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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte June 2016

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA

 

Depressão contemporânea e metapsicologia freudiana: pensando a neurose na atualidade

 

Contemporary depression and freudian metapsychology: thinking the neurosis nowadays

 

 

Rogério Robbe Quintella

IUniversidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda um tipo de depressão neurótica, distinta da melancolia, que desponta na clínica psicanalítica atual, definindo sua especificidade metapsicológica a partir do pressuposto de que há, na subjetividade contemporânea, uma relação de extrema fugacidade com o ideal do eu. Nessa depressão o recalcado, encontrando dificuldades de substituição ancorada no ideal, se faz representar por ideias fixas de desvalia, insucesso, autoinsuficiência narcísica, muito mais do que em representantes que se apoiam num ideal do eu rígido que favorece deslocamentos capazes de promover a trilha da metonímia desejante.

Palavras-chave: Depressão, Metapsicologia, Neurose, Contemporaneidade.


ABSTRACT

The article approaches a type of neurotic depression, distinct from melancholy, that emerges in the current psychoanalytic clinic, defining its metapsychological specificity from the presupposition that there is, in contemporary subjectivity, a relation of extreme fleetingness with the ego ideal. In such a depression, the repressed, finding replacement difficulties anchored in the ideal, represents itself by fixed ideas of worthlessness, unsuccess, narcissistic auto insufficiency, much more than in representatives that are supported by a rigid ego ideal that favors displacements capable of promoting the trail of desiring metonymy.

Keywords: Depression, Metapsychology, Neurosis, Contemporaneity.


 

 

Introdução

Esta exposição se dirige a problemas relacionados ao sofrimento neurótico contemporâneo, perante os quais a psicanálise se acha muitas vezes convocada a discutir de maneira direta e aprofundada, postas as peculiaridades que o sujeito apresenta hoje na clínica.

Em trabalhos anteriores tratamos de estabelecer parâmetros de investigação sobre os vetores que delineiam a neurose nos dias de hoje, em que a depressão aparece sobre o pano de fundo de uma fixação na representação narcísica primária, concebida por Leclaire (1975) como “criança maravilhosa”, ante o que se denomina “evanescência do ideal do eu” (PINHEIRO; QUINTELLA; VERZTMAN, 2010, QUINTELLA, 2012).

Trata-se aqui, nesta oportunidade, de avançar na questão da depressão, partindo desses aportes teóricos, mas dando novos enfoques em relação àquilo que já expomos anteriormente. Nessa perspectiva, frisamos especialmente os aspectos metapsicológicos ali envolvidos e os motivos pelos quais o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de dinamizar afetos inconscientes, no sentido do deslocamento e da condensação, impossibilitando em alguns momentos o deslizamento da cadeia associativa em torno do desejo.

Com efeito, o desejo fica relegado a um esvaecimento radical, mesmo em se tratando de neurose, que leva muitas vezes o sujeito a sofrimentos agudos em torno da perda, ou de algum significante que aluda à castração.

Nessa linha de raciocínio, procuramos demonstrar algumas especificidades metapsicológicas que envolvem a depressão neurótica contemporânea, especialmente no que diz respeito ao recalque e ao ideal do eu. Antes disso, fizemos uma breve revisão da literatura psicanalítica contemporânea, imprescindível ao caminho que visamos aqui percorrer.

 

Algumas considerações sobre abordagens diversas acerca da depressão

O tema depressão, desde a sua acepção inicial na história, é controverso e um dos mais discutidos na sociedade contemporânea, haja vista o interesse e difusão desse problema nos dispositivos midiáticos e no cotidiano da clínica.

Não raro o psicanalista se depara com falas como “estou deprimido” ou “não tenho força para viver” ou “quero morrer, pois nunca mais vou recuperar o tempo perdido”, etc. Objeto de diversas formas de concepção e intervenção, o sofrimento depressivo é abordado pela mídia de modo cada vez mais atrelado ao modelo biomédico, de onde se constata o avanço da psicofarmacologia.

E no campo psiquiátrico, conforme o constatado alhures (QUINTELLA, 2010), os marcadores da depressão nos últimos manuais ampliaram acirradamente o diagnóstico da depressão. Esse diagnóstico aparece cruzado com a esmagadora maioria dos demais transtornos psiquiátricos: fenômeno que não se observa no cruzamento dos outros transtornos entre si (QUINTELLA, 2010).

Como se sabe, o termo “depressão”, tal como outros que definem diversas manifestações psicopatológicas trabalhadas pela psicanálise, é originário da psiquiatria, e não da psicanálise. A depressão é hoje entendida amplamente pela psiquiatria como transtorno circunscrito, elevado à categoria de entidade clínica.

Contudo, não pouco problemático é o conceito de depressão na psiquiatria, o qual, como se pode verificar mediante levantamento feito por Verztman (1995), não apresenta em sua evolução um eixo linear de abordagem do ponto de vista histórico.

Nota-se a partir da análise de Verztman que a depressão foi abordada historicamente de maneira atrelada quer à melancolia, quer à chamada psicose maníaco-depressiva (KRAEPELIN, 1976). Na acepção kraepeliana, a depressão assumiu lugar de destaque como psicopatologia, em meio a uma organização bem mais sistemática da nosografia psiquiátrica, o que deu início a uma nova configuração desse campo, já no final do século XIX (KRAEPELIN, 1976).

Verztman (1995) acentua que a evolução do conceito de depressão no campo psiquiátrico acha-se intrinsecamente ligada à necessidade de delimitação de estados depressivos diversa, em conjunção às descobertas psicofarmacológicas do século XX, após o advento da psicopatologia geral, de Jaspers.

A partir desse contexto, a depressão começou a tomar estatuto central na construção dos manuais psiquiátricos. Não obstante ela só tenha sido elevada ao grau de entidade clínica nos últimos manuais, seu lugar tomou corpo a partir do momento em que se localizou a necessidade de novas circunscrições nosográficas equânimes aos achados farmacológicos, especialmente aqueles relacionados aos antidepressivos.

Os aspectos patológicos da depressão e sua relação com a melancolia começaram nesses últimos manuais a apresentar uma verdadeira inversão em termos de delineamento teórico. Inversamente às abordagens da metade do século XIX, em que a depressão era concebida como elemento integrante da manifestação melancólica, hoje é a depressão que tomou corpo como entidade diagnóstica específica, abarcando a melancolia como uma de suas variáveis.

A problematização que se coloca frente a essas configurações traduz-se precisamente pelo questionamento acerca dos fatores determinantes na circunscrição psiquiátrica dessas afecções, até seus desdobramentos no campo da psicanálise, posto que o termo “depressão” não é originário da psicanálise e que hoje há ali uma importante dificuldade de distinção entre a melancolia e a depressão.

No campo psicanalítico, a depressão parece assumir, de outra via, um lugar marginal. Coser (2003) demonstra haver uma abordagem periférica por parte de Freud acerca do termo “depressão” em sua obra, o que leva muitas vezes diversos autores psicanalistas a conceber o estado depressivo como uma questão de pouca relevância para a construção teórica da psicanálise, dado que Freud não abordou uma “estrutura depressiva” ou uma neurose depressiva.

É em torno da melancolia que Freud realiza uma rica e intensa teorização, especialmente em Luto e melancolia ([1917] 1996), Psicologia das massas e análise do eu ([1921] 1996) e O ego e o id ([1923] 1996).

Se para a psiquiatria a melancolia deixa de assumir especificidade clínica, para a psicanálise sobram motivos no sentido de destacá-la como patologia específica, tanto em suas características discursivas, quanto nos aspectos psicodinâmicos e mesmo metapsicológicos presentes em sua descrição e abordagem teórico-clínica. Isso aparece desde Freud até importantes autores lacanianos e pós-lacanianos, como Hassoun (2002) e Lambotte (1997).

No tocante à depressão, como apontado, sua abordagem tem sido feita, ora à luz da terminologia kleiniana quanto ao conceito de “posição depressiva”, ora confundindo vetores característicos da depressão em aspectos melancólicos, tal como aparece em Fédida (1999).

De fato os estados depressivos podem aparecer em qualquer estrutura clínica, do ponto de vista da psicanálise. Contudo, há que levar em consideração um importante modo de organização sintomática que, na atualidade, acirra as queixas em torno de estados depressivos graves, inscritos no campo da neurose.

Nesse âmbito, o conceito da depressão, tal como trabalhado por Pinheiro, Quintella e Verztman (2010), aponta para um tipo de sofrimento ou arranjo sintomático que não deve ser negligenciado. Há fatores importantes que aparecem na clínica psicanalítica contemporânea, relativos a determinadas formas de sofrimento depressivo que se distinguem da melancolia (PINHEIRO, QUINTELLA; VERZTMAN, 2010).

Apoiados nesse aporte teórico, e não concebendo a depressão como uma entidade diagnóstica do ponto de vista da psicanálise, defendemos que ela deve ser concebida como um arranjo sintomático no campo da neurose, relevante para a clínica contemporânea.

Isto leva em sumária consideração um tipo específico de depressão neurótica que, desvinculada da organização melancólica, implica apagamento ou fugacidade na relação ao ideal do eu, cujo quadro sintomático se inscreve de maneira contundente e cada vez mais preponderante na clínica psicanalítica de hoje. Fazemos adiante uma breve revisão de sua especificidade e distinção da melancolia, para avançarmos sobre esta questão do ponto de vista metapsicológico.

 

Especificidades da depressão neurótica contemporânea

O tipo de depressão que procuramos abordar aqui é, portanto, uma realidade sintomática constatável na clínica psicanalítica contemporânea. Na depressão, diferentemente da melancolia,1 o sujeito reconhece a perda do objeto, contudo há um recuo defensivo, que nega qualquer possibilidade de transformação do eu ideal, ou de se lançar ao ideal do eu.

Sobre isso cabe lembrar que a depressão manifesta uma forma de idealização cujo registro se acha fixado ao eu ideal referido ao que Leclaire (1975) denominou criança maravilhosa. O que vai distinguir essas formas de sofrimento, é que, diferentemente da melancolia (LAMBOTTE, 1997), a evanescência na depressão não é do eu ideal, mas do ideal do eu.2 (QUINTELLA, 2012).

A criança maravilhosa é, segundo Leclaire (1975, p. 11), o fundamento da experiência “primária” do narcisismo, “[...] é uma representação inconsciente primordial, na qual se entrelaçam, mais densos do que em qualquer outra, os anseios, nostalgias e esperanças de cada um”.

É o que Leclaire (1975) aborda sobre o mito do pequeno sujeito em constituição, em que a condição alienada exige permanentemente um trabalho de luto: mata-se uma criança.3 Ficam evidentes, contudo, as dificuldades que despontam na clínica atual em torno desse luto.

A imagem perdida da criança maravilhosa coloca o sujeito no risco paradoxal de acelerar o curso de sua própria morte, de sua inescapável finitude. Assim, na depressão, a evanescência do ideal do eu assinala o recuo para a representação narcísica da criança maravilhosa, que passará a funcionar como um sintoma.

Entendemos como “evanescência do ideal do eu” uma fugacidade no ancoramento identificatório secundário, que permitiria ao sujeito se afastar dos investimentos narcísicos primários e reaparecer transformado após o processo de luto, de forma que o desejo se sustente (QUINTELLA, 2012). Nesses casos, a figura do pai não é colocada no lugar do ideal do eu, diferentemente daquilo que preponderava na clínica de Freud ([1923] 1996).

Nessa depressão é a própria imagem da criança maravilhosa que entra no lugar do ideal do eu. O discurso desses pacientes se reduz à projeção no futuro de um eu ideal impossível de realizar. Sem estabelecimento de qualquer construção narrativa a partir da qual o sujeito se disporia a agir, a idealização de si mesmo no futuro é similar à própria idealização de ‘sua majestade, o bebê’ (PINHEIRO, 2005). Ela é de tal ordem que o sujeito deprime como expressão de seu próprio fracasso narcísico.

Nesse nível, a não instauração do luto é situada no mesmo ponto de evanescência do ideal do eu, que impede ao sujeito o afastamento das representações narcísicas primárias e a própria ‘morte’ da criança maravilhosa.

É importante salientar, desse modo, que não se trata de um simples desdobramento da tristeza na depressão. A tristeza, por mais intensa que seja, conduz o sujeito ao trabalho de luto. A depressão na atualidade não se reduz a um afeto. Trata-se de uma saída defensiva, que resulta em sintomas graves de estagnação, perda do interesse pela vida, desinvestimento, conflitos com a imagem de si – sintomas que às vezes culminam em atos suicidas, fazendo da neurose algo a ser pensado do ponto de vista das nuances subjetivas que se apresentam na atualidade.

 

Evanescência do ideal do eu: clínica e metapsicologia para pensar a neurose hoje

A clínica psicanalítica contemporânea se depara cada vez mais com esse tipo de depressão, evidenciando-se a evanescência do ideal do eu própria da constituição do sujeito contemporâneo. Ali, a busca pelo imediatismo da satisfação pulsional e a tentativa de supressão da temporalidade são marcas que prevalecem na subjetivação.

Isso assume hoje, muitas vezes, hegemonia no discurso do sujeito, o que se faz notar pelo movimento constante na busca de uma felicidade sem espera, que Freud já prescrevia como impossível, dado que a organização civilizatória implica uma perda de satisfação irrestrita em nome de uma parcela de segurança (FREUD, [1930] 1996).

Na atualidade muitos sujeitos apresentam, de maneira muito mais frequente, sintomas depressivos como forma de lidar com o mal-estar cultural. A evanescência do ideal do eu e o sintoma depressivo são intrínsecos à perseguição imagética cuja sobrepujança assinala o lugar que a imagem da criança maravilhosa assume no campo das formações sintomáticas atuais.

Esta análise implica a distinção entre supereu e ideal do eu, dado que destacamos justamente uma importante peculiaridade na relação do sujeito com o ideal do eu. Enquanto o ideal do eu é o ponto de enlace do sujeito com a identificação secundária dirigida à imago paterna, que norteia a busca por um objeto substitutivo na cultura, o supereu é força que irrompe na direção do gozo absoluto, além do princípio do prazer, marcando ali, ao mesmo tempo, sua impossibilidade e proibição (LACAN, [1972-1973] 1993).

Na época de Freud, a relação entre ideal do eu e supereu era intrínseca, dada a conjuntura da dinâmica familiar que girava em torno da instauração da autoridade parental a partir do ideal do eu. Hoje a figura da autoridade se acha em processo de verdadeiro esfacelamento (HERZOG, 2004; QUINTELLA, 2014; MACHADO, 2005), produzindo um sujeito cada vez mais “desbussolado” tal como aponta Miller (2004).

Acrescenta-se que o lugar do ideal do eu, sob rasura e extremamente evanescente, passa a ser preterido em nome da sobrepujança de um eu ideal, fundado preponderantemente na imagem da criança maravilhosa (LECLAIRE, 1975), cujo espectro coloca o sujeito numa condição de maior imediatismo das satisfações, como se o objeto da pulsão estivesse diretamente disponível no âmbito das relações sociais.

Trata-se de uma evanescência do ideal do eu, fazendo do supereu uma força que opera de maneira cada vez mais desatrelada do primeiro. A evanescência do ideal do eu é marca do sujeito contemporâneo que, ao não creditar ao pai a posse do objeto de desejo da mãe, na constituição da autoridade calcada no ideal do eu, produz defesas que diferem daquelas evidenciadas na clínica de Freud.

Essa ruptura precoce com o pai ideal leva muitas vezes o sujeito a um desnorteamento das satisfações pulsionais, ocasionando sintomas relativos a experiências de excesso (compulsões), assim como o tipo de depressão neurótica aqui delineado.

Dito de outra forma, diante do ideal do eu fugaz e evanescente, o sujeito se atira à imagem perdida da criança maravilhosa, impedindo-se de se lançar ao futuro, à temporalidade e à transitoriedade, caindo violentamente numa depressão em que o trabalho de luto fica quase inteiramente à margem.4

Diante dessa apreensão em torno da evanescência do ideal do eu e da fixação na imagem primária da criança maravilhosa, cabe situar o fator metapsicológico que implica o desvanescimento do desejo nesses estados depressivos, característicos da neurose contemporânea.

Sabemos, com base na teoria de Freud, que o sintoma neurótico se inscreve como uma alusão ao material fantasmático relativo ao desejo inconsciente, deslocado ou condensado, cujo enigma se faz presente na análise a partir da associação livre de ideias. Esse deslocamento se dá ancorado em algumas condições que exigem maior enfoque por parte da psicanálise contemporânea.

Nessa dimensão, cabe ponderar isto: se anteriormente o desejo recalcado se manifestava por metáforas, com deslocamentos e condensações intensamente construídas na experiência do sintoma neurótico, hoje o desejo muitas vezes se esvai, na forma da depressão, não obstante a neurose se achar estruturada em torno da condição fundante do desejo e do recalque primário. O que envolve esse processo de evanescimento do desejo na depressão neurótica, que desponta na subjetividade contemporânea?

Freud ([1914] 1996) assinalou que o “recalque secundário” se dá em função da instauração de um ideal. Cabe acrescentar a isso, com fundamento na leitura profunda do pensamento de Freud, que a força para o deslocamento se imprime substancialmente pelo ideal do eu. Isso se dá por meio de representantes que substituam o investimento recalcado e satisfaçam o ideal do eu, sendo aceitos por ele.

Dito de outra forma, o deslocamento e a condensação se dão à medida que um representante pulsional recalcado encontra um substituto que satisfaça minimamente os aceites valorativos do ideal do eu, ou seja, esteja coadunado a valores e crenças sustentados pelo ideal. O sintoma, o sonho, o ato falho, são manifestações possíveis à consciência, em função do ideal do eu.

À medida que esses valores são mais rígidos, bem delineados na relação do sujeito ao Outro, o desejo recalcado se fia em representantes que fixam a pulsão e promovem o deslocamento. Com efeito, se o ideal do eu respalda o deslocamento, também se acha na base de toda mobilização infantil para o luto, que faz substituir o objeto perdido pela identificação.5

Na depressão neurótica contemporânea há recalque, há deslocamentos, que são muito mais fugazes, inconsistentes; ali o recalcado encontra menos esteio em representantes ancorados no ideal do eu, dada a evanescência deste último.

Nessa depressão o recalcado, encontrando maior dificuldade de substituição ancorada no ideal, se faz representar por ideias fixas de desvalia, insucesso, autoinsuficiência narcísica, muito mais do que em representantes pautados num ideal do eu rígido que favorece deslocamentos capazes de promover a trilha da metonímia desejante. À medida que o ideal do eu evanesce de maneira mais acentuada, o desejo não tem para onde deslocar: se esvai.

Nesse caso o representante pulsional se congela, como numa holófrase (LACAN, [1964] 2008), em que o significante em vez de se lançar a uma cadeia associativa, aparece como um dito absoluto, no qual o sujeito, com seu desejo, se vê abolido.6

Sendo assim, a evanescência do ideal do eu implica que o desejo encontre vias menos consistentes de deslocamento e metaforização, provocando muitas vezes rupturas severas na constituição imagética do sujeito, e fazendo com que ele se fixe de maneira mais contundente na imagem perdida da criança maravilhosa, deprimindo violentamente diante do fracasso de sua sustentação no mal-estar cultural.

 

Conclusão

Sem dúvida, a neurose deve ser repensada pela psicanálise contemporânea, em função das nuances diferenciais da relação do sujeito com a autoridade parental.

Com efeito, a autoridade parental se vê num processo de verdadeiro esfacelamento, desde a desconstrução do patriarcado e da emergência do discurso da ciência (LEBRUN, 2009). Constata-se um diferencial na constituição do ideal do eu perante o declínio da imago paterna e do desmoronamento dos modelos ideais que antes norteavam o sujeito no caminho para sustentação do desejo. Esse estudo é pertinente à reflexão sobre o papel da autoridade na trama edipiana que marca uma diferença importante na constituição do sujeito contemporâneo, especialmente no que tange à constituição do ideal do eu.

A depressão, como sintoma contemporâneo do sujeito “desbussolado” (MILLER, 2004), parece responder a essa condição, em que a instabilidade e o sentimento de desamparo parecem se intensificar na neurose hoje. Seja histérico, seja obsessivo com relação à posição no discurso, cabe ao sujeito construir de maneira cada vez mais solitária seus próprios ideais.

Em função do ideal do eu evanescente, o sujeito muitas vezes se exime de projetar seu próprio futuro e aceitar sua temporalidade, sua transitoriedade e sua mortalidade, deprimindo violentamente perante o desejo, estruturalmente insatisfeito. Se o ideal do eu respalda o processo de deslocamento e condensação, sustentando a metonímia desejante, tal como afirmamos, a depressão neurótica é o próprio esvaecimento do desejo, à medida que o ideal fracassa em nortear as trocas simbólicas, promovendo formas outras de manifestação do inconsciente, diferentes do trabalho associativo, na forma de um “narciso” mortificado por sua própria imagem parada, perdida e impossível de recuperar.

Com efeito, trata-se na depressão contemporânea de uma formação de compromisso que implica o eu em sua desvalia sem referências no ideal do eu, o que torna a criança maravilhosa raiz primária do massacre superegoico em torno do sentimento de insuficiência, de desvalia, de constante e extremo cansaço, impossibilitando, por vezes, o impulso para a ação.

Sem dúvida, esta discussão exige constantemente da psicanálise o reconhecimento de que a leitura perene da obra freudiana é o que ancora toda e qualquer pesquisa que se afirme como propiciadora de avanços para a sustentação da própria psicanálise na atualidade. A busca por elementos que sustentem eticamente o ato clínico deve ser incessante quando o que está em questão é a abordagem do inconsciente tal como pensado originalmente por Freud.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: rrquintella@hotmail.com

Recebido em: 25/09/2015
Aprovado em: 11/03/2016

 

Sobre o autor

Rogério Robbe Quintella
Doutor e mestre em teoria psicanalítica pela UFRJ.
Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo (NEPESC/UFF).

 

 

1 Cabe aqui pontuar, conforme aparece em Pinheiro, Quintella e Verztman (2010) que na melancolia o que se constata é uma retirada da libido para o eu – o que, diante da perda, caracteriza a identificação narcísica ao objeto (FREUD, [1917] 1996). Essa identificação marca a impossibilidade mesma de inscrição da perda, à medida que o objeto fica ‘instalado’ no eu, promovendo o automassacre melancólico. Para Lambotte (1997) há uma deserção do Outro na melancolia. Ali a idealização se constituiu no ponto de evanescência do olhar da mãe, o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa um ideal inacessível para o sujeito. A evanescência do eu ideal na melancolia se encontra na base do massacre superegoico, cujo teor discursivo aponta para “eu não sou nada” (LAMBOTTE, 1997).
2 O ideal do eu é o ponto de ancoragem identificatória que afasta a criança do narcisismo primário (FREUD, [1914] 1996). É a partir da identificação ao ideal do eu que o sujeito internaliza os traços do pai na dialética do desejo, frente à condição da falta no Outro. O ideal do eu aparece como uma saída identificatória, proporcionando a mobilização do luto e o afastamento da fantasia primária da onipotência narcísica.
3 Leclaire (1975) destaca o aspecto pulsional dessa condição psíquica, em que a pulsão de morte se apresenta como condição primária para a instauração do luto. O fracasso do luto deflagra a reverberação da imagem narcísica perdida em sua face cruel e mortífera, que muitas vezes culmina em sofrimentos depressivos de maior intensidade.
4 Esse processo se acha aprofundado em Pinheiro, Quintella e Verztman (2010). Adiante, procuramos expor originalmente, no avanço desse traçado teórico, o aspecto metapsicológico circunscrito a essa condição psicopatológica.
5 Trata-se aqui da identificação aos traços do ideal do eu, sustentados pela imago paterna, numa dinâmica secundária, relativa ao complexo de Édipo (FREUD, [1919] 1996).
6 Não é por acaso que em muitos casos de depressão há o denominado ‘fenômeno psicossomático’, em que doenças orgânicas adquirem um estatuto potencial de maior intensidade.

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