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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.70 Belo Horizonte jun. 2015

 

ARTIGO

 

Nijinsky: o sujeito psicótico no registro simbólico da arte

 

Nijinsky: the psychotic subject in the symbolic register of art

 

 

Adriana Cajado Costa;I Alexandre Fernandes CorrêaII, III

IUniversidade Estadual do Rio de Janeiro
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro
IIICRISOL - Pesquisas em Estudos Culturais, Urbanos e Humanidades

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresentamos uma reflexão sobre os fenômenos psicóticos e os investimentos pulsionais possíveis na produção de Outra Cena no campo da linguagem, quando a ‘palavra-coisa-ação’ do sujeito psicótico denuncia a falência do simbólico. A partir de O diário de Nijinsky, escrito durante seus surtos psicóticos, é trabalhada a hipótese de que a produção em nome próprio no universo da arte permite a sustentação do sujeito psicótico no registro simbólico e sua permanência na potencialidade sem ser impelido à foraclusão.

Palavras-chave: Arte, Psicose, Outra Cena, Linguagem.


ABSTRACT

Reflections on the psychotic phenomenon and the possible drive (trieb) investments in the production of Another Scene in the field of language when “word-thing-action” of the psychotic citizen determines the bankruptcy of the symbolic. From Nijinsky's diary, written during his psychotic episodes, is crafted the hypothesis that production in his own name in the world of art allows the support of the psychotic subject in the symbolic register and his/her stay in the potentiality without being driven to foreclosion.

Keywords: Art, Psychosis, Another Scene, Language.


 

 

No decorrer do texto1 respondemos a duas indagações: Por que tentar compreender o processo psicótico de um sujeito a partir de sua produção textual, quando ele padeceu de inúmeros períodos de foraclusão? Qual foi sua singular relação com a arte da dança que permitiu ao artista permanecer por anos na potencialidade criativa sem produzir nenhum delírio?

Essas questões pontuais norteiam o estudo. Nosso objetivo é analisar a dimensão do sentido quando aquele que nos fala recorre a um diário e o publica, no intuito de se fazer comunicar com o maior número possível de pessoas. É o que se depreende do desejo do bailarino: “Peço ao povo suíço para tomar conta de mim. Quero publicar este livro na Suíça” (NIJINSKY, 1985, p. 159).

O diário de Nijinsky foi escrito entre os anos 1918-1919, e nele o bailarino discorreu a respeito de suas crenças delirantes de ser a corporificação de Deus, com o fito de ensinar aos homens a verdade e sua missão no mundo. Foi nesse período que recebeu o diagnóstico de esquizofrenia, com internações em vários hospitais psiquiátricos europeus. Com apenas 30 anos desligou-se definitivamente da dança e da própria realidade.

Nijinsky nasceu em 1890 e faleceu em 1950. Viveu longos sessenta anos. Vinha de uma família de bailarinos por parte de pai e mãe. Sua formação foi voltada exclusivamente para o balé. Nunca cursou nenhuma escola formal. Em 1912, ingressou na Companhia de Diaghilev,2 de quem foi amante.

Ao pensar a relação entre Nijinsky e Diaghilev, propomos refletir sobre o lugar simultâneo (pai/amante) que esse empresário parece ter ocupado na vida do bailarino. Mistura de pai e amante, Diaghilev conciliou para si o lugar do poder, fazendo de Nijinsky um corpo pulsante e alienado no Outro que deliberadamente repudiava o pensar.3 Essa trama está narrada em O diário, que se divide em três partes: vida, morte e sentimentos. Tal divisão não se mostra fiel ao texto, as temáticas são recorrentes, e os conteúdos circulam: num polo persecutório figura Diaghilev; noutro polo maníaco a figura de Deus-Nijinsky.

Nossa reflexão foi construída a partir da leitura flutuante do diário, ancorada no que Aulagnier (1989) denominou de “teorização flutuante”,4 procedimento a ser executado após a sessão do paciente. Nunca antes ou durante. Essa abordagem interpretativa se encaixa com o que Freud ([1912] 1987, p. 150) defendeu: “Não se deve esquecer que o que se escuta, na maioria, são coisas cujo significado só é identificado posteriormente”.

Nossa hipótese interpretativa é a seguinte: o ser humano demanda uma relação com o Outro, demanda falar e ser escutado, demanda sentido. Sua linguagem é simbólica e se ancora numa cena, numa imagem para poder produzir a palavra. Nijinsky encontrou seu sentido não na fala, mas na linguagem do corpo, que fala na dança. Quando perdeu sua ligação com essa cena, que possibilitava sua linguagem, produziu outra fala – a fala do delírio com sua inscrição no diário publicado na esperança de recuperar sua ligação com o Outro e com o sentido.

A possibilidade oferecida pela escuta psicanalítica – habitar espaços psíquicos relacionais inscritos nas marcas do corpo, muitas vezes apresentados como desconhecidos ou figurados como inimigos – é imprescindível para que o sujeito saia do lugar do não sentido e caminhe para a significação.

A escuta psicanalítica, que se constitui a partir de uma atenção flutuante, permite ao analista se posicionar numa perspectiva teórica que acentua a analogia entre os mecanismos do inconsciente e os da linguagem. Então, seria essa a semelhança estrutural entre todos os fenômenos inconscientes, que é preciso deixar funcionar o mais livremente possível na atitude de escuta psicanalítica.

Portanto, a escuta permite a construção de uma Outra Cena. Nesse particular, Mannoni (1995) sustenta que a criação permite que o evento perturbador possa ser repetido numa Outra Cena e, assim, produzir a posteriori5 uma nova relação com a história passada. Essa Outra Cena pode ser compreendida como uma “[...] disposição psíquica em que se pavoneiam as imagens” (MANNONI, 1995, p. 47).

Por trás do desejo de investigar talvez sempre exista a esperança de modificar ou mobilizar algo, produzir mudanças. Estar presente e voltado ao outro para escutá-lo, poder lhe proporcionar um encontro consigo e a possibilidade de se ver único produzindo construções que façam sentido para si e para outrem.

O psicótico possui uma imagem do ego-corporal fragmentada: ora separado do outro por isso estilhaçada, ora mergulhada com o outro no lugar de objeto que demanda que o outro deseje.

Aulagnier (1989, p. 120-121) escreveu acerca dessa presença:

[...] escutar como analista induz uma presença total no que acontece nesse fragmento do tempo que compartilhamos com o outro, presença ainda mais intensa quando estamos lidando com sujeitos, psicóticos ou não, cuja fala exige essa espécie de osmose, tenho vontade de dizer, com a escuta do interlocutor deles.

Em nossa sociedade, todo aquele que não está compartilhando o sentido comum é rechaçado ou excluído.6 Esta palavra – louco – logo aparece no discurso social para falar daquele que está em desordem quando comparado à maioria. Assim, a busca de sentido para aquele que recebe tal denominação se torna a meta principal do seu Eu, que incansavelmente o busca sem ser reconhecido ou escutado.

A escuta analítica, então, pode criar o lugar de reconhecimento desse sujeito:

[...] escuta que prova para o sujeito que seu discurso merece ser escutado, e que se suas construções delirantes não são compartilháveis não é porque lhes falte sentido mas porque esse sentido permanece oculto para os interlocutores (AULAGNIER, 1989, p. 58).

O conceito de potencialidade é introduzido no pensamento psicanalítico por Piera Aulagnier definido como uma disposição psíquica. Nos anos 1980, a psicanalista reformula a noção de potencialidade:

O conceito de potencialidade engloba os ‘possíveis’ do funcionamento do eu e de suas posições identificatórias, uma vez terminada a infância (AULAGNIER, 1989, p. 228).

A potencialidade pode assumir três formas distintas: neurótica, psicótica e polimorfa, resultando defesas correspondentes. Há, então, a defesa neurótica, a psicótica e, no caso da potencialidade polimorfa, duas outras defesas: a perversa ou a somática.

A potencialidade neurótica é percebida como um conflito do Eu em relação aos seus ideais. A polimorfa ou mista se dá no interior do Eu e entre o Eu e seus ideais. Já a potencialidade psicótica se conjuga num conflito identificatório no interior do Eu, entre as dimensões identificada e identificante.

A dimensão identificada do Eu corresponde a tudo aquilo que veio antes de o Eu se instalar e que fazia referência ao sujeito. Tudo aquilo que foi sua história e que a mãe lhe contou, se transformou para o sujeito num ponto de ancoragem.

A dimensão identificante se forma quando o Eu já se reconhece como tal e já pode continuar a contar sua história. É aquilo que muda, que faz parte do que se aprende com os outros.

Na psicose a dimensão identificante não reconhece a história contada pelo outro a seu respeito. Portanto, não reconhece a dimensão identificada do seu Eu. Isso resulta na incapacidade do projeto identificatório desse sujeito continuar seu percurso, pois a todo o momento o delírio vem tentar tamponar o buraco deixado na sua história que, por ter ocorrido antes, fala da origem.

Na psicose a busca pela origem se torna o centro de preocupação e investimento do Eu. O conteúdo do delírio pode auxiliar o analista a pensar uma gama de sentidos dos quais o sujeito poderá vir a se apropriar. Aulagnier elabora e refina sua reflexão:

Designamos pelos termos de esquizofrenia e paranoia dois modos de representação que, sob certas condições, o Eu forja de sua relação ao mundo, construções que têm como traço comum o fundarem-se em um enunciado sobre as origens, que substitui aquele que é partilhado pelo conjunto dos outros sujeitos (AULAGNIER, 1979, p. 176-177).

Acrescenta ainda que o qualificativo delirante para essas produções se apoia no entendimento de que tais construções abrigam uma ordem causal contraditória à lógica segundo a qual funciona o discurso do meio (AULAGNIER, 1979, p. 177).

Já o conceito de Outra Cena permite pensar a função da dança7 como veículo de sustentação de Nijinsky na potencialidade, ou seja, assegurava o sentido e impedia a foraclusão.8 A arte permitia que sua prática produzisse contribuições figurativas estruturantes. Sua preocupação obcecada com o cenário do espetáculo, sua preparação para encarnar o personagem e a sensação, sentida pelos outros; ele era aquele ou aquilo que representava no palco ao dançar.

Esses são elementos que nos apontam um sinal positivo: apropriação visceral que o transformava na personagem, viscosidade da libido que prejudicava a simbolização e determinava a presença imediata do objeto. Ao parar de dançar, delira incansavelmente.

Sua via de descarga libidinal (e por que não dizer sublimatória) numa dimensão necessária mas não suficiente – a dança – foi suprimida. Com sua potencialidade não mais apaziguada, o delírio se manifestou, e o sujeito psicótico foi progressivamente se ausentando do mundo. A potencialidade deixa de existir quando não há mais um Outro a corresponder aos sentidos do sujeito.

Para que a potencialidade psicótica não desemboque no delírio manifesto, é preciso que o discurso e o Eu encontrem um ponto de ancoragem possível na voz de um Outro e não mais dos outros, e que este tenha a função que o texto desempenha para os outros (AULAGNIER, 1979, p. 213).

A leitura flutuante de O diário vem ocupar a dimensão do que não se sabe, vem fazer uma reflexão de casos excepcionais que raramente batem à nossa porta. Fundamentados nas suas biografias, nos filmes e vídeos produzidos sobre sua obra, e orientados pelos textos freudianos e pelas contribuições de Aulagnier, podemos pensar nesse sujeito como portador de um funcionamento psicótico, que agregava momentos esquizofrênicos e paranoicos.

Sua relação com a linguagem verbal – a palavra – é pobre, e ele mesmo reconhecia sua dificuldade em falar, em buscar palavras que lhe façam sentido. Afirmava não reconhecer a própria língua materna. Nijinsky afirmava entender todas as línguas. Em outros momentos confessava não entendê-las mais.

Numa carta para Jean de Reszké escreveu em polonês:

Sinto muito, mas sou incapaz de escrever muito bem em polonês [...] Sei que está ciente de que sou polonês [...] (NIJINSKY, 1985, p. 69).

Em outra carta, direcionada à mãe, inicia em russo e finaliza em polonês. Seus pais eram poloneses, mas ele nasceu na Rússia.

São inúmeras as passagens em que faz afirmações contraditórias acerca de sua língua materna. Reclamava que na Escola não lhe ensinaram o sentido das palavras.

Sabe-se que entrou na Escola Imperial aos 10 anos e não foi bom aluno nas disciplinas relacionadas a língua, geografia e história. Para se formar como bailarino, alguns arranjos tiveram que ser feitos. Pode-se pensar no que Aulagnier define como “palavra-coisa-ação”.9

Nessa peculiar apropriação da linguagem – patrimônio partilhado que nos traz sentido – o psicótico se encontra na esfera do inominável, intraduzível. Diante da ausência de sentido, um “a mais” é posto em ação. Estamos falando da criação psicótica, vista por Aulagnier como uma maneira peculiar de trabalho de reinterpretação. O delírio surge como obra de um Eu que funciona com falhas. A dança, assim, assume o lugar da linguagem, seu “meio de comunicação” com os outros, e esse outro é um outro que parece estar num lugar idealizado e ao mesmo tempo indiferenciado: “Sou um artista que canta através da dança” (AULAGNIER, 1979, p. 71).

Vasse (1985) lembra que a escuta do psicótico requer um olhar que vá além da fala do psicótico, que se direcione também para o sintoma do analista, para o que o analista “escucha con su cuerpo”.

No caso de ler-escutar um diário recorremos às repercussões sobre aqueles que mais se aproximaram desta história; uma maneira de pensar essa escuta.10 Nós mesmos, ao ler sua história biográfica, somos afetados por sensações de euforia, desencanto e rebeldia. Todos esses sentimentos provocam também sensações desagradáveis no corpo. Inquietações profundas.

Ao recorrer à escrita do diário, Nijinsky dá provas de sua necessidade de ser escutado. A dança não faz mais parte de sua vida. A Primeira Guerra começa, e os espetáculos são suspensos. Seu meio de comunicação é retirado. Seus delírios ganham força e espaço. Mas quer ser ouvido:

A vida inteira de minha mulher e de toda humanidade é morte. Estava chorando e pensei o quanto seria adorável se minha mulher me escutasse (NIJINSKY, 1985, p. 45).

No que ele queria ser escutado ao falar tudo o que pensava de si e dos outros? Ao falar tudo que pensava, não conseguia ter o direito de silenciar. Direito que viabiliza o fantasiar como forma de alcançar prazer no pensar e, por isso, meio de continuar a investir nessa função. O ato de fantasiar requer o reconhecimento de um mundo real (exterior) e de um mundo psíquico (interior), no qual nem todos os pensamentos são colocados em ação para responder ao princípio da realidade. Há uma gama de pensamentos que vem responder também ao princípio do prazer.

Fantasiar e guardar segredo desse momento de prazer solitário é uma necessidade psíquica para que o investimento na capacidade de pensar se atualize. Esse segredo faz parte da capacidade e da possibilidade do Eu pensar e investir em suas funções, na relação com seu corpo, com os outros corpos, com a psique desses outros corpos e com o mundo. Tal capacidade resulta no processo de significar as experiências de maneira a partilhar sentidos comuns.

Para Aulagnier (1991) o psicótico, em sua maioria, delira sua origem, busca construir uma história sobre seu passado: os laços que sustentaram o desejo do seu pai e de sua mãe, se foi desejado ou não, se foi amado, se veio ocupar um lugar de amor ou ódio na cena familiar:

[...] são tão frequentes no delírio os temas ligados a uma espécie de pré-história mítica, espécie de reconstrução delirante das origens do mundo, como se, por não poder encontrar seu lugar numa história familiar, o psicótico procurasse um sentido para seu ser num início que – por que anterior a toda história humana – ser-lhe-ia o único permitido e acessível (AULAGNIER, 1991, p. 13).

O que seria mais ligado às origens míticas do mundo do que Deus? Nijinsky, ao delirar sua origem como vinda de Deus para fundar no mundo o amor, encontrou um lugar para si. Lugar que só é ocupado por Deus no corpo Nijinsky. Sua função, tão nobre e idealizada, é comparada com a de Jesus Cristo, enviado por Deus para salvar os pecadores.

Através da teoria de Aulagnier, elaborada ainda nos anos 1960, pode-se interpretar a narrativa mitológica construída pelo dançarino sobre suas origens. Construindo uma história heroica, idealizada e vinculada à imortalidade, preenche um vazio. Quando no discurso parental o falar sobre a origem do sujeito é faltoso das nomeações dos elementos que ocupam o sistema de parentesco – marcando um buraco na linguagem fundamental –, o Eu do sujeito recorrerá a uma interpretação dessa violência. Violência que se caracteriza por um excesso do porta-voz que decreta para a criança “[...] só pensar o que já foi pensado por ela” (AULAGNIER, 1979, p. 194).

Nesse jogo irrealizável, pontuado pela autora, será impedido à criança o acesso conciliável com a história do desejo ou do ódio que circularam no momento de sua chegada ao mundo. Contrariamente ao psicótico, o neurótico criará uma teoria infantil da sexualidade. No caso do psicótico isso não será possível. Em vez disso, teremos a teoria delirante primária focalizada na temática da origem:

Graças à presença do pensamento delirante primário, concebido como um enunciado que preenche um buraco do discurso, poderá elaborar-se uma teoria sobre a origem que chamaremos a teoria delirante primária (AULAGNIER, 1979, p. 201).

Essa teoria é resultado de um pensamento delirante primário, que interpreta a violência materna como causada por algo diferente da mãe, mantendo-a, assim, como ‘suporte libidinal necessário’:

[...] interpretação que liga a origem a uma causa incompatível aos modelos segundo os quais o meio funciona (AULAGNIER, 1979, p. 204).

Por isso, esse pensamento não faz referência ao sistema cultural e de parentesco, como fazem as crianças neuróticas em relação ao romance familiar e na dúvida, por exemplo, de quem é seu pai. Fantasias fazem parte da teoria infantil acerca da origem.

Todo o material escutado pela criança, daquilo que se refere ao lugar que ocupa para os pais nos seus investimentos, será utilizado para compor a dimensão identificada do Eu desse sujeito. Esse material compõe o universo de significação de sua existência. É a partir desse entendimento que:

A criação de uma significação, compatível com o ‘escutado’ e com a exigência identificatória do Eu será a tarefa do ‘pensamento delirante primário’ e da ‘teoria delirante infantil sobre a origem’, tornando sinônimos conflito e desejo, situação de casal e situação de ódio, e estabelecendo como causa das origens e de sua própria origem o conflito de desejos (AULAGNIER, 1979, p. 246).

Neste ponto o ódio pode ser investido, ou seja, pode-se erotizar o sofrimento, mas além disso investir numa relação perseguidor-perseguido. Desse modo, podemos afirmar: Nijinsky ao dividir a figura paterna em bom e mau, polariza em Deus uma causa de sua origem e em Diaghilev um perseguidor, um objeto a ser odiado. Temos o conteúdo desse delírio circunscrito nessa dimensão do odiar ou do ser instrumento, objeto, sacrifício de um Deus, que denuncia um ódio materno o fato de a criança pensar em segredo, desejar outras coisas, ou seja, constituir-se ser autônomo. Deus é essa mãe que sabe o que seu filho está pensando, ele sabe de tudo.

Ao levar esse odiar em consideração Aulagnier escreve:

Se a origem da existência, de si próprio como do mundo remete ao estado de ódio, o sujeito só poderá se preservar vivo e só poderá preservar a existência do mundo na medida em que persiste algo a ‘odiar’ e alguém que o ‘odeia’ (AULAGNIER, 1979, p. 247).

Em texto recente, Nafia Yaghen-Vial (2000) defende a ideia de que a dança servia para Nijinsky como veículo de comunicação com os outros. Era sua maneira de dialogar com o social, com o cultural, com essa dimensão propriamente humana.11 No item La danza como espacio del ser, a autora salienta:

La danza es el medio privilegiado de expresión en Nijinsky. A manera de hipótesis, se puede establecer que la danza es un lenguaje no verbal; en donde la música reemplaza la palavra y se establece como limite. En este limite el bailarín transmite la esencia de la obra por medio de sus gestos y su movimiento corporal. Esta conformación del espacio de la danza y sus limites fue probablemente lo que permitió a Nijinsky tener un efecto de contención en cuanto a su estructura psíquica (YAGHEN-VIAL, 2000).

Ao romper com seu mentor, sua via de comunicação fica dificultada. Nijinsky não consegue erguer sua própria companhia de balé e desiste de dançar. Ao perder seus dois pontos de ancoragem, cai mudo. Recorrer ao diário não seria uma forma de recuperar uma linguagem com os outros?

A linguagem é o processo simbólico por excelência pelo qual se inscreve o humano no discurso parental, social e cultural. É dela que signos são interiorizados para auxiliar a psique a construir representações do vivido.

O discurso parental traz consigo a marca da vivência edípica desses signos, por isso Aulagnier (1979) afirma que o Eu é uma instância historicizada, antecipada e estruturada pela linguagem. O discurso materno vai falar de um “antes” do Eu, sua dimensão identificada, que pode ser formulada em termos de investimento ou desinvestimento. O discurso paterno deve introduzir o tempo novo da simbolização.

A linguagem fundamental, segundo Aulagnier (1979, p. 60), é a totalidade do discurso que tem função identificatória e se subdivide em: (1) nomeação dos afetos; (2) nomeação dos elementos no sistema de parentesco e seu lugar relacional na cultura em questão.

Nessa linguagem fundamental o que fica interditado para o sujeito psicótico é o acesso à temporalidade, ou seja, ao segundo subconjunto, aos signos que irão nomear cada elemento do sistema de parentesco. Daí a confusão de Nijinsky não só entre si e Deus, o fauno, o touro, a marionete; mas também em relação a Diaghilev.

A dança cumpria seu papel de continente, serviu como veículo de linguagem, pois, como afirmava, pouco conhecia os sentidos das palavras. A impossibilidade de usar a dança como linguagem em Outra Cena o impediu de produzir sentido, e sua falha permitiu a eclosão dos fenômenos psicóticos.

Aliada permanente da música, a dança coloca em ação a pulsão invocante que força uma resposta, ou seja, deseja que o outro deseje que ele deseje. Escrever acerca do que se pensa, quando esse pensar é delirante, constitui uma busca incansável pela Outra Cena na linguagem.

Mannoni (1995, p. 14) conclui:

Se a construção delirante pode afigurar-se numa tentativa de cura, a transposição de uma angústia de viver, de um trauma, para uma Outra Cena, através da escrita, tem um efeito libertário.

Por fim, o objetivo deste estudo foi pensar nos caminhos que o sujeito psicótico Nijinsky construiu para permanecer na potencialidade. Certamente a dança foi seu universo de significação, foi sua Outra Cena na linguagem. Linguagem atravessada por continentes não só parentais, mas também históricos, sociais e culturais, que precisam ser incorporados numa escuta aberta e aprofundada.

A clínica das psicoses merece aprender com Nijinsky, precisa incluir técnicas e uma escuta discreta e atenta à construção de Outras Cenas que possam contribuir na construção de sentido e desalienação do sujeito no Outro.

 

Referências

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YAGHAN-VIAL, N. M. L. B. Un caso para la clínica de las psicosis: Vaslav Nijinsky. Disponível em: Estados Gerais da Psicanálise. 2000. http://www.oocities.org/hotsprings/Villa/3170/NafiaMarianne.htm. Acesso em: 15 jun 2015.         [ Links ]

 

Bibliografia

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LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (Campo Freudiano no Brasil).

VASSE, D. La escucha del psicótico. Madri: Gedisa, 1985.

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Henrique Daumas Sobrinho, 150/202 - Glória
27933-320 - Macaé - RJ
E-mail: alexfcorrea@ufrj.br

Recebido em: 09/05/2015
Aprovado em: 06/07/2015

 

 

Sobre os Autores

Adriana Cajado Costa
Psicóloga e psicanalista.
Especialista e Mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP).
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise (UERJ).

Alexandre Fernandes Corrêa
Sociólogo e antropólogo.
Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP).
Docente Associado da UFRJ-Macaé.
Coordenador do CRISOL - Pesquisas em Estudos Culturais, Urbanos e Humanidades (DP/CNPq).

 

 

1Texto finalizado após o falecimento de Adriana Cajado Costa. Homenagem póstuma.
2Diaghilev (1872-1929) foi empresário artístico russo, fundador dos Ballets Russes, companhia de bailado na qual surgiram muitos famosos dançarinos e coreógrafos.
3Em inúmeras passagens do seu diário o autor nega sua capacidade de pensar, separando-a da mente, do sentir e da inteligência: “Chamo de mente aquele centro gerador de sentimentos” (NIJINSKY, 1985, p. 161).
4Aulagnier define: “Momento de corte entre pensamento teórico e escuta clínica, mas corte que é apenas aparente. Permanece oculto para nós, neste último caso, o trabalho de ligação subterrânea que relaciona o que escutamos no hic et nunc de nossos encontros clínicos e as aquisições sedimentadas graças ao trabalho de teorização flutuante, latente às vezes, que nos permitiram escutar algo novo, e escutá-lo enquanto tal” (AULAGNIER, 1989, p. 17, grifo nosso).
5“Experiências, impressões, traços mnésicos que são ulteriormente remodelados em função de experiências novas, do acesso a outro grau de desenvolvimento. Pode então ser-lhes conferida, além de um novo sentido, uma eficácia psíquica” (LAPLANCHE, 1992, p. 33).
6Nessa direção temos apresentado trabalhos sobre a criação literária interpretando os signos do exílio e terra natal nas obras de alguns poetas brasileiros. Com destaque para as poéticas de Dante Milano e Nauro Machado (CORRÊA, 2012; 2013a; 2013b).
7Nafia Yaghen-Vial (2000) defende a ideia de que a dança assumia para o bailarino sua única via de comunicação com os outros; ao ser afastado dela, cronifica-se.
8Termo que remonta à Werwerfung freudiana, é utilizado para tratar de uma operação na qual algo é rejeitado. No seminário As psicoses, Lacan ([1955-1956] 1985, p. 174) apresenta o conceito de foraclusão como “[...] um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de significantes”. Trata-se de uma foraclusão de um significante primordial, o significante Nome-do-Pai, ou seja, “[...] a introdução do significante do pai introduz desde já uma ordenação na linhagem, a série das gerações” (LACAN, [1955-1956] 1985, p. 359), introduz também um lugar na linguagem.
9Aulagnier (1979) trabalha a ideia de que o analista recebe o discurso psicótico como “palavra-coisa-ação”. O analista tende a responder a esse discurso com um modelo anacrônico, que na maioria dos casos remete ao silêncio. Dessa resposta do analista depende a existência de um processo anterior ao primário – o originário, que estaria influindo com seus efeitos no discurso psicótico.
10Leituras que são retomadas em diferentes momentos de nossa pesquisa. Dois textos contêm reflexões preliminares sobre o Diário (COSTA, 2000; 2006).
11O tema da elaboração simbólica no trajeto mitológico moderno é abordado no texto Análise cultural do torrão dos infernos: imaginário do mal nas poéticas de Dante Milano e Nauro Machado (CORRÊA, 2012).

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