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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte jun. 2016

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA

 

Anorexia e adolescência: uma articulação à luz da psicanálise

 

Anorexia and adolescence: an articulation in the light of psychoanalysis

 

 

Tatiane de Fátima Ladeira;I Alinne Nogueira Silva CoppusI

I Universidade Federal de Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A anorexia mental acomete, em sua expressiva maioria, adolescentes do sexo feminino, que chegam a corresponder à quase totalidade dos casos dessa manifestação. Em face de tal predominância, objetiva-se, neste trabalho, pensar a articulação entre anorexia e adolescência à luz da psicanálise, cujo aporte nos possibilita aprimorar a escuta a esses sujeitos que, através de seu sintoma anoréxico, manifestam na clínica uma tentativa de formular algo sobre o feminino, sua angústia e seu posicionamento diante do Outro.

Palavras-chave: Anorexia, Adolescência, Feminilidade, Psicanálise, Corpo.


ABSTRACT

The mental anorexia affects, in its expressive majority, female adolescents who correspond to almost all cases of this manifestation. Considering such predominance, the aim of this work is to think about the relationship between anorexia and adolescence under the light of psychoanalysis, whose contribution allows us to improve the listening to these subjects who, through their anorexic symptom, manifest in the clinic an attempt to formulate something about the feminine, their distress and their positioning towards the Other.

Keywords: Anorexia, Adolescence, Femininity, Psychoanalysis, Body.


 

 

Anorexia mental: conceituação e história

Embora espantosamente pertinente aos desenlaces culturais contemporâneos, a anorexia tem raízes que remontam, conforme sugere Bidaud (1998), à Antiguidade clássica. Esse autor, que aproxima as nuances do jejum místico às do jejum profano (anoréxico) – sob o pretexto de “destacar um movimento comum, uma trajetória saída da mesma origem” (BIDAUD, 1998, p. 118), nos propõe uma visão em perspectiva da anorexia desde os tempos precedentes à conceituação etimológica do termo.

Nesse sentido, Bidaud (1998) ilustra, a partir de excertos de obras clássicas, o modo como a questão alimentar figura em lugar privilegiado tanto na mitologia grega quanto na representação bíblica. Dizendo das tradições orientais e egípcias, o autor aponta que o jejum parece ter lhes servido ao confronto face à ação maléfica dos demônios. Assevera ainda que a abstinência alimentar, como arma de purificação na relação com o divino, perduraria até a reforma protestante, quando é considerada obra demoníaca e passa a ser desencorajada pela Igreja.

Com o desenvolvimento da ciência, período compreendido entre os séculos XIII e XVII, passa-se a buscar causas orgânicas que pudessem justificar a recusa alimentar.

Tal postura marca uma modificação crucial na visão que se tinha sobre as condutas de inanição autoimposta, que pela primeira vez passam a ser desassociadas do misticismo e a adentrar no território das enfermidades físicas ou mentais.

Já no final do século XIX, a anorexia seria revestida do status de entidade clínica com características peculiares graças aos trabalhos quase concomitantes de William Gull, na Inglaterra – onde aparecem os termos “anorexia histérica” (1868) e “anorexia nervosa” (1973) para designar uma privação do apetite em algumas pacientes – e Ernest-Charles Lasègue, na França, que, através de um importante trabalho clínico, estabelece a doença no território da histeria e capta, pela primeira vez, a dimensão de prazer ou de gozo como força fundamental na organização psíquica da anoréxica (BIDAUD, 1998).

 

Psicanálise e anorexia

Ao longo dos anos, diversos foram os autores da psicanálise que se dedicaram ao estudo da anorexia, a fim de melhor compreendê-la e defini-la.

Afinal, embora a conceituação dessa desordem alimentar não pertença a esse campo do saber, a leitura psicanalítica nos dá subsídios suficientes para o entendimento do tema.

Freud, cuja contribuição à questão da anorexia é tomada como diretriz neste trabalho, falou sobre o assunto sem lhe atribuir exclusividade em um texto sequer.

Conforme destacam Silva e Bastos (2006), sempre que o aborda, coloca-o na vertente do sintoma. Ou seja, Freud fala sobre o sintoma anoréxico, e não sobre as anoréxicas.

Os sintomas de ordem alimentar presentes nos casos relatados por Freud se encontram invariavelmente articulados à sexualidade, ou mais propriamente às “forças pulsionais de cunho sexual” (FREUD [1905] 1996, p. 154), que o autor localizava na etiologia das psiconeuroses.

A anorexia permanece como um sintoma histérico ao longo de seus escritos e é por vezes relacionada à melancolia – como ocorre em seu Rascunho G, onde aproxima a anorexia de uma “melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu” (FREUD, [1895] 1996, p. 247) e da histeria, considerada como “anestesia sexual”.

Para ele, a anorexia eclodiria durante a puberdade das meninas e traria à luz um conflito, em que a recusa aos alimentos viria a representar uma aversão à sexualidade.

Freud afirma, em acréscimo, que a apreciação da manifestação anoréxica há que se dar em conexão com a fase oral da vida sexual, em que a atividade erógena se mantém ligada à nutrição, e a escolha de objeto toma a direção do primeiro objeto de prazer oral, ou seja, o seio e, consequentemente, a mãe.

Em seu Além do princípio de prazer, Freud ([1920] 2013) inaugura outro conceito essencial à apreciação da manifestação anoréxica: a pulsão de morte, tendência conservadora cujo objetivo seria o retorno a uma condição primeira – ao inanimado.

Conforme Pena (2014), a proposta freudiana de um retorno ao inorgânico sugere uma atividade constante, que almeja a dissolução do eu com o intuito de recobrar os processos primários como modo de funcionamento psíquico absoluto.

E essa atividade, ao se sustentar no princípio de nirvana, pretende a satisfação total situada no além do princípio de prazer através da completa eliminação das excitações psíquicas, demonstrando ser, assim, incompatível com a própria vida.

Na anorexia, de modo análogo, pode-se inferir que o oferecimento da própria morte, lenta e teatral, ao olhar do outro e a entrega às funestas sensações corporais impostas pela evolução do sintoma, constitui-se, para o sujeito anoréxico, numa manifestação prazerosa. Essa manifestação traz em si a insígnia de um além do princípio de prazer, num júbilo mórbido característico da premência da pulsão de morte.

Lacan, por sua vez, nos ensina em seu seminário A relação de objeto ([1956-1957] 1995) que a anorexia não consiste apenas numa recusa ao alimento, mas, antes, num comer nada. Investido assim como objeto, o nada assume lugar prioritário na economia libidinal do sujeito anoréxico, que responde a um vínculo parasitário com o Outro materno elegendo o nada como um atalho, na tentativa de salvar a si próprio da catástrofe de sua total alienação.

O comer nada da anorexia surge, assim, como uma manobra do sujeito para tentar inverter a sua posição de impotência perante a mãe, tida por ele como onipotente e caprichosa; não barrada em seu desejo e a quem nada falta.

Dessa maneira, é buscando imputar uma falta no Outro e, consequentemente, assegurar-se faltoso, que o sujeito anoréxico recusa o alimento e come nada, esforçando-se na tentativa de desassujeitamento, de separação desse Outro, para se garantir igualmente desejante.

 

Adolescência, um despertar...

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996) assinala que a chegada da puberdade traz consigo investimentos objetais de épocas remotas, numa reedição do complexo de Édipo que se dá por ocasião da maturidade de um corpo que se torna, por isso, ameaçador da realização do desejo.

Na adolescência, o sujeito vai se confrontar com as mudanças de sua imagem corpórea e o redespertar da pulsão, parcialmente adormecida pela latência, deparando-se ainda com um refluir da libido narcísica que torna esse período modelo de narcisismo por excelência.

A adolescência é também um tempo em que o corpo assume lugar de destaque. A partir da perda do corpo idealizado da infância, o adolescente deverá suportar as múltiplas transformações de sua imagem, em um transpor doloroso no qual o corpo, além de desconhecido, torna-se fonte de angústia e inquietação nesse (re)conhecer que traz o novo, o estranho. Na nova economia libidinal, tributária do desligamento dos primeiros objetos de amor, as questões corporais se intensificam.

Tornado imigrante em sua própria casa, o corpo se torna centro da maior parte dos conflitos do adolescente, que revela sua inquietante estranheza na relação com esse novo corpo através de sintomas que chegam a ameaçar a vida do sujeito, como é o caso da anorexia – destacada neste trabalho – da bulimia, das automutilações, dos comportamentos de risco.

Para a menina, a vivência da adolescência apresenta peculiaridades que podem contribuir para torná-la prevalentemente suscetível à ocorrência da anorexia, entre as quais se destaca a problemática do encontro do objeto.

Freud ([1931] 1988) afirma que a mãe, que ceva e acolhe o lactente em seu desamparo, se constitui – tanto para o menino quanto para a menina – como o primeiro objeto de amor. Ao final do desenvolvimento da menina, entretanto, seu pai – um homem – torna-se seu novo objeto amoroso.

Dito de outro modo, “[...] à mudança em seu próprio sexo deve corresponder uma mudança no sexo de seu objeto” (BIDAUD, 1998, p. 237). Para o autor é essa problemática passagem, o tempo da mudança de objeto, que parece figurar no núcleo do drama da anoréxica.

 

Considerações acerca da relação mãe e filha na dinâmica anoréxica

Analisando a relação entre a mãe e a filha na anorexia, Bidaud (1998) propõe que seja caracterizada pela criação de um espaço de domínio (Bemachtigung) entre elas, com o estabelecimento de uma aliança e interdependência intensa, e afirma que tal relação se destaca entre as demais relações objetais comuns à dinâmica anoréxica.

A mãe, como um objeto, recusa a separação da filha, formando uma continuidade fusional em que não há ausência ou falta. Esse espaço não espaço mantido pelo seu conluio, institui o que Bidaud (1998) chama de uma falta de elaboração do vazio tamponado pela mãe, que mantém a filha como objeto exclusivo do seu desejo.

Bidaud (1998) considera ainda que o alimento como objeto atentatório vindo da mãe, o abjeto de um consumo incestuoso, induz, como contenção a um desmoronamento do eu, uma fetichização do corpo próprio. O eu triunfa e exulta, ergue-se na soberba do falo materno.

A fetichização do corpo próprio pode marcar a dificuldade de lidar com a falta, com a separação primária entre sujeito e objeto e com o corte como forma primordial da castração. A menina renega a falta da mãe, fazendo-se ela mesma fetiche em lugar dessa falta.

Retomando Freud, Silva e Bastos (2006) destacam que esse estágio preliminar de ligação com a mãe é muito rico e pode deixar atrás de si muitas oportunidades para fixações e disposições. O medo de ser assassinado ou envenenado é frequente nos relatos analíticos dos pacientes de Freud, e ele o define como fantasias que se somam à fantasia de sedução; o papel do sedutor é dado à mãe.

O temor de ser envenenado também está relacionado com o desmame e com a mudança no estatuto do alimento, que vai do signo de amor para aquele que faz adoecer. Esse intenso vínculo que se consolida entre mãe e filha no período pré-edipiano e que por vezes permanece intacto até a puberdade, constitui o ponto de enigma da feminilidade e se revela uma notável característica pertencente à dinâmica anoréxica, sendo apontada pela quase unanimidade dos estudiosos dessa sintomatologia.

 

Articulando anorexia e adolescência

No intuito de investigar a possibilidade teórica da articulação entre anorexia e adolescência em psicanálise, objetiva-se apresentar, nesta última sessão, acepções de alguns dos autores que, abordando a anorexia sob uma perspectiva psicanalítica, enfatizaram as relações objetais e as peculiaridades da vivência adolescente para o sujeito anoréxico.

Sem o propósito de endossar perspectivas e posicionamentos, buscamos antes interrogá-los quanto à possibilidade de articular psicanaliticamente a anorexia e a adolescência, bem como questionar em que aspectos suas formulações podem contribuir para os estudos futuros que se vinculem a esta temática.

Iniciando com as acepções de Garcia (1991), temos que essa autora considera ser precisamente ao menstruar e se ver portadora de um corpo dotado de formas voluptuosas, semelhante ao da mãe e, portanto, dotado agora da capacidade de engravidar e sentir prazer, que a adolescente adoece.

Considera, por conseguinte, ser justo na adolescência, quando os objetos edípicos retomam a cena, que ela regride, desenvolvendo a anorexia como um sintoma no intuito de confrontar as instabilidades desse período da vida, que não lhe parecem poder ser vividas de outro modo.

O sintoma anoréxico evidenciaria, assim, o conflito do sujeito e a dificuldade da adolescente anoréxica frente à feminilidade e ao corpo sexual; a dificuldade em se tornar mulher.

Dizendo de tal dificuldade, Pencak e Bastos (2009) destacam a anorexia como uma resposta singular de alguns sujeitos, em sua maioria as adolescentes e mulheres jovens, aos problemas colocados pelo desejo e pelo gozo femininos, aproximando, assim, anorexia e feminilidade.

As autoras retomam Lacan no que ele formula acerca da sexuação ao identificar, na obstinada recusa ao alimento, contornos de um sacrifício por intermédio do qual a anoréxica busca fundar uma universalidade no conjunto das mulheres – através da imago da mãe onipotente – e estabelecer uma simetria entre os dois modos de subjetivação do desejo (homem e mulher) a partir da anulação do não-todo que especifica o lado mulher.

A anorexia se apresentaria, por tal via, como uma tentativa – frustrada por sua inviabilidade lógica e estrutural – de instituir a exceção para fazer existir o todo, o traço de pertinência que garantiria à menina sua feminilidade.

Marisa Rodulfo (1999), por sua vez, compreende a anorexia sob a ótica da luta contra a fome e a obstinação em perder peso e considera o jejum um sacrifício da vontade de comer. Ela defende que os transtornos da modalidade alimentar são característicos do momento pubertário das mulheres, e acrescenta que esse é um tempo em que mudanças corpóreas são vividas com estranheza e assombro, e são ressaltadas pelo olhar do Outro. Assinala ainda que a anorexia na adolescência pode ser um caminho para neutralizar a erogeneidade genital do corpo e obedece a uma dupla função: evidencia a existência do conflito ao mesmo tempo em que dá contornos à angústia do sujeito.

Prestando sua contribuição ao tema, Jeammet (1999) propõe que, na base dos transtornos das condutas alimentares, estariam uma indiferenciação sujeito-objeto e uma forma de investimento narcísico maciça. Sem a entrada de um terceiro, sujeito e objeto viriam a se confundir, sem deixar espaço para a constituição de uma subjetividade desejante.

Assim, estaria aí presente a marca da ambivalência; já que se trata de uma organização extremamente primitiva em que o objeto de amor estaria confundido com o eu.

Amado e odiado, o objeto seria tanto aquilo que viria reassegurar a integridade narcísica do sujeito, possibilitando sua existência, como também o que o ameaçaria narcisicamente, dado o sentimento aniquilante de dependência entre sujeito e objeto.

Freud ([1895] 1996) enfatiza que a primeira experiência de satisfação deixa marcas no psiquismo e que, ao longo da vida, há uma tentativa de reencontrá-la. Mas nessa primeira experiência, mítica, algo foi perdido, algo que não pôde ser representado, um resto, que se constitui como ponto de furo no psiquismo e induz no sujeito a busca por reencontrar o objeto perdido.

Essa parte que se perde da primeira experiência de satisfação, Freud a chamou de das Ding, vazio por excelência, que não pode ser preenchido por outro objeto. Então, aquilo a que comumente se atribui o status de objeto da pulsão é apenas a presença de um cavo, um vazio ocupável por qualquer objeto desde que investido por um sujeito – como o nada o é para a anoréxica.

Para Pena (2014), a ausência de um objeto específico e natural para a pulsão é o que nos possibilita dizer que há uma satisfação na recusa do alimento na anorexia. A anoréxica demonstra através de seu comer nada, sob a forma da recusa, que não é pelo alimento que a pulsão oral se satisfaz, mas antes, por fazer esse contorno ao vazio do objeto perdido desde a primeira experiência de satisfação. O nada da anorexia traz justamente à cena essa falta, central à noção de objeto em psicanálise.

 

Considerações finais

A temática dos transtornos alimentares, na qual se imiscui a anorexia, é de longa data cara ao interesse tanto popular quanto científico, no que diz respeito quer à esfera biológica, quer em seu componente psíquico.

Os corpos descarnados por longos períodos de abstinência alimentar inspiram um encantamento mórbido irresistível aos veículos midiáticos, que de forma sensacionalista os associam à ‘ditadura da magreza’ contemporânea e se destacam sobretudo por nos alertar quanto à urgência dos conflitos inconscientes que levam os sujeitos, predominantemente as adolescentes e jovens mulheres, a recorrer a esse sintoma, que coloca sua vida em risco.

Atentando para as dificuldades inerentes à vivência adolescente, em particular a da menina, parece-nos possível aduzir uma série de fatores, tensões e dificuldades a ser transpostas nessa fase que pode estar tornando-a tão suscetível ao desencadear da manifestação anoréxica.

Cremos, portanto, que abordar a anorexia em articulação à adolescência lançando mão de todo o entendimento que nos é proposto pela psicanálise para esse fim, é ouvir o apelo desses sujeitos que, na travessia da imagem e confrontando as dificuldades do tornar-se mulher e suplantar a relação de dependência aniquilante com a mãe, falham, e imprimem em seu corpo a marca de seu fracasso.

Sem o intuito de esgotar possibilidades, buscamos elencar neste trabalho algumas das principais contribuições da psicanálise ao estudo e à escuta de ambos, subsidiando-nos nas proposições freudianas acerca do sintoma anoréxico e da puberdade e nas acepções de alguns dos autores afeitos à aproximação das duas temáticas.

Recorrendo a tais referências, objetivamos ilustrar a forma como anorexia e adolescência têm sido articuladas em psicanálise e quiçá inquietar o leitor que almeje, por si próprio, interrogar os preceitos psicanalíticos quanto às inestimáveis contribuições que esses preceitos fornecem para uma compreensão mais acurada da temática em questão.

De nossa parte, entendemos que o sintoma da anorexia consiste numa formação do inconsciente que traz em si um enigma, uma mensagem endereçada ao Outro. Longe de ser tomado como o signo de uma doença subjacente, consideramos que pode ser visto como um significante que representa o sujeito e aparece, via recalque, como o resultado de um conflito que diz da dificuldade de uma satisfação pulsional.

Avançando na consideração da relação da anoréxica com o nada através da fantasia inconsciente, entendemos que o posicionamento de recusa do sujeito em relação ao Outro coloca em ato a presença do nada.

Comer nada representa, portanto, a maneira encontrada pelo sujeito de barrar o Outro, introduzir um não diante da “papinha sufocante” (LACAN, [1958] 1998, p. 634) que o Outro lhe oferece incessantemente, reduzindo a situação de onipotência em que o Outro se encontra a uma total impotência.

Percebemos ainda na anorexia que a obstinada tentativa do sujeito em estabelecer um universal das mulheres e o desconhecimento do enodamento entre o imaginário do corpo e o real da pulsão fazem com que o sujeito recorra à imagem como representante da feminilidade.

Tal como se apresenta na estrutura histérica, esse sintoma pode, então, ser visto como o modo pelo qual o sujeito busca se nomear ‘mulher’ através de seu corpo, buscando esgotar na imagem a pergunta sobre a feminilidade.

E é esse entendimento que há de balizar reflexões futuras, empreendidas a partir deste trabalho, que contribuam ao aprimoramento da escuta das adolescentes que, se expondo anoréxicas, nos remetem por intermédio do corpo à importância do olhar do Outro e desvelam o inquestionável hiato que existe entre os processos fisiológicos e o corpo simbólico – objeto de sedução, submissão e até de sacrifício.

 

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Endereço para correspondência:
E-mail: tatianeladeira@yahoo.com

Recebido em: 14/10/2015
Aprovado em: 11/03/2016

 

 

Sobre as autoras

Tatiane de Fátima Ladeira
Psicóloga.
Mestranda em Psicologia pela UFJF.

Alinne Nogueira Silva Coppus
Psicanalista.
Professora doutora dos cursos de Psicologia e Medicina da UFJF.

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