensar nas afecções de pele, de origem supostamente psicossomática, que buscam atrair o olhar do outro. Assim como o piercing e a tatuagem. Como ressalta Calligaris, mesmo que o preço a pagar seja elevado – escárnio ou zombaria, é um preço aceitável para que se consiga despertar e atrair o olhar do outro.

Eis que, senão quando, houve um ganho secundário.

Chamamos a atenção para o fato de que piercing e tatuagem são intervenções procuradas voluntariamente e consentidas pelo indivíduo. Só se tornam objeto da psicanálise quando e se constituem um sintoma e traduzem um conflito.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Rio Grande do Norte, 355/309 Funcionários.
30130-130 - Belo Horizonte - MG.
E-mail: leameilman@gmail.com

Recebido em: 22/03/2015
Aprovado em: 24/03/2015

 

 

Sobre a Autora

Léa Meilman
Psicóloga.
Psicanalista (formação iniciada em 1985, no CPMG).
Membro do CPMG de 1991 a 2008.
Professora de Psicossomática da Pós-Graduação da Newton Paiva

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