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Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.37 no.70 Belo Horizonte jun. 2015

 

ARTIGO

 

De olhos bem abertos

 

Eyes wide open

 

 

Carlos Antônio Andrade Mello

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em uma história rica de personagens e acontecimentos, o texto se detém na figura de um menino míope, cuja limitação visual o coloca em desvantagem não só no núcleo familiar, tratado pelos irmãos como “o bobo”, destituído do nome paterno, mas também em relação aos mistérios do mundo, levando a pensar que sabia mais do que suportava e temia a contemplação plena e ofuscante do universo das paixões, do sexo, da dor e da morte.

Palavras-chave: Pulsão escópica, Alienação, Não-saber, Morte, Medo da castração.


ABSTRACT

In a story rich in characters and events, the text lingers on the figure of a myopic boy, whose short-sight puts him in disadvantage not only within his family, in which his siblings treat him as “the fool” and he is deprived from fatherly name, but also to what concerns the misteries of the world, leading him to think that he knew more than he could bear, and to fear the full and glaring contemplation of the unverse of passions, of sex, pain and death.

Keywords: Scopic drive, Alienation, Unknwoledge, Death, Fear from castration.


 

 

Voltando ao Mutum, crismado, abençoado pelo bispo do anel vermelho, mal chegava à casa, Miguilim não escapava ao cerco:

– Você foi crismado, então como é que você chama?
– Miguilim...
– Bobo! Eu chamo Maria Andrelina Cessim Caz. Papai é Nhô Bernardo Caz! Maria Francisca Cessim Caz, Expedito José Cessim Caz, Tomé de Jesus Cessim Caz... Você é Miguilim Bobo... (ROSA, 2001, p. 32).

Excluído da nomeação familiar, alcunhado de Bobo, retraía-se, depreciado reduzido à obscuridade. Era esse o lugar que parecia ocupar na teia familiar – o de bobo, daquele que nada sabe, permitindo e precisando de que os outros saibam por ele e que, de um Outro, venham tantas certezas, como a confirmação de sua existência ou a formulação de um simples desejo.

Com que satisfação ouvira a informação que tanto gostaria de levar à mãe, como um presente: “[...] o que o homem tinha falado – que o Mutum era lugar bonito [...] (ROSA, 2001, p. 28).

Miguilim se apresenta como o menino que de nada sabia, talvez porque mal avistasse o mundo à sua volta. Vivia, como que, num espaço próprio, na ignorância das pequenas coisas, e só lhe cabia contar com o saber do outro, que esse outro fosse quem fosse, até mesmo e quase sempre, seu irmão mais novo ainda, o Dito.

Assim, “[...] o Dito era menor, mas sabia o sério, pensava ligeiro nas coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo” (ROSA, 2001, p. 35). Ele sabia de tudo, era consultado e opinava de bom grado. Era o menino que, para Miguilim, sabia demais, portando uma resposta para tudo, como gente grande.

Não saber das coisas da vida era o que talvez resultasse numa intimidade atemorizante com a morte cuja ideia era ameaça costumeira, vivenciada em segredo e silêncio no seu mundo sombrio e na solidão coabitada.

Essa morte pressentida para si, com data marcada, sufocando-o de angústia na contagem regressiva, se concretizou ali, bem perto, levando de seu mundo o Patori, o Dito, Luisaltino e, finalmente, o Pai.

Estou inclinado, portanto, a aderir ao ponto de vista de que o medo da morte deve ser considerado como análogo ao medo da castração e que a situação à qual o ego está reagindo é de ser abandonado pelo superego protetor – os poderes do destino – de modo que ele não dispõe mais de qualquer salvaguarda contra todos os perigos que o cercam (FREUD, [1926/1925] 1976, p. 153).

Não, Miguilim definitivamente não queria mesmo saber das coisas do sexo das gentes e dos bichos, maliciadas pelo Patori e pelo Liovaldo, e parecia o único a fazer vista grossa ao romance entre Mãe e Tio Terêz, causa de cortante tristeza para ela e do afastamento do tio, seu amigo, alguém que tanto se aprazia em levá-lo a sério.

Em sua sensibilidade extremada, ele era alvo do escárnio da meninada, da violência implacável do pai e da inércia da mãe em defendê-lo. Assim, para lidar com a sina de adversidades à sua volta, parece que escamoteava a existência dos afetos com o semblante de uma ingenuidade indisfarçável.

Construía em torno de si um não querer saber e, favorecido pela miopia, que lhe permitia não querer ver, nos leva a pensar que sabia mais do que suportava e temia a contemplação plena e ofuscante do universo das paixões, do sexo, da dor e da morte.

Quanto a esse temor, o da visão exposta a todos os riscos, em A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão, Freud considera:

Se um órgão que serve a duas espécies de instintos aumenta seu papel erógeno, é de se esperar, em geral, que tal não ocorra sem a excitabilidade e a inervação do órgão, passivo das alterações, que se manifestarão na forma de perturbações de suas funções a serviço do ego. De fato, se descobrirmos que um órgão que serve normalmente à finalidade da percepção sensorial começa a se comportar como um genital real quando se intensifica seu papel erógeno, não nos parecerá improvável que nele também estejam ocorrendo alterações tóxicas (FREUD, [1910] 1976, p. 203, grifo do autor).

Segundo Lacan ([1964] 1995),

Nessa matéria do visível, tudo é armadilha (p. 92).
[...] o que se trata mesmo é de enganar o olho. Triunfo, sobre o olho, do olhar (p. 101).

Amadurecido à força, à custa de tanto sofrimento, de pressentir tão de perto a própria morte e, por ela arrebatados tantos figurantes de sua história, Miguilim parece reconciliado com a vida.

Como numa virada de página, lhe surge o recurso da ciência – lentes que lhe permitem enxergar as pequenas coisas do mundo e, como lentes que são, ensinam-lhe mais sobre todas elas, sobre as pequenas coisas do mundo.

Afinal, “[...] o Mutum era bonito! Agora ele sabia” (ROSA, 2001, p. 152).

Via e enxergava. Com seus próprios olhos bem abertos.

 

Referências

FREUD, S. A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão (1910). In: ______. Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos (1910 [1909]). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 193-203. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11).         [ Links ]

FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926 [1925]). In: ______. Um estudo autobiográfico, inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e outros trabalhos (1925-1926). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 95-201. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 20).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

ROSA, J. G. Manuelzão e Miguilim. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. (Corpo de baile).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 283/1502 - São Lucas
30140-000 - Belo Horizonte - MG
E-mail: carlosaamello@gmail.com

Recebido em: 07/08/2015
Aprovado em: 11/08/2015

 

 

Sobre o Autor

Carlos Antônio Andrade Mello
Psicanalista.
Sócio efetivo do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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