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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte jun. 2016

 

CULTURA E PSICANÁLISE

 

Um olhar psicanalítico sobre a autonomia para morrer

 

A psychoanalytical on autonomy to die

 

 

Carinna Gonçalves Simplício

I Centro Universitário de Sete Lagoas
II Instituto Mineiro de Gestão das Águas
III Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Embasado nos textos de Freud O mal-estar na civilização (1929-1930) e Além do princípio de prazer (1920), este artigo trata da autonomia do indivíduo para decidir sobre sua própria vida e sua própria morte, como um processo de construção da pessoalidade. Foi realizado um estudo bibliográfico de natureza descritiva e explicativa, abordando a questão da autonomia para morrer, que se relaciona com a possibilidade de o homem lidar com a sua própria fragilidade e finitude.

Palavras-chave: Civilização, Pulsão, Autonomia, Morte, Sofrimento.


ABSTRACT

Based upon Freud's texts called Civilization and its discontents (1929-1930) and Beyond the Pleasure Principle (1920), this article deals with the individual autonomy to decide about life and death, as a personality building process. A bibliographic study with descriptive and explanatory nature was conducted, addressing the issue of the autonomy to die, which is related to the possibility of human beings deal with their own fragility and finiteness.

Keywords: Civilization, Pulsion, Autonomy, Death, Suffering.


 

 

1 Introdução

A humanidade não se sente confortável na civilização atual, mas é difícil saber se os homens de épocas anteriores eram mais felizes. Fazendo uso dos seus órgãos auxiliares (tecnológicos) e dominando a ciência, o homem se assemelha a Deus (FREUD, [1930] 1996), mas não é necessariamente mais feliz por isso.

Para Sá (2005), a efetivação normativa da pessoalidade se dá diante de meios para os indivíduos se assumirem como pessoas que agem e são reconhecidos por essa ação. Isso é fruto de um processo comunicativo. Assim, a pessoalidade só pode ser vista na esfera das relações, e a vida deixa de ser dever e passa a ser direito.

A autora entende que a morte faz parte do projeto de pessoalidade, ainda que seja para cessar essa pessoalidade. Há outras dimensões no indivíduo além da dimensão orgânica. Logo, a morte pode trazer dignidade a quem acredita viver uma vida que não vale a pena.

Nesse contexto, o presente artigo analisa a questão da autonomia jurídica portanto social para morrer, que se relaciona com a possibilidade de o indivíduo lidar com sua própria fragilidade e finitude, gatilhos de seu sofrimento. Trata-se de uma análise psicanalítica do valor social da vida e da morte.

De caráter qualitativo, esta pesquisa se caracteriza, quanto aos fins, como descritiva, assumindo também a função explicativa. Entre as opções metodológicas existentes para coleta de dados na abordagem qualitativa, optou-se pela pesquisa documental, realizada por meio de levantamento bibliográfico e teórico.

 

2 O sofrimento em O mal-estar na civilização, de Freud

No seu texto O mal-estar na civilização, datado de 1929-1930, Freud traça o embate do homem com a civilização e o protege contra as forças da natureza e regula as suas relações interpessoais. Contudo, isso acontece com o sacrifício de suas pulsões.

No capítulo III desse escrito, Freud ([1930] 1996) questiona por que é tão difícil para o homem ser feliz. A resposta vem das três fontes de sofrimento: o poder superior da natureza; a fragilidade do corpo humano e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade.

O poder superior da natureza e a fragilidade do corpo humano são fontes inevitáveis do sofrimento, mas não são aspectos paralisantes da ação humana, na medida em que apontam a direção para a atividade (FREUD, [1930] 1996).

Quanto às regras que procuram ajustar os relacionamentos humanos, trata-se da fonte social do sofrimento. A dificuldade de se admitir a inadequação dessas regras reside no fato de que elas foram criadas pelos próprios homens para protegê-los do sofrimento. Contudo, são de eficácia questionável, porque não atingem esse objetivo (FREUD, [1930] 1996).

Vale definir o significado de civilização em Freud:

A palavra “civilização” designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulação dos vínculos dos homens entre si (FREUD, [1930] 1996, p. 34).

Trata-se das práticas e dos regulamentos que distinguem a vida dos homens da vida dos demais animais, com o intuito de protegê-los contra as forças naturais e seus reflexos negativos, bem como ajustar seus relacionamentos.

Freud ([1930] 1996) levanta a questão de a humanidade sentir desprazer na civilização que ela mesma criou, devido ao sacrifício de suas pulsões. Paradoxalmente, é essa mesma civilização que abrange os recursos úteis aos homens, que são culturais, como o domínio do fogo, a criação de habitações e a agricultura.

Ademais, na civilização, o homem estende seus órgãos motores e sensoriais por meio da ciência e da tecnologia, construindo navios, microscópios, telescópios, aviões e dominando a efemeridade do que lhe apraz por meio da escrita, da fotografia e da gravação músicas, por exemplo.

Nesse contexto, Freud ([1930] 1996) questiona: Como foi que tantas pessoas passaram a assumir essa estranha atitude de hostilidade para com a civilização? Freud responde tal questão por meio de acontecimentos históricos, tais como o advento da doutrina cristã, que dá pouco valor à vida terrena; as grandes viagens de descobrimento, em que povos primitivos pareciam mais felizes em sua vida simples e marcada por poucas exigências culturais; o conhecimento do mecanismo das neuroses, embasado na dificuldade de lidar com a frustração que a vida social impõe e, finalmente, o progresso das ciências naturais, que não trouxe mais felicidade ao homem.

É nesse momento que, conforme o exemplo trazido por Freud ([1930] 1996), se percebe que tem certo valor ouvir, por meio de recursos tecnológicos, a voz de um filho distante. No entanto, se não houvesse ferrovias, rodovias ou outras formas de transporte eficazes, ele não estaria distante.

A civilização soluciona, então, os problemas que ela mesma criou, mas não consegue poupar o homem do sofrimento. Assim, de que serviriam os avanços científicos e tecnológicos, capazes de prolongar a expectativa de vida na infelicidade? Só a morte libertaria o homem.

Para lançar um olhar mais acurado sobre essa questão, importa estudar o princípio de prazer, que se transforma em princípio de realidade, para o qual a felicidade é a ausência de desprazer e de desgraça, mas não propriamente a fruição do prazer e, para além disso, tratar das pulsões de vida e de morte.

 

3 Pulsões e autonomia para morrer

3.1 Princípio de prazer e princípio de realidade, pulsão de vida e pulsão de morte

Freud ([1920] 1996) inicia seu artigo Além do princípio de prazer mencionando a suposição de que o curso tomado pelos eventos mentais estaria automaticamente regulado pelo princípio de prazer.

Assim, o curso desses eventos seria invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável, que se dirigiria a um resultado final coincidente com uma redução dessa tensão. Isso conduziria à evitação de desprazer ou à produção de prazer.

Entretanto, para Freud ([1920] 1996) o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento do aparelho mental, mas, do ponto de vista da autoconservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, a busca pelo prazer se mostraria ineficaz e até mesmo perigosa.

Sob a influência da pulsão de autopreservação, o princípio de prazer seria substituído pelo princípio de realidade, que não eliminaria a intenção de obter prazer, mas adiaria a satisfação e fundamentaria a tolerância temporária ao desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer (FREUD, [1920] 1996).

Para Freud ([1920] 1996), existiria na mente humana uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa tendência fosse contrariada por outras forças ou circunstâncias, cujos resultados, nem sempre, seriam harmoniosos com a tendência no sentido do prazer.

Analisando a compulsão à repetição e os sonhos de indivíduos que experimentaram traumas de guerra, Freud ultrapassa a ideia de princípio de prazer e princípio de realidade, passando a tratar da pulsão de vida e da pulsão de morte.

Freud ([1920] 1996) ressalta que a pulsão de vida tem muito mais contato com a percepção interna do sujeito, surgindo como produtora de tensões, cujo alívio é sentido como prazer. Por outro lado, da pulsão de morte é mais discreta, e o princípio de prazer parece, na realidade, servir a essas pulsões.

Freud ([1920] 1996, p. 47) afirma que uma pulsão

[...] é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica.

Em outras palavras, pode-se definir a pulsão nos seguintes termos:

Pulsão é o processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir a sua meta (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 394).

Assim, a pulsão se diferencia do instinto, na medida em que o instinto indica

[...] um comportamento animal, fixado por hereditariedade, característico da espécie, pré-formado no seu desenvolvimento e adaptado ao seu objeto (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 394).

De outra sorte, a pulsão está entre o psíquico e o somático, não implicando um comportamento pré-formado ou um objeto específico.

A pulsão de morte busca eliminar as tensões, levando o ser humano a um estado inorgânico e inanimado. Ela é primordialmente voltada para o interior, mas secundariamente está dirigida ao exterior, manifestando-se como pulsão de agressão (pulsão de morte dirigida para o exterior e para a destruição do objeto) ou pulsão de destruição (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).

Em contraposição, a pulsão de vida abrange a pulsão sexual (pressão interna que atua em um vasto campo de atividades sexuais não predeterminados biologicamente e com várias formas de satisfação) e a pulsão de autoconservação (dirigida à conservação da vida e contrária à pulsão sexual), trabalhando no sentido de conservar as unidades vitais existentes, constituindo a partir delas unidades mais globalizantes (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).

Com base na influência dessas pulsões questiona-se a autonomia do indivíduo para definir sua vida e sua morte como um processo de construção de sua pessoalidade.

 

3.2 Autonomia para morrer

Nota-se que há uma ingerência social advinda da civilização, que tenta conduzir a vida e a morte do homem. É nesse ponto que se analisa a interface entre a regra social, notadamente a regra jurídica e a regra moral, e as pulsões.

Dworkin (2003), em sua obra intitulada Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, manifesta-se no sentido de que a maioria das pessoas tem interesses críticos importantes, que tornam a vida melhor. Dworkin (2003) considera relevantes os interesses experienciais relevantes para a escolha da morte. A morte do corpo é o limite longínquo da vida, mas também um acontecimento significativo, como a cena final de uma peça.

No adoecimento irreversível e limitador, o indivíduo pode querer lutar pela vida ou querer não estar vivo (DWORKIN, 2003). Isso depende do resultado do embate entre as pulsões de vida e de morte no nível inconsciente, já que as pulsões passam por esse plano. É oportuno definir a ideia de inconsciente tratada aqui, como conteúdos aos quais foi recusado acesso ao consciente pelo recalque (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).

Trazendo a questão para o nível social, Dworkin (2003) questiona se a eutanásia, o suicídio assistido e a retirada de apoio médico a um enfermo podem ser condenáveis mesmo que o indivíduo os queira. Há entraves para se responder a essa questão, tais como a opressão de natureza religiosa, em que a vida é sacralizada e a possibilidade de o indivíduo se recuperar, tendo em vista a falibilidade da ciência e, consequentemente, do diagnóstico e do prognóstico médico.

Dworkin (2003) discute a situação do indivíduo que não goza de plena capacidade jurídica e que poderia, por essa razão, ter sua vontade violada por quem se responsabiliza por ele. Quem teria a capacidade para decidir sobre a morte de um sujeito juridicamente incapaz? Há um nível mínimo de capacidade mental que permita a esse indivíduo escolher a morte física?

Dar ao outro o poder de decidir sobre a morte e, portanto, sobre a vida de alguém que foi definido como juridicamente incapaz parece medida que desconsidera a pessoalidade do indivíduo, cujos desprazeres só ele mesmo pode experimentar. Assim, retirar do sujeito a possibilidade de escolher morrer pode significar sua condenação a uma existência desprazerosa.

No plano psíquico, a pulsão de vida e a pulsão de morte, em sua manifestação, não determinam um caminho único para evitação do desprazer ou para o gozo. Isso é dito no sentido de que a morte pode ser o caminho mais confortável a ser seguindo em determinado momento ou, o caminho mais refutável em outro, ainda que as circunstâncias externas ao indivíduo pareçam inalteradas. A inconstância do estado de excitação na busca pelo prazer e do posterior gozo, que tende ao inanimado, não parece encontrar um caminho definitivo. Daí a importância da fala para elaboração das questões pessoais do sujeito.

Nesse ponto retoma-se a ideia de que a infelicidade na civilização não parece uma prerrogativa somente dos juridicamente incapazes e dos enfermos em fase terminal. Ela é própria do homem.

Voltando à questão do gozo de boa saúde organicamente considerada (sem se pretender desvinculá-la da saúde psíquica), pergunta-se se ela deveria ser empecilho para o indivíduo escolher a morte com o menor sofrimento físico possível.

A autonomia do indivíduo mentalmente capaz, sob o ponto de vista jurídico, ao decidir sobre sua morte é tema relevante nesta discussão. Segundo Sá (2005), autonomia é a aptidão para manifestação de vontade, de forma juridicamente válida, por aquele que tem suas faculdades mentais comprovadas clinicamente.

Nessa conjuntura, a civilização traz outro inconveniente para o ser humano. É a sociedade que decide até onde vai a permissão para seus membros escolherem morrer. Familiares, comunidades e autoridades tais como médicos, advogados e juízes tomam decisões. Não se está a afirmar aqui que o indivíduo que pretenda dar cabo a sua própria vida não o faz por não ter permissão social. Prova disso são os suicídios dos quais se tem notícia cotidianamente. O escopo agora é refletir sobre a sacralização da vida e a condenação social dos atos atentatórios contra ela.

Seja porque acredita que o suicídio desafia os desígnios de Deus, seja porque ele explicita a fragilidade de determinado sujeito e a incapacidade de lidar com sua própria dor, esse ato está permeado de reprovação social e de culpa. Isso sem se falar na instauração de procedimento de ordem jurídica para apuração dos fatos, com oitiva das pessoas próximas ao suicida, fotografias e notícias veiculadas de forma a condenar o sujeito à misericórdia alheia. Obviamente o poder psíquico sobre a vida e a morte é do indivíduo, ainda que em nível inconsciente e somático. Contudo, a vitimização do indivíduo que escolhe morrer eiva o ato final da vida, se voluntário, de máculas e culpas que poderiam ser evitadas pela desmistificação da morte.

Ainda quanto ao caso de gozo de boa saúde orgânica, atestada pela medicina, importa questionar se a autonomia para morrer, mesmo que não se esteja condenado por enfermidade incurável e terminal do corpo físico, deveria mesmo passar pelo aval social, dada a particularidade do assunto.

O suicídio, que é a ação livre e intencional voltada para a própria morte para o agente (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002), poderia representar uma solução para esse problema. No entanto, se praticado sem auxílio médico, poderia limitar a possibilidade de uma morte tranquila, digna, com o mínimo de sofrimento possível, tendo em vista a inacessibilidade de meios para esse fim.

A eutanásia e o suicídio assistido poderiam auxiliar na minimização dessas dificuldades. No entanto, nesses casos, não se está a tratar de indivíduo são, organicamente considerado. Está-se falando de sujeito acometido por enfermidade atestada pela comunidade médica (outro) como incurável e causadora de profundo sofrimento. Vale tecer alguns comentários sobre a definição de eutanásia e de suicídio assistido.

Eutanásia é o procedimento médico voltado para a qualidade de vida em sua fase terminal. Essa nomenclatura vem sendo utilizada para definir a ação médica que tem por finalidade abreviar a vida de pessoa que se encontra em grave sofrimento decorrente de doença, sem perspectiva de melhora e com o consentimento dela (SÁ, 2005).

Ainda sobre a definição de eutanásia:

Há dois elementos envolvidos na eutanásia, que são a intenção e o feito da ação. A intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma ação, daí tem-se “eutanásia ativa”, ou uma omissão, ou seja, a não realização de ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância – “eutanásia passiva” ou ortotanásia. Em outras palavras, a eutanásia ativa seria uma proposta de promover a morte mais cedo daquela que se espera, por motivo de compaixão, ante o sofrimento insuportável. Do lado oposto da eutanásia encontra-se a distanásia. Como se disse, na primeira, o ato médico tem por finalidade acabar com a dor e a indignidade na doença crônica e no morrer, eliminando o portador da dor. A preocupação primordial é com a qualidade de vida humana na sua fase final. A distanásia, por sua vez, se dedica a prolongar a morte como grande e último inimigo (SÁ, 2005, p. 67-68).

Por outro lado, segundo Beauchamp e Childress (2002), suicídio assistido é a prática voltada para própria morte, que depende de manifestação expressa do indivíduo, em razão de diagnóstico de grave enfermidade física ou mental, comprovada por três médicos, pelo menos um deles o profissional que efetivamente cuidou do paciente.

Além disso, é necessário que a morte seja iminente; que haja orientação ou auxílio conferido por profissionais de medicina e que o auxílio médico seja motivado apenas por piedade.

É oportuno ressaltar que no Brasil, tanto o suicídio assistido quanto a eutanásia não são procedimentos regulamentados juridicamente. Apesar disso, Sá (2005) sinaliza que a morte, no processo de construção da pessoalidade, é a realização de um projeto de vida boa, em que alguém busca realizar sua própria individualidade.

Nesse contexto, a solução adequada, dada a pluralidade da sociedade moderna, seria, para a autora, respeitar as particularidades. Tratou-se neste tópico da aceitação social da autonomia para morrer, independentemente da possibilidade que o indivíduo tem de se render às pulsões de morte, ainda que inconscientemente.

A decisão pela facilitação da morte, com auxílio dos meios científico-tecnológicos portanto civilizatórios adequados, independentemente de acometimento de doença grave e incurável, poderia ser do indivíduo autônomo.

Está-se a tratar novamente da possibilidade de solução de um problema que a civilização criou e tem, ela mesma, a capacidade de facilitar a resolução, se assim a humanidade puder e quiser.

 

5 Conclusão

Poder-se-ia supor que em um sujeito tomado por alguma enfermidade que ele julga diminuir expressivamente suas possibilidades de prazer, a pulsão de morte sobrepujaria a pulsão de vida.

Contudo, a definição de uma vida de desprazer ou de ausência de expectativa por um prazer vindouro não somente está predeterminada por fatores somáticos como uma enfermidade, mas também por fatores psíquicos anteriores à doença física.

Daí a necessidade de se questionar o repúdio social pela morte e a cogitação de sua facilitação, por meio da eutanásia e do suicídio assistido, apenas em casos que a comunidade médica julga o indivíduo fadado ao sofrimento irreversível. Isso tudo, passando, ainda, pelo crivo jurídico.

A decisão de terminar a vida, utilizando-se de meios tecnológicos e científicos adequados, independentemente de acometimento de doença incurável, terminal e causadora de sofrimento, poderia ser do indivíduo enquanto condutor e agente autônomo de sua própria história.

O mal-estar na civilização poderia ser atenuado, pelo menos sobre esse aspecto, desde que o homem passasse a pensar sobre o assunto minimizando preconceitos.

Isso é dito sem retirar do repúdio social à morte deliberada e facilitada pelos frutos civilizatórios (ciência e tecnologia) a característica de manifestação da dificuldade dos sujeitos civilizados de se deparar com sua própria pulsão de morte por meio do outro.

Também não se ignora aqui a inconstância da pulsão de vida e da pulsão de morte, além da possibilidade de o indivíduo elaborar suas questões pessoais por meio da fala.

Contudo, se explicita a contradição da civilização, em que o homem deliberadamente abre mão de sua autonomia em função da segurança social, mas procura na sua própria obra civilizatória a autorização para retomar sua autonomia perdida.

 

Referências

BEAUCHAMP. T. L.; CHILDRESS, J. F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002.         [ Links ]

DWORKIN, R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.         [ Links ]

FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 12-75. (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, 18).         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 67-153. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.         [ Links ]

SÁ, M. F. F. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: carinna.simplicio@hotmail.com

Recebido em: 03/02/2016
Aprovado em: 11/03/2016

 

Sobre a autora

Carinna Gonçalves Simplício
Pós-doutoranda em Administração pela UFMG.
Doutora em Administração pela Universidade FUMEC.
Doutoranda em Teoria do Direito pela PUC Minas, com estágio de doutorado sanduíche na Christian-Albrechts-Universität zu Kiel, na Alemanha.
Bolsista da CAPES.
Mestre em Direito Empresarial pelas Faculdades Milton Campos.
Especialista em Direito Público pela FADIPA.
Advogada e analista ambiental do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM).
Membro titular da Comissão de Ética do IGAM.
Professora no Centro Universitário UNIFEMM.
Candidata em formação no CPMG.

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