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Reverso vol.37 no.70 Belo Horizonte jun. 2015

 

ARTIGO

 

De Freud a Lacan: uma leitura da estabilização nas psicoses

 

From Freud to Lacan: a reading of stabilization in psychosis

 

 

Tereza Raquel Tomé Adeodato;I Laéria FonteneleI, II

IUniversidade Federal do Ceará
IICorpo Freudiano - Seção Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo por horizonte o lugar da estabilização na clínica das psicoses, pretendemos destacar os principais desenvolvimentos realizados por Freud – acerca dos mecanismos psíquicos de base das psicoses – e por Lacan, que empreendeu significativos avanços teóricos e clínicos quanto ao seu tratamento possível pela psicanálise, impulsionados por suas concepções de metáfora paterna e delirante. Consideramos que ambos, cada qual a seu modo, colaboraram para o exame do problema do desencadeamento e da estabilização nas psicoses e, mais fundamentalmente, da psicose com a criação.

Palavras-chave: Psicose, Estabilização, Delírio.


ABSTRACT

Having as context the place of stabilization in the clinic of psychosis, we intend to highlight the main developments made by Freud, concerning the basic psychic mechanisms of psychosis, and by Lacan, who undertook significant theoretical and clinical advances on the treatment that can be made by psychoanalysis, driven by his conceptions of paternal and delirious metaphor. We consider that both, each in his own way, contributed to a better understanding of the problem of triggering and stabilization in psychosis and, more fundamentally, of the role of creation in this process.

Keywords: Psychosis, Stabilization, Rave.


 

 

Introdução

Freud participou ativamente do debate acerca das psicoses, em voga em sua época. Dialogou com Bleuler, Binswanger, entre outros, e tomou a paranoia como modelo para a reflexão sobre as psicoses em geral. Nesse contexto, forneceu importantes contribuições à compreensão das psicoses, tais como a delimitação da gramática da paranoia, revelada a partir de sua análise do delírio de Schreber; a retomada das psicoses já articuladas com o conceito de narcisismo; a realização, a partir da sua metapsicologia, do exame das psicoses em relação à sua doutrina das representações.

Entretanto, não realizou esforços para proporcionar o avanço do tratamento psicanalítico das psicoses por considerá-las refratárias ao método que criara para tratar as neuroses, o qual tinha como condição o estabelecimento da transferência, que estaria comprometida nas psicoses dado o modo de organização libidinal narcísico nelas presentes.

Foi Lacan que, amparado pelas bases lançadas por Freud, deu mais esse passo. E hoje é consensual entre psicanalistas a ideia de que não podemos, como ponderou, nos furtar do trabalho para com as psicoses.

Lacan ampliou ainda o entendimento das relações entre a criação envolvida na produção metafórica e as psicoses, ao relacionar a metáfora paterna com a metáfora delirante (esta viria a se constituir em suplência daquela) e contribuiu sobretudo para pensarmos tanto o lugar do saber produzido pelo trabalho do delírio para a construção da metáfora delirante (o que implica criação significante) quanto o lugar da criação, em seu sentido artístico, para a promoção da estabilização e/ou a suplência da foraclusão do significante do Nome-do-Pai, que defendia ser o fundamento da estrutura psicótica.

Em sua esteira, sobretudo a partir das teses desenvolvidas em seu Seminário 23 (1975-1976 2007), diversos autores contemporâneos, entre os quais destacamos Guerra (2010), Lacet (2004), Laurent (1991), Leader (2013), Miller (2007), Quinet (2011), Soller (2007), se dedicaram direta ou indiretamente a demonstrar o modo como a criação em geral e a criação artística em particular contribuem para a estabilização das psicoses, inclusive a partir da referência a casos exemplares.

Numa pesquisa em andamento acerca da clínica das psicoses nos chama atenção o papel desempenhado pela criação – na paranoia e na esquizofrenia – para dar lugar, no âmbito psíquico, àquilo que, não estando aí inscrito, retorna a partir do real. Além disso, observa-se que a criação artística também se mostrou profícua em muitos casos para proteger os pacientes da angústia proveniente dos fenômenos alucinatórios e delirantes que os atormetam, apresentando com isso nuances da relação da criação com o tratamento das psicoses.

 

Psicose e estabilização em Freud

No Rascunho H, Freud ([1895] 1996) define a paranoia como uma psicose intelectual a partir de seu paralelo com as obsessões: ela seria o resultado de uma operação de defesa fracassada em virtude da conservação de um afeto alinhado à projeção do conteúdo de sua representação.

A consequência desse fracasso seria a produção das alucinações ao mesmo tempo hostis em relação ao eu e amistosas no que diz respeito à defesa. Essa dimensão positiva assumida pelas alucinações já indicava o quanto elas são caras aos sujeitos psicóticos – e isso levou Freud a afirmar que eles as amam como a si mesmos.

Isso explicaria a função reparadora de seu aspecto negativo (sua incompatibilidade para com o eu). Por outro lado, a consideração pelo lugar ocupado pelo trabalho para com as ideias permite o desvelar da dimensão lógica envolvida na produção do delírio e sua função corretora da falha da defesa.

Com o estudo do inconsciente realizado a partir de sua interpretação dos sonhos, Freud ([1900] 1996) evidencia que o processo primário se manifesta na deflagração da psicose, o que na neurose está presente nos mecanismos responsáveis pela formação dos sonhos.

Assim, alucinação e sonho se utilizam do mesmo mecanismo em sua constituição. Com isso, aproxima o que a psiquiatria da época mantinha em disjunção: por um lado, o normal; por outro lado, o patológico. Em seus estudos de metapsicologia, precisamente no seu ensaio dedicado ao inconsciente diferencia, a partir de sua doutrina da representação, as neuroses das psicoses.

Na medida em que o inconsciente se mostra claramente à consciência na psicose, Freud ([1915] 2004) argumenta que nelas ocorre um sobreinvestimento das representações de palavra e um desinvestimento das representações de coisa.

Dessa forma, afirma, por exemplo, que o esquizofrênico, em particular, toma a palavra como coisa, e o seu pensamento tende à abstração. Com isso, abre a possibilidade de compreensão do modo como se dão os processos de construção do pensamento nos outros tipos de psicose.

Mais tarde, em suas notas sobre a autobiografia de Schreber e com a psicanálise já constituída, Freud ([1911] 1996) problematiza, a partir do delírio particular daquele, a possível ocorrência de um liame entre a paranoia e um desejo homossexual inconsciente. No entanto, são as consequências teóricas advindas do exame disso que contribuirão para o discernimento da paranoia em particular e das psicoses em geral, pois resultam na compreensão de que o delírio é não a psicose desencadeada, mas o esforço por combatê-la.

Além disso, podemos aí localizar sua contribuição-chave sobre o tema: o destaque da projeção como mecanismo de base da formação dos “sintomas” na paranoia, que Freud tornou possível, como bem sintetizou Assoun (2009, p. 1159), mediante a sua leitura dos delírios de perseguição, erotomaníaco, de ciúme e de grandeza em conjugação com as fantasias inconscientes. A projeção psicótica consistiria no repúdio de percepção interna, dando lugar à sua deformação que retorna sob a forma de uma percepção vinda desde fora.

Isso leva Freud ([1911] 1996, p. 78) a afirmar: “[...] aquilo que foi abolido internamente retorna desde fora”. Posteriormente Lacan ([1955-1956] 2010, p. 59) retomaria essa premissa afirmando: “[...] o que foi rejeitado no simbólico reaparece no real”.

Freud ([1914] 2004) define três momentos na constituição da psicose tendo como eixo a libido: (a) as manifestações de uma neurose ainda remanescente; (b) a manifestação do processo de adoecimento por meio do delírio de grandeza, hipocondria, ou seja, a partir da retirada da libido dos objetos; e (c) a manifestação da tentativa de restituição.

Quanto a esse último ponto, destaca as tentativas de realocação de investimento libidinal nos objetos externos que, ao integrar a elaboração delirante do psicótico, possibilitam um novo direcionamento da libido para eles, auxiliando, com isso, o processo de criação delirante.

Após esse desinvestimento do mundo externo, a libido deslocada seria direcionada ao Eu, mais especificamente, no delírio de grandeza – que teria como alvo de investimento o Eu como um todo, diferentemente do que ocorre no processo de hipocondria, onde o foco recai em determinados órgãos.

Assim, o delírio de grandeza seria a forma encontrada para reorganizar essa libido investida no Eu. Ademais, quando esse delírio falha, a libido é represada, e ocorre a estimulação do processo de cura, ou seja, uma tentativa de restituição e de retorno da libido aos objetos do mundo externo.

Em seu trabalho intitulado Neurose e psicose ([1924] 2007a) Freud havia estabelecido que a psicose se caracterizaria por uma perturbação entre o Eu e o mundo externo. Posteriormente, ao tentar reformular os parâmetros norteadores para a compreensão da perda da realidade na neurose e na psicose, ele nos leva à percepção de que em ambas ocorre um processo de duas etapas: o afastamento do eu da realidade frustrante e uma correção dessa realidade.

Mas na psicose essa segunda etapa se dá de forma rígida e radical: há efetivamente a criação de uma nova realidade com o intuito de reaparar os danos causados pela realidade abandonada, não sendo apenas uma restrição como ocorre na neurose.

Com relação ao delírio, mais uma vez é confirmado seu papel como tentativa de cura. Freud ([1924] 2007b, p. 97) afirma que

[...] o delírio se apresenta como um remendo aplicado no lugar onde originalmente havia surgido uma fenda no relacionamento do Eu com o mundo externo.

Com tudo isso, observa-se o caráter criacionista do delírio, pois permite ao sujeito psicótico a organização de um sentido próprio aos elementos provenientes de sua realidade. Nesse contexto, ocorre que o que parece sem importância para os demais ganha muita expressividade para ele, e segundo observa Leader (2003), o torna muito sensível aos detalhes, que se tornam importantes elementos para a reorganização do seu mundo interno.

Assim, o delírio se configura como um modo de defesa peculiar que exige do sujeito psicótico a reconstrução do mundo a partir de imagens acústicas oriundas do exterior.

Por meio do delírio se constituiria uma formação mínima de signos verbais que produzem uma esfera subjetiva em contraste que teria a capacidade de se opor ao externo, possibilitando que ele seja

[...] capaz de reconhecer a origem interna de suas produções verbais, mesmo que estejam em desacordo com o conjunto das significações ordinariamente aceitas (SIMANKE, 1994, p. 234).

A partir do exposto, observa-se que na teoria freudiana o delírio se define como uma forma de reatamento dos laços do sujeito com a realidade por uma via que absorve necessariamente a criação.

Apesar de ser factível que Freud não deteve sua atenção nos possíveis meios que estabilizariam os quadros clínicos de psicose, não podemos deixar de depreender a importância do processo de criação. Os meios que levam à estabilização passam sempre por um processo criacionista a partir do que não se inscreveu.

 

Psicose e estabilização em Lacan

Em seu seminário sobre as psicoses, Lacan ([1955-1956] 2010) articula a tese do inconsciente estruturado como linguagem; a do ideal como oposto ao Outro deduzido de sua estrutura (indo além de sua função no estágio do espelho) e a introdução do termo “desencadeamento”.

Ao explorar este último, rompe, no contexto da psiquiatria e da psicopatologia, com uma concepção continuísta das psicoses, na qual ocorreria um acúmulo de traumas, produzindo uma psicose explícita em um dado momento. Ao contrário, propõe pensarmos a psicose a partir da foraclusão do significante do Nome-do-Pai.

A ausência desse significante perturbaria a relação do sujeito com a lógica fálica, portanto com o simbólico, gestando diversas consequências à compreensão das psicoses e de seu tratamento, e levando a uma refundação da teoria psicanalítica das psicoses. Sem a inscrição psíquica do significante do Nome-do-Pai, não ocorre a interrupção, pela via do eixo imaginário, da relação entre o sujeito e o Outro, necessária ao seu ingresso no registro do simbólico.

Segundo Lacan ([1957-1958] 1998), a metáfora paterna tem por condição a produção de uma interpretação que serve à significação do enigma do Desejo da Mãe, ou seja, a referência a essa metáfora seria uma forma de significar esse desejo.

A significação do Desejo da Mãe, por si só, é criacionista e uma condição para a inserção simbólica do homem. Na estruturação ao modo psicótico, a interpretação desse desejo enigmático resta abalada: onde ela deveria existir, observa-se um furo, pois algo não se inscreveu.

Assim, seja qual for a identificação pela qual o sujeito assumiu o desejo da mãe, ela desencadeia, por ser abalada, a dissolução do tripé imaginário (LACAN, [1957-1958] 1998, p. 572).

Outra questão fundamental, redimensionada por Lacan, que se torna uma das mais marcantes diferenças observáveis entre neurose e psicose é a relação do psicótico com a linguagem. Lacan ([1955-1956] 2010) afirma que, para se efetuar um diagnóstico de psicose, deve-se observar fenômenos de linguagem, uma vez que a articulação da cadeia significante, o emprego da metáfora e o fato de um significante se remeter a outro significante são elementos de linguagem que estão comprometidos na psicose (LACET, 2004).

Além disso, ocasionam a desorganização da cadeia significante, a ligação do sentido ao campo do imaginário, e as palavras podem passar a ser tomadas como coisas, como Freud destacou no que diz respeito à esquizofrenia.

Nesse momento da obra lacaniana, a direção do tratamento caminhava no sentido de procurar restabelecer o arrimo da cadeia significante por meio de uma metáfora delirante que pudesse suprir, de forma imaginária, o furo do simbólico.

Ao se ocupar do processo de estabilização na psicose, Lacan – ao longo do seu ensino – destaca três meios pelos quais ela poderia ser alcançada: a passagem ao ato, a metáfora delirante e a escrita (GUERRA, 2010).

A passagem ao ato pode ser entendida como uma forma de extrair as alucinações e o sofrimento impostos ao sujeito. O ato pode ser pensado não apenas do ponto de vista de uma ação, mas também como o momento em que o sujeito se desprende da cadeia significante e vem se unificar, assim como Aimée se estabilizou a partir de sua ação agressiva (LAURENT, 1991).

A partir da metáfora delirante, o psicótico tem a possibilidade de significar o delírio ao desenhar uma lógica própria a partir do significante que “[...] adquirindo valor de inscrição primária, funda uma referência em torno da qual o sujeito se localiza no discurso do Outro” (GUERRA, 2010, p. 61).

Na situação da criação de uma obra, ou da escrita, de forma específica, teríamos em destaque o trabalho que se faz em torno e a partir do real, culminando em algo inédito, de caráter inaugural. Por isso, a metáfora delirante e a criação de uma obra passam a ser consideradas fundamentais ao favorecimento do laço social e à reorganização do sujeito por intermédio da linguagem.

Para Lacan ([1957-1958] 1998), o desencadeamento da psicose ocorre a partir de uma invocação simbólica do Nome-do-Pai foracluído. É nesse ponto em que há um furo no significado, e a cadeia significante vem a se romper, originando o que chama de “uma cascata de remanejamento do significante” (LACAN, [1957-1958] 1998, p. 584).

Nesse momento, a criação se faz necessária para reconstruir o que se dissolveu no imaginário do sujeito, pois é a partir dela que significante e significado irão se enlaçar novamente por meio de uma suplência simbólica (metáfora delirante).

A partir da década de 1970, as inovações de Lacan acerca do gozo servirão de novo eixo para a reflexão acerca do diagnóstico diferencial das psicoses. Além de entender a psicose como resultado da foraclusão do significante do Nome-do-Pai, a localização do gozo servirá para melhor delinear a diferença entre paranoia (onde o retorno do gozo ocorre no Outro) e esquizofrenia (onde podemos situar o gozo no corpo) (LACET, 2004).

Ainda nesse período, Lacan pôde pensar na estabilização dos sujeitos psicóticos a partir do apaziguamento de um gozo avassalador e invasivo. Demonstrou a importância do conceito de suplência onde não houvera desencadeamento da psicose. Nesse momento de seu ensino, Lacan faz uso concepção topológica do nó borromeu que remete à estrutura, ela mesma furada, em suas dimensões real, simbólica e imaginária, às quais se encontraria diferentemente amarrada na neurose e na psicose, e nesta haveria uma fragilidade na conformação do nó.

Lacan ([1976] 2007) utiliza o neologismo “synthôme”, que remete à antiga forma de escrita de sintoma em francês, para refletir acerca do problema da amarração borromeana do real, do imaginário e do simbólico nas psicoses em sua relação com algo que poderia lhe servir de suplência: um sinthome. Com isso, propõe a ideia da criação de um nome como processo de remendo do eu.

Essa criação é uma dimensão a mais em relação aos modelos de estabilização antes cogitados: a passagem ao ato e a metáfora delirante. Aí uma forma de suplência ao desenlace desse nó é analisada partir do estudo da escrita literária de James Joyce, que resulta fundamental para a discussão da noção de psicose não desencadeada: segundo sua hipótese, Joyce nunca haveria surtado e, no entanto, teria uma estrutura psicótica. O aporte clínico dessa tese consistirá em pensar uma clínica do real, que convoca o entendimento do falo consistindo numa conjugação entre semblante e gozo.

A partir da abertura dessa perspectiva é que alguns dos autores contemporâneos citados, e mais especificamente Laurent (1991), defendem que o tratamento das psicoses poderia vir a fomentar a produção de Um Sinthoma, de modo a propiciar a estabilidade psíquica comprometida pela foraclusão do Nome-do-Pai. O autor também chama atenção para o papel da estabilização no ensino de Lacan sobre as psicoses e no claro entendimento de que o processo de estabilização não consiste em transformar a psicose numa neurose.

No entanto, vale salientar que o conceito de sinthoma introduzido por Lacan não pode ser reduzido simplesmente à noção clínica de estabilização, pois serve a uma compreensão mais ampla daquilo que do sintoma se precipita no final de uma análise como refratário à cura.

 

Considerações finais

Como verificamos, Freud não tematizou diretamente o lugar da estabilização decorrente do desencadeamento de uma psicose, no entanto consideramos que sua contribuição para o entendimento do delírio resultou imprescindível à sua teorização.

Ao mostrar que a organização delirante resulta da criação de um saber de defesa que visa o reordenamento do funcionamento do aparelho psíquico, que foi abalado pelo rompimento de sua tessitura, Freud destacou as nuances da produção do saber delirante e evidenciou que o tipo de trabalho envolvido nele concernido se faz por meio da condensação, ou seja, pela produção de um acréscimo de sentido.

Tal ‘sentido a mais’ gerado a partir das representações inconscientes pode ser entendido como uma forma de figuração da realidade repudiada a partir do que pode se inscrever inconscientemente. O saber delirante arrisca o impossível: procura dar lugar ao que não tem lugar por meio de um sentido figurado, o que serve de esteio ao reestabelecimento das relações do sujeito com a realidade através do retorno da libido aos objetos.

Por sua vez, Lacan percorreu os diversos sentidos que são possíveis às vias de estabilização e tornou oportuna a elaboração de outras apostas clínicas que gravitam por sobre o apaziguamento do sofrimento dos sujeitos de estrutura psicótica.

Em seu ensino, como vimos, a dimensão clínica da estabilização pôde ser mais bem delimitada a partir das modalidades do ato – que extraem o gozo e unificam o sujeito; da metáfora delirante – que ordena os significantes desestabilizados e incrementa a restauração imaginária; e, por fim, da obra artística como recurso para apaziguar o sujeito da invasão do gozo do Outro e da angústia dele decorrente. Com esses delineamentos, o tratamento da psicose pode ser pensado a partir dos efeitos proporcionados pelos diferentes modos de estabilização.

A partir deles, as confusões acerca das formas como as estabilizações se produzem, seus efeitos e a localização desses resultados nos registros (simbólico, real e imaginário) puderam ser desfeitas, e o tratamento pôde ser pensado a partir não só de uma nova perspectiva que abarca a dimensão do corpo libidinal, de sua imagem e de sua projeção psíquica (já destacadas por Freud e ampliadas por Lacan), mas também de sua dimensão real, que convoca a noção de escrita, contribuição absolutamente original de Lacan. Ao atentar para a criação pelo sujeito psicótico de saídas singulares para os momentos de instabilidade e desorganização, Lacan nos permite reinventar a clínica psicanalítica para com eles abrindo, com isso, suas possibilidades de reinvenção.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Tereza Raquel Tomé Adeodato
Rua Alfredo Salgado, 71
60030-120 - Fortaleza - CE
E-mail: raquel.adeodato@gmail.com

Laéria Fontenele
Rua Manoel Jacaré, 171/1500
60175-110 - Fortaleza - CE
E-mail: laeria@terra.com.br

Recebido em: 05/05/2015
Aprovado em: 09/06/2015

 

 

Sobre os Autores

Tereza Raquel Tomé Adeodato
Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.

Laéria Fontenele
Coordenadora do Laboratório de Psicanálise da UFC.
Professora Associada da Graduação e da Pós-Graduação em Psicologia da UFC.
Diretora do Corpo Freudiano - Seção Fortaleza.

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