SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.38 issue71Preliminary interviews: milestones in the psychoanalytical treatmentFrom image to writing: considerations about a hans fantasy author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte June 2016

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

O caos pulsional

 

The instinctual chaos

 

 

Breno Ferreira Pena;I, II Thiago Silva MartinsI, III

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
III Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho tem por objetivo refletir sobre o caos pulsional, momento mítico da origem do aparelho psíquico. Dentro dessa perspectiva, os autores trabalham inicialmente o conceito de “disperso pulsional”, descrito por Freud no Projeto. Passam, então, à investigação do fenômeno da dor, bem como dos conceitos de Drang – um dos quatro termos da pulsão – de pulsão de morte, de angústia e suas possíveis relações com o caos pulsional.

Palavras-chave: Caos, Disperso pulsional, Dor, Pulsão de morte, Angústia.


ABSTRACT

This paper aims at reflecting upon the Chaotic Impulse, the mythical moment of origin of the psyche. Within this scope the authors work initially the concept of “disperse impulse” described by Freud in Project. Afterwards the investigation of the phenomenon of pain is taken on as well as the concepts of Drang – one of the four terms of impulse – death wish, anguish and their possible relations with the Chaotic Impulse.

Keywords: Chaotic, Disperse impulse, Pain, Death wish, Anguish.


 

 

As duas linhas acima, se não fossem linhas e se o presente trabalho não tivesse que se submeter aos ditames simbólicos, cunhados pelas regras acadêmicas, seriam talvez suficientes para metaforizar o caos, promovendo, quase poeticamente, o sentido desse significante sobre o qual se pretende refletir.

Este artigo aborda o ‘início’ do aparelho psíquico – a ‘origem das coisas’ –, ou seja, o ‘caos’, como a mitologia grega, matriz do pensamento ocidental, o fez outrora através de uma cosmogonia, a Teogonia – obra que se propõe a explicação mito-poética da origem do universo –, escrita no século VIII a.C. pelo poeta grego Hesíodo. Ou ainda, como o fez a cosmologia no início do século XX, contudo, sob o viés de um sistema teórico-científico, em vez de mito-poético, por meio da teoria da criação do universo a partir do átomo primordial, formulada por Georges Lemaître e denominada Big Bang.

Na Teogonia, de acordo com Torrano (1981), Hesíodo, se valendo de alguns mitos da cultura grega, representa poeticamente a origem do universo, contando: “no princípio foi o caos”, ao qual se seguiram Géa, Tártaro, Eros, Érebo e a Noite. Géa deu origem a Urano, às montanhas e a Ponto (mar). Unida mais tarde, em ato incestuoso, com Urano, gerou os doze Titãs – seis filhos e seis filhas.

Destarte, pode-se inferir que a ideia de caos, presente nessa obra de cunho cosmogônico, concerne a uma energia primigênia única, e é a partir dela que subsiste a possibilidade do surgimento de elementos diferenciais, nesse caso, Géa, Eros, Noite. Portanto, caos pode ser tomado em seu cerne como O princípio cosmogônico – a origem da origem.

Enquanto a mitologia se faz da cosmogonia, a ciência se utiliza da cosmologia para tentar explicar a origem do universo. Segundo Singh (2004), Georges Lemaître foi o primeiro cientista a produzir uma descrição detalhada e razoavelmente segura do que atualmente se denomina o modelo do big bang; visualizou um universo supercompacto, que nomeou de ‘átomo primordial’, e imaginou o momento da criação como o decaimento1 súbito desse único átomo, que englobava tudo, gerando toda a matéria do universo.

Assim, a teoria científica do big bang postula que, antes da grande explosão que originou o universo, toda a matéria e toda a energia estariam comprimidas em um único ponto extremamente denso e quente.

Em outras palavras, o big bang seria a passagem de um estágio caótico de energia, compactada em um tipo de esfera única, ao estágio em que a energia se organiza em diversas formas de matéria (estrelas, planetas, luas, meteoros, etc.).

As tentativas cosmogônica e cosmológica de explicar a “origem das coisas” a partir do caos servem de apoio metafórico para dar sentido ao cerne do que se pretende elucubrar: a origem do aparato psíquico a partir do “caos pulsional”, indicado desde o texto pré-psicanalítico de Freud, intitulado Projeto para uma psicologia científica, sob a denominação de “disperso pulsional”.

A etimologia da palavra “caos” instrui que sua origem vem do latim chaos, que por sua vez é descendente do grego antigo xáoç, que significa abismo, vazio, vasto, que se abre largamente. O significante caos, no dicionário da língua portuguesa Houaiss, tem como significado: o estado desorganizado da matéria primordial antes da criação das formas distintas. Esse conceito sustenta a essência do mito cosmogônico, a teoria científica do big bang e ainda a teoria psicanalítica no que concerne à pulsão em seu estado inicialmente caótico, o “disperso pulsional” e, para irmos mais longe, quem sabe, de todo o limitado pensamento humano.

Por se tratar de um estudo psicanalítico, elucubra-se no âmago desse campo teórico sobre o “caos pulsional” como origem do aparelho psíquico. O caos pulsional, estágio análogo ao Kháos mito-poético de Hesíodo e ao átomo primordial da cosmologia de Lemaître, seria o “disperso pulsional” formulado por Freud no Projeto para uma psicologia científica ([1950-1895] 1996).

Segundo Freud, o “disperso pulsional” são “quantidades” de energia Qn2 provenientes do interior do próprio corpo, exteriores ao psíquico, com a propriedade de constância (Konstante Kraft).

Portanto, o “disperso pulsional” é caracterizado por Freud no Projeto como um fluído amorfo de excitações endógenas, constantes e desorganizadas em função da ausência de representantes inscritos no psiquismo capazes de sinalizá-las organizando-as umas em relação às outras.

Garcia-Roza já realizara o vínculo proposto acima entre o caos pulsional e o “disperso pulsional”, dizendo:

Os estímulos corporais são tomados enquanto pura dispersão, sem que um tenha a ver com o outro, sem formarem um conjunto estruturado. Caos pulsional (GARCIA-ROZA, 1995, p. 253).

Há também no Projeto a descrição de um fenômeno singular que, por suas particularidades, parece aludir de forma sublime ao caos pulsional: a dor – fenômeno tratado por Freud de maneira enfática no Projeto, sob a efígie de “o mais imperativo dos processos” (FREUD, [1895] 1996, p. 359).

Segundo Freud, nessa mesma obra – a qual formula uma tese psicológica com base na neurologia – não há nenhum impedimento à condução da dor pelos sistemas Φ (conjunto de neurônios permeáveis), perceptual, e Ψ (conjunto de neurônios impermeáveis), portador da memória, significando que uma de suas características, talvez a essencial, é irromper o aparelho psíquico: “[...] a dor passa por todas as vias de descarga” (FREUD, [1895] 1996, p. 359).

Tal característica da dor remete, portanto, à desorganização própria do “disperso pulsional”, já que promove no psiquismo uma situação de não diferenciação nas facilitações. De acordo com Freud, essas facilitações correspondem às alterações permanentes dos neurônios Ψ pela passagem da excitação, resultando em vias preferenciais de condução da energia Qn no sentido de sua descarga: “[...] a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios Ψ” (FREUD, [1895] 1996, p. 352). Portanto, se a dor passa por todas as facilitações, a um só tempo, no sentido de sua descarga, é como se provocasse um momento caótico na memória.

Vale ressaltar, ainda no Projeto, um dito fundamental de Freud sobre a dor: “[...] a dor consiste na irrupção de grandes Qs3 em Ψ” (FREUD, [1895] 1996, p. 359). A partir disso, pode-se reforçar que a dor, provocada por quantidades excessivas de energia invadindo o aparelho psíquico, é capaz de causar momentaneamente algo análogo ao estágio caótico – o “disperso pulsional” –, anterior às facilitações, como um tsunami orgânico, que invade a costa psíquica inundando-a com sofrimento.

Anos mais tarde, em O problema econômico do masoquismo, Freud ([1924] 1996) continua a trabalhar a dor em seu estatuto de primazia, concebendo-a desta vez na origem do masoquismo erógeno. Segundo Freud, o primeiro modo de masoquismo é o erógeno, porque funda o “prazer no sofrimento” e jaz ao fundo também das duas outras formas de masoquismo: feminino e moral.

É interessante observar que para Freud o masoquismo erógeno se tratava de um assunto obscuro e incompreensível:

Sua base deve ser buscada ao longo de linhas biológicas e constitucionais e ele permanece incompreensível a menos que se decida efetuar certas suposições sobre assuntos que são extremamente obscuros (FREUD, [1924] 1996, p. 179).

Dito isso, pode-se pensar que o masoquismo erógeno é elementar, primitivo e, por esse aspecto, possivelmente relacionado ao “disperso pulsional”, obviamente sem sê-lo, sobretudo por trazer consigo algo mais, uma quota de prazer erótico, mesmo que doloroso.

Esse masoquismo, denominado por Freud ora de “original”, ora de “primário”, seria uma tentativa de erotização primitiva da pulsão de destruição em sua forma mais pura. Isto é, as primeiras experiências libidinais de uma organização minimalista do “disperso pulsional”, por meio de um sofrimento erógeno, ou melhor, uma dor sexualizada:

[...] uma fusão e amalgamação muito ampla, em proporções variáveis, das duas classes de instintos, de modo que jamais temos que lidar com instintos de vida puros ou instintos de morte puros, mas apenas com misturas deles, em quantidades diferentes (FREUD, [1924] 1996, p. 181-182).

Assim, o masoquismo erógeno seria o resultado do “[...] amansamento do instinto de morte pela libido” (FREUD, [1924] 1996, p. 181), ou seja, uma quota de sofrimento ou de dor libidinalmente retido no psiquismo.

A dor é um fenômeno estudado amplamente pela psicanálise e por diversos outros campos do saber, mas a arte, sobretudo a poesia, talvez seja a linguagem que ilumine de forma deflagradora o seu status real. Há um trecho do poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado Relógio do rosário, que encerra metaforicamente o sentido que se pretende a respeito da dor e seus atributos neste trabalho:

[...]
Oh! dor individual, afrodisíaco
selo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome
ativa mesma se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!
[...]

(ANDRADE, 2006, p. 132).

É essencial, neste momento do trabalho, conter a dor – visto que ela poderia inundar as margens que facilitam a condução desse barco teórico, deixando-o à mercê unicamente da intensidade do fluxo das águas – para refletir a respeito do conceito fundamental (Grundbegriff) de pulsão, postulado por Freud.

Em seu artigo Os instintos e suas vicissitudes, Freud ([1915] 1996) diz da importância de distinguir quatro termos na pulsão: Drang (impulso), Quelle (fonte), Objekt (objeto), Ziel (alvo). Segundo Freud, por Drang compreende-se o “fator motor” da pulsão, sua força; entende-se por Quelle as zonas do corpo onde as pulsões se localizam; o Objekt é a coisa que proporciona à pulsão atingir a satisfação; e o Ziel é sempre a satisfação da pulsão.

Ilustrando essa proposição freudiana, o Drang seria a impressão, no psiquismo do bebê, de uma tensão provocada por uma excitação interna, de origem somática; o Quelle seria a impressão psíquica do Drang localizado, por exemplo, na boca do bebê; o Objekt, nesse caso, seria o mamilo materno ou uma chupeta, ou qualquer outro objeto sugável pelo bebê; por fim, o Ziel seria a impressão referente à descarga local (Quelle) do Drang ao sugar o Objekt. Portanto, os quatro termos da pulsão conjuntos, nessa breve ilustração, resultaria na pulsão oral, entre as outras pulsões parciais.

Lacan ([1964] 2008), em O seminário 11, ao ensinar minuciosamente a respeito da pulsão, indica que seus quatro termos só podem aparecer, de início, disjuntos. A partir dessa indicação de Lacan, concentremo-nos no elemento disjunto, o Drang, pois é o termo da pulsão que parece aludir ao caos pulsional.

Lacan, nesse mesmo seminário, ao trabalhar o Drang, diz que a tendência à pura e simples descarga do Drang, do impulso,

[...] é o que se produz pelo fato de um estímulo, a saber, a transmissão da parte admitida, ao nível do estímulo, do suplemento de energia, a famosa quantidade Qn do Entwurf (LACAN, [1964] 2008, p. 161).

Freud designa a Qn, no Projeto, como uma energia de fonte endógena – proveniente do interior do próprio corpo –, cuja “magnitude é de ordem intercelular”, ou seja, é a quantidade de excitação interna ao corpo que tensiona o psiquismo, mais precisamente, o núcleo do sistema Ψ: “O núcleo de Ψ está em conexão com as vias pelas quais ascendem as quantidades endógenas de excitação” (FREUD, [1895] 1996, p. 368).

Vale enfatizar, que o conceito de Qn parece remeter ao elo entre o somático e o psíquico, portanto, a esse respeito, evoquemos uma passagem de Freud em Sobre as afasias (1891), citada por Garcia-Roza, que diz da relação entre os processos fisiológicos e os processos psíquicos:

A cadeia dos processos fisiológicos no sistema nervoso não se encontra provavelmente numa relação de causalidade com os processos psíquicos. Os processos fisiológicos não cessam ao se iniciarem os processos psíquicos. Ao contrário, a cadeia fisiológica prossegue, só que a partir de um certo momento, um fenômeno psíquico corresponde a um ou a muitos dos seus elos. O processo psíquico é assim paralelo ao processo fisiológico (a dependent concomitant) (GARCIA-ROZA, 2004, p. 32).

Diante disso, pode-se inferir que a energia Qn é no psiquismo simultânea e subordinada ao processo fisiológico intracelular, ou melhor, uma energia que faz interseção entre o soma e a psique, isto é, comum a ambos. Isso implica que, se biologicamente os processos fisiológicos intracelulares, enquanto houver vida, nunca cessam, a Qn é uma força constante que pressiona o psiquismo, como nos alertou Freud, anos mais tarde, em relação à característica da pulsão de ser uma Konstante Kraft.

Ao atrelar os conceitos de Qn e Drang, parece plausível supor que o Drang, resultante psíquica do tensionamento por Qn – esta proveniente de células somáticas –, tenda pura e simplesmente a descarregar essa “quantidade” de excitação, sem a necessidade de representações psíquicas para o escoamento da tensão.

Assim, parece ainda mais factível supor que esse termo da pulsão, o Drang, e a pureza momentânea de sua disjunção, abarque o momento caótico da pulsão – o “disperso pulsional” –, sobretudo porque, nesse instante, não está localizado em nenhuma Quelle e não visa nenhum Objekt que o oriente em sua descarga, sendo o Ziel disperso e caótico.

Em outras palavras, a energia Qn seria livre, sem as vias de condução mnêmicas, facilitações, que a guiem em sua descarga. Sob essa perspectiva, pode-se dizer que a Qn tensiona o núcleo de Ψ que, por sua vez, ultrapassado seu limiar excitatório, expulsa essa energia na forma de impulso, Drang, visando a descarga imediata e, consequentemente, o alívio da tensão.

A tendência à pura e simples descarga do Drang, por causa da incapacidade de fuga dos estímulos internos, tem por objetivo livrar-se da quantidade Qn que incide no psiquismo, atendendo, assim, o princípio de inércia neurônica postulado por Freud no Projeto, que implica reduzir Q a zero.

Ao reduzir Q a zero, pressupõe-se a eliminação de todo o processo fisiológico e neurônico do qual o processo psíquico é um dependente simultâneo, portanto, o resultado seria a morte.

Após vinte e nove anos de trabalho, em O problema econômico do masoquismo, Freud ([1924] 1996) nos fala a respeito do princípio de Nirvana – que aparenta possuir como protótipo o princípio de inércia do Projeto – e sua vinculação à pulsão de morte: “O princípio de Nirvana expressa a tendência do instinto de morte” (FREUD, [1924] 1996, p. 178), e em outra passagem do texto “[...] uma redução quantitativa da carga do estímulo” (FREUD, [1924] 1996, p. 178).

Como alusão ao princípio de Nirvana pode-se suscitar uma interessante prática do Yoga4 denominada Samadhi. Essa prática concerne à concentração meditativa, realizada em jejum, com o corpo imóvel, implicando a redução do metabolismo corporal ao nível mais baixo possível, e da atividade psíquica próxima da inanidade, com o intuito de vivenciar uma experiência de morte.

Tal prática indiana seria uma maneira de atender a exigência do primeiro instinto da “matéria viva”, que Freud dissera, pouco antes de formular O problema econômico do masoquismo, em seu artigo de virada, o Além do princípio de prazer, “o instinto de retornar ao inanimado” (FREUD, [1920] 1996, p. 49).

Não há como negar que a vida é um período de inconstância da morte, que por sua vez é uma constante antes e após a vida, embora durante a vida, acompanhando o pensamento de Freud, se manifeste no psiquismo enquanto pulsão de morte, ou seja, uma tendência imperativa de retorno à constante absoluta, de volver à morte:

[...] lidando não com a substância viva, mas com as forças que nela operam, fomos levados a distinguir duas espécies de instintos: aqueles que procuram conduzir o que é vivo à morte, e os outros, os instintos sexuais, que estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação da vida (FREUD, [1920] 1996, p. 57).

Para ilustrar tal ideia, pode-se pensar no recém-nascido e sua tendência extrema à morte, pois, nesse momento, o bebê se encontra num estado de completa dependência de alguém que deseje fazê-lo viver, do contrário, o óbito é certo.

É fundamental que alguém o convide à vida, banhando-lhe de libido e enxugando-lhe com amor, para que a morte, em vez de encerrá-lo, se manifeste no vivo enquanto pulsão de morte fundida à pulsão de vida. É preciso afastá-lo do empuxo vociferante à morte, atenuando-a com a volúpia da vida.

Garcia-Roza, a respeito disso, diz:

O que se faz presente desde os primeiros escritos de Freud é a necessidade de substituir o princípio de inércia pelo princípio de constância como princípio regulador dos processos psíquicos (GARCIA-ROZA, 2004, p. 90).

Sob essa perspectiva, pode-se pensar que o psiquismo é regido por dois princípios5 distintos: primeiro o princípio de inércia, ou nirvana, que rege no isso a tendência ao reencontro com a constante absoluta, a morte, ou se preferirmos, o pendor à pura e simples descarga de toda a excitação psíquica; e o princípio de constância que dirige no isso a ligação da excitação à representantes psíquicos, no sentido da vida; em outras palavras, a ordenação libidinal da desordem fundamental.

Aproveitando o ensejo, referente aos princípios reguladores dos processos psíquicos, e o apoio metafórico da cosmogonia, mencionemos os princípios cosmogônicos propostos por Jaa Torrano em sua interpretação da Teogonia.

Caos, como princípio cosmogônico, segundo Jaa Torrano (1981), é a potência que instaura a reprodução (dar a existência) por cissiparidade;6 é um princípio de cissura e de separação. Tudo que o descende pertence à esfera do não ser: toda a sua prole, com exceção de Éter e Dia, são potências de negação da vida e da ordem.

Kháos, princípio de divisão e separação, é prolífico e tem através de sua filha Noite numerosos descendentes: todos eles, incorpóreos como ele, são como ele puros princípios ativos e energéticos, sem substância física (TORRANO, 1981, p. 52).

Há para ele também outro princípio cosmogônico – Éros – que, diferentemente de Kháos, instaura a procriação pela união de dois elementos distintos e separados, masculino e feminino.

Há algo aqui de muito semelhante à teorização freudiana, produzida na segunda década do século XX, no que diz respeito às duas forças que regem o psiquismo, ou seja, pulsão de morte e pulsão de vida:

[...] a libido de nossos instintos sexuais coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas vivas (FREUD, [1920] 1996, p. 61).

[...] somos levados a concluir que os instintos de morte são, por sua natureza, mudos, e que o clamor da vida procede, na maior parte de Eros (FREUD, [1923] 1996, p. 59).

Segundo Freud ([1923] 1996), não existe dificuldade em se deparar com um representante de Eros; em contrapartida, para ele, é laborioso encontrar um representante do esquivo instinto de morte, ao qual o ódio indica o rumo.

Assim, a pulsão de morte, muda e odiosa, estaria relacionada ao Kháos com sua insubstância física e negação da vida; e a pulsão de vida a Eros, pela característica comum a ambos de preservar a vida a partir do encontro sexual.

Ao tentar encontrar no primeiro ensino de Lacan algo que remetesse ao caos pulsional, considerou-se que a busca seria mais certeira em O seminário, livro 10: a angústia por abordar minuciosamente o tema da angústia. Lacan ([1962-1963] 2005) trabalha a angústia, em um dos ensinos desse seminário, A angústia, sinal do real, como o sinal de perigo psíquico.

É interessante observar, desde já, que Lacan dá à angústia o mesmo estatuto de primazia que Freud dá à dor, ao dizer: “[...] a angústia, dentre todos os sinais, é aquele que não engana” (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 178).

Sendo assim, a angústia possui um status diferente dos demais sinais, apresentando-se como um sinal inconfundível, soberano, que, segundo Lacan, avisa o sujeito da existência de um “perigo interno”. Não traria esse “perigo interno” um tom do primitivo caos pulsional?

Há uma passagem no livro de Dostoiévski O duplo, que parece nos sugerir uma proposta, quando o senhor Golyádkin, protagonista da história, se depara pela primeira vez com o seu duplo: “A angústia o esmagava e atormentava. Vez por outra ele perdia totalmente o senso e a memória” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 84).

Com efeito, a angústia, assim como já visto com a dor, vem acompanhada de um desordenamento instantâneo da memória (sistema Ψ). Isso ocorre em função de uma sobrecarga de excitação psíquica intensa o suficiente para se propagar simultaneamente por diversas facilitações, provocando algo como uma “convulsão psíquica”. Portanto, não seria a angústia o alerta da eminência do caos, ou, como diria Lacan, a emergência do real?

Para Lacan ([1962-1963] 2005), o real é a opacidade que se opõe à dimensão significante, portanto, o que não desiste de não se escrever. Isto é, o real é o que se furta à simbolização. Logo, cabe entendê-lo como um registro onde não há representantes psíquicos que orientem o Drang em sua descarga e, então, de certa forma, pode-se relacioná-lo ao “disperso pulsional”.

Nesse mesmo ensino Lacan vincula o real à angústia:

Do real, portanto, de uma forma irredutível sob a qual esse real se apresenta na experiência, é disso que a angústia é sinal (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 178).

Sob essa perspectiva, pode-se pensar que a angústia é o sinal do retorno do inexprimível pelo sujeito, do regresso de uma força capaz de desordenar a estrutura psíquica, que o sujeito se esforça para conservar, ou melhor, do revir de algo que perpassa pelo caos pulsional.

Mitologicamente falando, a angústia seria o anúncio do retorno do Khaós e sua onipotência avassaladora, capaz de arrebatar, com sua energia, todo e qualquer Titã, bem como quaisquer deuses que estiverem em seu caminho, como se fossem bebês recém-nascidos.

À guisa de conclusão, durante toda esta elucubração teórica e poética intencionou-se tocar em algo intocável: o caos pulsional. Tentou-se resvalá-lo por meio da dor, do sofrimento, das quotas excessivas de energia (tensão) psíquica, da pulsão de destruição e da angústia.

Com efeito, nada melhor que uma metáfora – Freud sabia bem disso – para dar sentido a algo enigmático, de difícil compreensão, como o “disperso pulsional”.

A respeito da metáfora, diz Lacan:

Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora, e caso seja você um poeta, produzirá, para fazer com ela um jogo, um jato contínuo ou um tecido resplandecente de metáforas (LACAN, [1957] 1998, p. 510).

Caos pulsional por Kháos, ou por átomo primordial, ou, arriscando um pouco mais, por “convulsão psíquica”.

Enfim, o caos pulsional, por estar na “origem” do aparato psíquico, está relacionado com o grande trauma da vida: o nascimento. Este último significando as vivências primitivas do bebê, com todas as excitações internas e externas incidindo em seu psiquismo, e mais, sem representações, apenas intensidades vindas de toda parte do seu corpo e de fora dele.

Contudo, pode-se experimentar faíscas do caos pulsional ao longo da vida. Cada um sente as suas e não tem dúvidas de quais são. Fiquemos por aqui!

 

Referências

ANDRADE, C. D. Claro enigma. Rio de Janeiro: Record, 2006.         [ Links ]

DELEUZE, G. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.         [ Links ]

DOSTOIÉVSKI, F. O duplo: poema petesburguense. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2011.         [ Links ]

FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 12-75. (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, 18).         [ Links ]

FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 27-71. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).         [ Links ]

FREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 177-188. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).         [ Links ]

FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 123-144. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]). In: ______. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1889). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 355-450. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1).         [ Links ]

GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana, v. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ]

HESIODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo: Massao Ohno; Roswitha Kempf, 1981.         [ Links ]

KURY, M. G. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.         [ Links ]

LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 496-533. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Versão final de Angelina Harari. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

SINGH, S. Big Bang. Rio de Janeiro: Record, 2006.         [ Links ]

YOGANANDA, P. Autobiografia de um iogue contemporâneo. São Paulo: Summus, 1976.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Breno Ferreira Pena
E-mail: brenopena@hotmail.com

Thiago Silva Martins
E-mail: silvamartinsthiago@gmail.com

Recebido em: 15/02/2016
Aprovado em: 11/03/2016

 

 

Sobre os autores

Breno Ferreira Pena
Psicólogo. Psicanalista. Membro do CPMG.
Mestre e doutorando em psicologia pela PUC Minas.

Thiago Silva Martins
Administrador de empresas.
Pós-graduado em finanças e controladoria, e MBA executivo pela Fundação Dom Cabral. Candidato em formação no CPMG.
Acadêmico do 4º ano de medicina na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.

 

 

1 Decaimento radioativo: átomos grandes, como os de urânio, se quebram em átomos menores, emitindo partículas, radiação e energia.
2 Segundo Freud, a Qn diz respeito à quantidade: estímulos endógenos da “ordem de magnitude intercelular” (FREUD, [1895] 1996, p. 357).
3 “Q = Quantidade (em geral ou da ordem de magnitude no mundo externo)” (FREUD, [1895] 1996, p. 346).
4 O Yoga é uma filosofia indiana originada na região do vale do Indo há mais de cinco mil anos.
5 Deleuze ([1967] 2009, p. 110) em sua obra intitulada Sacher Masoch: o frio e o cruel, diz: “chama-se princípio aquilo que rege um domínio” ao refletir filosoficamente o instinto de morte vinculado a um princípio transcendental que está além do princípio de prazer; e o princípio de prazer enquanto um princípio empírico ou lei que rege a vida psíquica. Segundo o filósofo, o princípio transcendental é o responsável pela fundação do princípio empírico.
6 Cissiparidade é o processo biológico de reprodução assexuada em que um organismo unicelular se divide em dois organismos semelhantes.

Creative Commons License