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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte jun. 2016

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

Da imagem à escrita: considerações sobre uma fantasia de Hans

 

From image to writing: considerations about a hans fantasy

 

 

Guilherme HendersonI Daniela ChatelardI, Isalena CarvalhoI

IUniversidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto propõe analisar as diversas interpretações da fantasia das duas girafas presente no caso do pequeno Hans. Partindo do método de decifração proposto por Freud para as formações do inconsciente e considerando dois momentos da leitura de Lacan dessa fantasia, procuramos levantar o véu que as imagens das giraffes figuram e ler nessa fantasia a escrita de um nome.

Palavras-chave: Fantasia, Escrita, Hans.


ABSTRACT

The text aims to analyze the various interpretations of the phantasy of two giraffes present in the case of little Hans . Based on the decoding method proposed by Freud to the formations of the unconscious and considering two moments of Lacan´s reading of this fantasy, we try to lift the veil that images of girafes and read in this fantasy a writing name.

Keywords: Fantasy, Writting, Hans.


 

 

As imagens constituem o principal meio de representação presente nos sonhos. Sonhamos com figuras, paisagens, cenas. No entanto, é notável que Freud ([1900] 1996) aplique a elas um método de decifração que vai além do véu da figurabilidade.

Nas palavras de Freud ([1913] 1986, p. 180) “[...] a interpretação dos sonhos é totalmente análoga ao deciframento de uma antiga escrita pictográfica, como os hieróglifos egípcios”. É preciso considerar o sonho como um rébus, um sistema de escrita que necessita ser decifrado.

Dessa forma, uma imagem no sonho como uma sereia de cauda amarela não simplesmente indicará na interpretação o famoso canto de sedução, o feminino, a sexualidade, mas fundamentalmente a estrutura significante, palavras ou frases: “serei a” ou “amar ela”. No sonho, cada imagem valerá apenas como um esboço, que pelo método de decifração, por sua transcrição em fala, passará ao nível significante (CHATELARD, 2005).

Esse método de leitura de um sonho pode ser extrapolado para outros dialetos do inconsciente (FREUD, [1913] 1986), outras modalidades de figuração como sintomas, fantasias, gestos. Mais à frente será trabalhado um exemplo dessa extrapolação: a interpretação de Freud de um gesto de Hans.

Apesar de Freud propor já na interpretação dos sonhos um método de leitura do inconsciente, no caso Hans, mais especificamente no que tange à interpretação da fantasia das duas girafas, o psicanalista parece não aplicar devidamente seu método, isto é, tomar as Giraffes como um texto inconsciente escrito por Hans.

A leitura de Lacan em O seminário, livro 4: a relação de objeto ([1956-1957] 1995) parece tornar mais evidente a verdade desse apontamento. O psicanalista francês considerará a análise da fobia do pequeno Hans como uma amostra da “aparição do simbólico na dialética psíquica” (LACAN, [1956-1957] 1995, p. 81), momento de passagem na pré-história do sujeito do predomínio da imagem ao símbolo.

Localizamos dois momentos em que Lacan apresenta sua teoria da passagem da imagem ao símbolo, e curiosamente, em ambos retoma a fantasia das duas girafas de Hans.

O primeiro momento no seminário sobre as relações de objeto (1956-1957), no qual nos afirmará com todas as letras que essa fantasia nos mostra a passagem da imagem ao símbolo e o segundo momento, no seminário sobre a identificação (1961-1962), em que apresentará a distinção entre signo e significante, e afirmará que, para que seja dado esse passo, o nascimento do sujeito, é necessário o apagamento da coisa.

Em outras palavras, veremos que são necessários diversos apagamentos para que o significante venha à luz e, assim, o sujeito se manifeste. É necessária antes a redução das coisas do mundo, das imagens a um mero suporte (um traço, uma letra) para a veiculação do significante.

O inconsciente, dessa forma, deixa de ser uma instância profunda com conteúdos a serem revelados e passa a se apresentar como uma estrutura composta por elementos de linguagem, que não necessariamente “existem” no mundo ou se referem a coisas do mundo, mas que remetem apenas, por estrutura, a outros elementos de linguagem.

O objetivo deste artigo é analisar as diversas interpretações da fantasia das duas girafas, presente no caso do pequeno Hans e, a partir dos limites internos a essas interpretações apontar o encaminhamento dado pela leitura de Lacan.

A perspectiva deste estudo pretende fazer frente a uma prática analítica ainda em vigor, que entende a interpretação como uma produção de sentido por parte do analista. Entendemos que essa produção de sentido tende a reforçar o sofrimento neurótico.

Talvez essa consideração nos leve a entender por que Lacan afirmou que no caso Hans encontramos, em determinado momento, o desenvolvimento de uma verdadeira cultura da fobia.

 

As interpretações da fantasia das duas girafas

Hans é um garoto alegre de 4 anos, com mãe e pai atenciosos, preocupados, amorosos. Apesar de tudo ir aparentemente bem, a criança começa a apresentar pesadelos recorrentes e ataques de pânico em seus passeios pelo bairro, normalmente quando estava longe de casa.

Esses sintomas encerravam o mesmo tema: o medo da ausência da mãe, de perdê-la, de estar longe dela. Nessa mesma época os sentimentos ternos em relação à mãe ainda estavam exacerbados, e a dificuldade de poder desfrutar dos carinhos maternos parecia trazer certas consequências.

No mesmo período sua sexualidade começou a se manifestar, declarando aos pais o prazer envolvido em seu comportamento masturbatório durante a noite, tão logo o impedem de continuar com aquela prática.

Do desenvolvimento dessa crescente angústia aos comportamentos de inibição, surgiu uma fobia por cavalos (Pferds). Essa fobia convocou o pai da criança a buscar ajuda profissional com Freud. O pai começou a trocar algumas cartas com Freud informando suas observações e interpretações.

Nessas correspondências presentes na Análise da fobia de um menino de cinco anos (pequeno Hans) (FREUD, [1909] 1993) uma fantasia chama atenção: a fantasia das duas girafas. Para analisá-la, discutiremos da narrativa do caso os três momentos em que o significante “girafa” comparece.

O primeiro momento é em um desenho que o pai de Hans fez para a criança após irem ao zoológico. O pai desenha o animal que haviam visto naquele dia. A criança então pede ao pai que desenhe também o Wiwimacher (fazedor de pipi, que ali estava em falta). O pai se nega e pede que o próprio Hans o desenhe.

Hans faz o primeiro traço, sobre o qual acrescenta outro, dizendo que o “pipi” da girafa era maior. Esse é o primeiro gesto de Hans apresentado no caso – o desenho de um traço na girafa – nomeado autenticamente de fazedor de pipi. É interessante notar que essa cena repercute logo em seguida.

No segundo momento, pouco tempo depois, ao visitar o zoológico, Hans passa a temer os animais de grande porte, como o elefante e a girafa, relata seu pai.

Posteriormente, no terceiro momento, Max Graf, pai de Hans, relata o pesadelo ou a fantasia das duas girafas propriamente:

Na noite havia no quarto uma girafa grande e uma girafa amassada, e a grande tinha gritado porque eu tinha tirado a amassada dela. Logo deixou de gritar, e então eu me sentei em cima da girafa amassada (FREUD, [1909] 1993, p. 32).

Ao término do relato, o pai pergunta ao filho o que queria dizer “amassada”. Hans, então, busca rápido uma folha de papel, faz uma bola, e diz “assim estava amassada”.

No mesmo dia o pai revela a Freud sua interpretação da fantasia:

[...] a girafa grande sou eu, ou mais bem, o pênis grande (o pescoço largo); a girafa amassada, minha mulher ou mais bem seu membro (FREUD, [1909] 1993, p. 34).

O pai esclarece o que o levou a essa conclusão contando uma cena que vinha se repetindo nos últimos dias, todas as manhãs: Hans acordava os pais cedo, e sua mãe ficava com ele um tempo na cama.

O pai, então, insurgia dizendo que era melhor que ela não ficasse com ele (a girafa grande gritando porque se retirou a amassada). A mãe ficava sempre irritada com isso, dizendo que não havia problema nenhum naquilo, e, então, o pai se calava (a girafa grande para de gritar).

Essa fantasia revelaria o desejo de Hans de obter as carícias da mãe, da mesma forma que o medo do cavalo figurava o mesmo desejo.

Freud concorda e chama de perspicaz a interpretação do pai e apenas acrescenta que o sentar-se em cima (draufsetzen) é a figuração de Hans para o tomar posse (Besitz).

Esse modo de leitura do gesto de Hans proposto por Freud segue a mesma estrutura da interpretação dos sonhos que apresentamos no início: uma figuração/encenação de um desejo reprimido, que pode ser lida como um texto, uma ação verbal.

Freud observa ainda que isso revela o triunfo sobre a resistência paterna “[...] grite tudo o que queiras, ela me tomou em sua cama, ela me pertence” (FREUD, [1909] 1993, p. 34). Entretanto, por trás da fantasia, haveria um medo de sua mãe não gostar mais dele, já que seu pipi não se comparava com o do seu pai.

Não obstante, o pai se crê a girafa grande, e na continuação do relato há um episódio curioso. Narrando um fato ocorrido na manhã, ele diz: “[...] despedi-me de minha esposa com uma brincadeira, dizendo: ‘Até logo, girafa grande!’” (FREUD, [1909] 1993, p 35).

Nessa espécie de equívoco ou chiste, Hans sem hesitar faz uma pergunta e logo em seguida revela sua própria interpretação: “Por que girafa?”, seu pai responde “a mamãe é a girafa grande”, e ouve a seguinte réplica: “Ah, é isso mesmo! e Hans é a girafa amarrotada, não é?”.1

Essa discussão visa tentar encontrar a interpretação verdadeira ou descobrir quem é quem no jogo das girafas. Esses equívocos apenas apontam para uma má colocação do problema: o interesse de traduzir as girafas levou o pai a se ver na girafa grande, cegou o pai para o deciframento da fantasia.

Mais uma vez é Freud quem recoloca, além das interpretações fantasmáticas do pai, algo novo, ao ler na encenação de Hans um “tomar posse”. Isto é, antes de tentar localizar um significado para os elementos do sonho, Freud tenta ler o que eles mostram.

No entanto, parece que nem todos os significantes ali foram tomados em sua materialidade, e uma dimensão parece escapar a Freud.

 

A leitura de Lacan

Lacan em O seminário, livro 4: a relação de objeto ([1956-1957] 1995), na aula de 27 de março, se atém a esse caso e especificamente a essa fantasia para demonstrar um dos momentos, na constituição do sujeito, da passagem da imagem ao símbolo. Ele não entrará no debate sobre a possibilidade de as girafas serem o pai, a mãe ou a irmã.2

Manter a discussão nesse sentido é evitar dar o passo que o próprio Hans tenta conquistar com essa fantasia, é manter a discussão no âmbito da imagem, da representação e não atingir a articulação significante.

Em primeiro lugar, Lacan observará que há um momento na infância em que, para se fazer objeto de amor para a mãe, a criança desliza para um posição terceira, coloca-se em algum lugar entre o desejo da mãe e o objeto de seu desejo.

Esse é o momento em que se criam as teorias sexuais infantis, a atividade investigativa da criança frente ao sexo e a morte, e a pergunta: pode o Outro me perder? Lacan ([1956-1957] 1995, p. 258) aproxima essas teorias da noção de mito, ambos “[...] narrativas que tentam dar conta da origem”.

Essas construções de Hans são teorias, mitos ou narrativas que possuem uma estrutura. São compostas por elementos e giram em torno sempre dos mesmos elementos, como permutações.

Lacan quer indicar que as fantasias de Hans são o progresso da construção de uma estrutura: a estrutura da linguagem.

Notar ali o estabelecimento da estrutura da linguagem não significa dizer que a fobia de Hans seria apenas um produto da estrutura da linguagem, independente das intervenções reais ao seu redor. Lacan afirma que as produções de Hans respondem às intervenções paternas, por exemplo, “da maneira mais sensível” (Lacan [1956-1957] 1995, p. 262).

A fobia ao longo do caso assume um caráter de hiperprodutividade. Essa produção fantasiosa independe do controle de Hans, ele sabe que suas fantasias são fantasias (o que o torna diferente de um delirante), ele mesmo não acredita nas suas produções, ri de suas construções como se soubesse que a verdade delas é sua estrutura de ficção.

Não é bem a veracidade ou a falsidade do conteúdo que irá importar para o psicanalista, ou se o sujeito ab-reage revivendo estados anteriores. Não são esses conteúdos que devem ser levados em consideração pelo analista, mas seus progressos, suas transformações formais.

Assim sendo, além da necessidade de carinho em relação à mãe observada tanto pelo pai de Hans quanto por Freud, Lacan acrescenta que o que o caso torna evidente é que Hans vive preso em um jogo de engodo intersubjetivo, está preso nas imagens, a dúvida se a mãe tem ou não tem um Wiwimacher, se o desenho da girafa apresenta ou não o Wiwimacher.

A pergunta que o psicanalista se faz é: o que franqueará para essa criança poder sair desse engodo?

A fobia é a resposta sintomática de Hans frente a esse mundo especular, de caprichos maternos, surge na passagem da imagem ao símbolo. Hans até aquele momento brincava com o objeto desejado pela mãe, com o fazedor de pipi tornado elemento do desejo materno, objeto imaginário que cativava a mãe.

Mas nesse momento de sua constituição Hans percebe que “[...] este elemento imaginário tem valor simbólico” (Lacan, [1956-1957], 1995, p. 267).

Ora ele está, ora não está. O ato de traçar o Wiwimacher no desenho paterno mostra essa passagem: o falo imaginário está em falta, o traço presentifica uma ausência. É símbolo.

Com essa discussão, Lacan finalmente comenta a fantasia das duas girafas. Diz que, conforme as instruções de Freud, o pai havia martelado a Hans que as mulheres não possuem o falo.

A fantasia das duas girafas seria uma resposta a essa intervenção. Resposta que retrata uma cena curiosa, pois há nessa fantasia um elemento que chama atenção de Lacan: a figura de um pai colérico:

[...] trata-se [na fantasia], com efeito, para a criança de retomar a posse da mãe, para grande irritação, até mesmo cólera, do pai (LACAN, [1956-1957] 1995, p. 269).

Esse elemento chama atenção porque é justamente esse pai colérico que nunca se apresentou; ao contrário, a passividade paterna é evidente no caso. Se houver um pai colérico é apenas por uma necessidade estrutural presente nas construções de Hans.

A explicação edipiana que Freud apresenta a Hans evidencia isso: “[...] você deve estar com raiva [do seu pai], você deve estar com ciúmes [da sua mãe]” (LACAN [1956-1957], 1995, p. 269). Para surpresa do pai, Hans concorda e chega a afirmar que o pai batia nele, o que para o pai era impensável.

Além da estrutura edipiana, Lacan atentará para outros elementos estruturais das girafas, por exemplo, que existe ali o par grande-pequeno,3 e existe o sempre girafa, isto é, a criança considerada no desejo da mãe como uma metonímia, as duas girafas:

[...] ao se deparar com a ausência de falo da mãe, tenta restituí-lo falicizando a mãe por inteiro sob a forma de um duplo, fabrica uma metonímia da mãe (LACAN [1956-1957], 1995, p. 270).

No caso da fantasia aqui em questão essa duplicação – as duas girafas – se apresenta também quando Hans se depara com a falta do Wiwimacher no desenho da girafa de seu pai, ele duplica o traço que restituiria o falo da girafa.

Lacan apontará que aquilo que até então era o jogo de engodo com a mãe, o falo acreditável ou não, começa a se articular na estrutura da linguagem como uma metonímia.

Assim, a fantasia das duas girafas mostra a passagem da imagem da girafa, ou o desenho da girafa, à girafa utilizada enquanto significante, duplicação metonímica.

A girafa amassada (Zerwutzelt), que ninguém sabe o que é, diz Lacan ([1956-1957], 1995, p. 270), vem “[...] explicar que atravessamos a passagem da imagem ao símbolo”.

É um significante com um estrutura diferente, é a mostração de uma passagem, um gesto que não apenas encena ou representa algo, mas coloca em questão a dimensão da representação.

Lacan ratifica que a pequena girafa apresenta uma propriedade da mesma ordem que o Wiwimacher acrescentado ao desenho da girafa que o pai fizera, desenho este que também estava no caminho do símbolo.

O faz pipi acrescentado à girafa é gráfico, é um traço, separado do corpo da girafa:

[...] a pequena girafa é [...] suporte, sempre necessário para a veiculação do significante, a saber, algo que se pode segurar, que se pode amassar, e sobre o qual se pode sentar. Este é um testemunho (LACAN [1956-1957], 1995, p. 271).

Tomar a fantasia das duas girafas como um testemunho é dizer que ali se encontram as provas ou os vestígios de um acontecimento na perspectiva do sujeito.

Seria possível dizer que esse acontecimento é o próprio surgimento do sujeito, já que para que venha à luz a dimensão do significante portanto o sujeito, é necessário certo suporte dado pela “girafa amarrotada”, que não se reduz à imagem de uma girafa, mas é nada, mera superfície de papel que pode ser descartada.4

Ora, se como vimos, desde Freud o inconsciente é tomado como um sistema de escrita, que necessita ser decifrado, a fantasia das duas girafas de Hans nos mostra a constituição desse sistema, os elementos e as transformações necessários para que ele se constitua: traço, apagamento da imagem, invenção de nome pelo sujeito que servirá de suporte material (em Hans, Zerwutzelte Giraffe).

No Seminário, livro 9: a identificação (1961-1962, inédito), na aula de 20 dez. 1961, Lacan volta a falar da fantasia das duas girafas. Dessa vez chama a fantasia de sonho e diz qual poderia ser seu título “Zerwutzelt Giraffe” evidenciando a importância que possui essa girafa amassada, e o seu lugar na fantasia: título.

É interessante notar que o título normalmente é aquele nome que particulariza uma produção, uma obra de arte, um escrito.

Neste momento cabe recolocar a interpretação de Freud do gesto de sentar em cima da girafa amassada. Lido como “tomar posse”, acaba por revelar que Hans toma posse da Zerwutzelt Giraffe, isto é desse nome dado pelo sujeito do inconsciente ao duplo presente no sonho.

Como nos aponta Lacan, essa história, deve nos fazer sentir o que está em causa: a identificação fundamental de Hans, sua defesa contra a captura original no mundo da mãe.

O que Lacan parece sugerir é que o que Hans faz é brincar com a letra, com os significantes, com os gestos, para dessa forma se furtar do mundo original das imagens, a via imaginária.

Dando esse passo a mais, Hans constrói um ponto de amarração, mais além do desejo materno, sob o qual ele pode se ancorar e continuar, já que agora perdeu seu lugar de falo imaginário. Para isso, Hans tem que se identificar com algo, o que Lacan chama de identificação fundamental.

A fantasia das duas girafas nos apresenta um significante muito mais perturbador do que parece à primeira vista, já que a girafa amassada parece se reduzir a um traço, a algo sem qualidades, apagado, puro suporte material. Esse significante que marca que houve ali a presença do sujeito.

 

Conclusão

Deixamos para a conclusão uma observação pouco discutida nos trabalhos sobre o caso Hans não comentada por Freud – aparentemente tomado pelo véu imaginário das interpretações do pai – tampouco por Lacan.

O significante Giraffe presente nessa fantasia é uma homonímia do sobrenome paterno de Hans, Graf. Essa observação ratifica o caminho tomado por nós neste trabalho. Ao partir do entendimento de que a formação do inconsciente é um rébus a ser decifrado, buscamos revelar a estrutura de escrita que subjaz a essa fantasia.

Na reconstituição dessa fantasia e no decorrer do caso, observamos suas figurações. Algo em torno desse significante se mostra: desenho ou traço, nomeado Wiwimacher (fazedor de pipi) e destacado da girafa; gesto nomeado de Zerwutzelt Giraffe (girafa amassada), girafa suporte a ser descartada; e imagem estereotipada tomada como significante, servindo de cifra do nome próprio Herbert Graf.

A nomeação presente nesses três momentos aponta para uma função do sujeito na linguagem, que merece ainda ser explorada em outros trabalhos “[...] aquela de nomear por seu próprio nome” (LACAN, 1961-1962, inédito), momento em que o sujeito não apenas se mostra, mas lê a si mesmo como objeto.

 

Referências

CHATELARD, D. Da imagem à escrita. In: ______. O conceito de objeto na psicanálise: do fenômeno à escrita. Brasília: Universidade de Brasília, 2005. P 150-250.         [ Links ]

FREUD, S. Análisis de la Fobia de un niño de cinco años (1909). Buenos Aires: Amorrortu, 1993. 100 p. (Obras completas de Sigmund Freud, 4).         [ Links ]

FREUD, S. El interés por el psicoanálisis (1913). In: ______. Totem y Tabu. Buenos Aires: Amorrortu, 1986. p. 165-192. (Obras completas de Sigmund Freud, 13)        [ Links ]

FREUD, S. La interpretación de los sueños (1900). Buenos Aires: Amorrortu, 1996. (Obras completas de Sigmund Freud, 4, 5).         [ Links ]

LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Zahar, 1995.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 9: a identificação (1961-1962). Seminário inédito.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Guilherme Henderson
E-mail: guilhermefh@gmail.com
Daniela Chatelard
E-mail: dchatelard@gmail.com
Isalena Carvalho
E-mail: isalenasc@yahoo.com.br

Recebido em: 04/02/2016
Aprovado: 11/03/2016

 

Sobre os autores

Guilherme Henderson
Mestrando em psicologia clínica e cultura (UnB-DF).
E-mail: guilhermefh@gmail.com

Daniela Chatelard
Psicanalista. Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (UnB).
Doutora em filosofia (Universidade de Paris VIII).
E-mail: dchatelard@gmail.com

Isalena Carvalho
Pós-doutoranda em psicologia clínica e cultura (UnB-DF).
E-mail: isalenasc@yahoo.com.br

 

 

1 A explicação dada pelo pai de que ele seria a girafa grande, por seu pescoço largo inevitavelmente ser o seu “pipi”, e a mãe a amarrotada – e as contradições que seguem no caso – parecem revelar questões que concernem mais ao pai do que à criança.
2 Lacan estranha que não tenha parecido contraditório para o pai um par de girafas servir de figuração do pai e ao mesmo tempo da mãe: “[...] essa contradição poderia nos levar a problemas mais interessantes” ([1956-1957], 1995, p. 269).
3 Essa observação da leitura de Lacan não se faz presente no caso clínico escrito por Freud, que não apresenta nenhuma discussão sobre o par grande-pequeno, e sim sobre o par grande-amassado.
4 O nome designado por Lacan para esse suporte material é letra (LACAN, [1957] 1998).

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