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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.71 Belo Horizonte jun. 2016

 

RESENHA

 

O Eu-pele: contribuições de Didier Anzieu para a clínica da psicanálise

 

The skin ego: some contributions from didier anzieu for the psychoanalysis clinic

 

 

Ligia Maria Durski;I Gilberto SafraI

I Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho configura-se como uma resenha crítica da obra de Didier Anzieu intitulada O Eu-pele (1985). Destacamos aqui algumas contribuições do autor para uma reflexão sobre a clínica da psicanálise, especialmente a partir de casos que remontam a problemas, abalos, insuficiências nos limites do Eu. Sublinhamos a ideia de “Eu-pele”, de Didier Anzieu, sobre a formação do Eu e suas relações com o órgão que cobre nosso corpo orgânico: a pele.

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica, Formação do Eu, Pele e Corpo.


ABSTRACT

This work presents a critical review of Didier Anzieu’s work entitled “The Skin-Ego” (1985). We emphasize some contributions of Didier Anzieu for thinking about psychoanalytic clinic mainly through cases that deal with problems, shocks and/or insufficiencies on the limits of the Ego. We emphasized the idea of the Didier Anzieu’s “Skin-Ego” about the Ego organization and its relations with the organ the recover our body: the skin.

Keywords: Psychoanalysis, Clinic, Ego organization, Skin and Body.


 

 

Didier Anzieu (1923-1999), psicanalista francês, que em sua trajetória obteve os títulos de vice-presidente da Associação Psicanalítica da França e de professor emérito de psicologia clínica da Universidade de Paris X, desenvolveu entre os anos 1970 e 1980 importantes estudos sobre a formação do Eu, que enriqueceram o arcabouço teórico da psicanálise, principalmente sobre as noções de “fronteira”, de “limite” e de “continente”.

Podemos asseverar que, ao longo dessas duas décadas, o livro, publicado em 1985, é uma síntese das pesquisas que Anzieu havia iniciado em 1974 e que especifica detalhadamente sua teoria sobre o que ele nomeou de ‘as funções do Eu-pele’.

Nesse sentido, percorreremos pormenorizadamente a obra, buscando, assim, demonstrar algumas das ricas contribuições de Anzieu à teoria psicanalítica.

É válido, pois, nesta breve introdução, adiantar ao leitor que os desenvolvimentos teóricos de Anzieu adquirem especial importância para os psicanalistas que se debruçam sobre a temática das relações entre o aparelho psíquico e o corpo orgânico, bem como para viabilizar uma compreensão mais ampla sobre a formação (e as possíveis “deformações”) do Eu.

Uma vez que em nosso tempo a situação clínica é visitada por pessoas com deficiências na constituição do si mesmo, embora texto de Anzieu tenha sido escrito há trinta anos, as contribuições feitas pelo autor são bastante fecundas na discussão das problemáticas contemporâneas.

 

A formação do Eu, a pele e o Eu-pele

Já no início do livro Anzieu adverte o leitor de que, antes de ser um conceito teórico, o Eu-pele é uma vasta metáfora (ANZIEU, 1985).

Ou seja, o Eu-pele é uma figura de linguagem criada por ele para sublinhar a importância de levarmos em conta, quando do desenvolvimento de teorias do psiquismo, a união de duas vertentes: a vertente biológica e a vertente cultural.

Reconhecemos a importância dessa metáfora, pois se observa que na atualidade emergem inúmeros modos de o ser humano buscar estabelecer uma pele para o seu eu desalojado, por exemplo, o uso epidêmico dos anabolizantes, do botox, das próteses de silicone, da intensa organização da aparência de si por meio de composições estéticas, na expectativa de vir a encontrar o olhar do outro que lhe possa ofertar alojamento e morada.

Tal é, portanto, a posição de Anzieu ao fundamentar seu conceito/metáfora do Eu-pele:

[Com o Eu-pele, procuro uma formulação que] respeite a especificidade dos fenômenos psíquicos em relação às realidades orgânicas como também em relação aos fatos sociais – em resumo, um modelo que me pareça apto a enriquecer a psicologia e a psicanálise em sua teoria e sua prática (ANZIEU, 1985, p. 5).

Vale acrescentar que Anzieu demonstra ter teorizado o Eu-pele a partir de dados oriundos de sua clínica, de casos de pacientes que pareciam sofrer de “problemas e incertezas com relação aos limites”. Eram pacientes que apresentavam:

[...] incertezas sobre as fronteiras entre o Eu psíquico e o Eu corporal, entre o Eu realidade e o Eu ideal, entre o que depende do Self e o que depende do outro, bruscas flutuações destas fronteiras, acompanhadas de quedas na depressão, indiferenciação das zonas erógenas, confusão das experiências agradáveis e dolorosas, não distinção pulsional que faz sentir a emergência de uma pulsão como violência e não como desejo, vulnerabilidade à ferida narcísica devido à fraqueza ou às falhas do envelope psíquico, sensação difusa de mal-estar, sentimento de não habitar sua vida, de ver de fora funcionar seu corpo e seu pensamento, de ser expectador de alguma coisa que é e que não é sua própria existência (ANZIEU, 1985, p. 8).

Com isso, Anzieu realiza um paralelo entre nossa superfície cutânea e a formação do Eu e aponta para o que ele nomeou de uma “passagem do Eu-pele ao Eu psíquico”, passagem que demonstraria que o Eu psíquico tem suas raízes no Eu-pele.

Portanto, a pele é aqui pensada como a base orgânica que auxilia – o que significa que não necessariamente garante – a fundamentação de funções específicas para futuras organizações do Eu.

Reconhecemos essa perspectiva como significativa, pois a clínica assinala a importância do manuseio do corpo do bebê não só para o desenvolvimento da elaboração imaginativa do corpo, oferecendo a tessitura simbólica necessária para o estabelecimento e desenvolvimento do psiquismo, como também para a constituição da unidade psicossomática – a possibilidade de o corpo vir a ser a morada da experiência de si.

Vejamos, pois, algumas asserções de Anzieu sobre características da pele que fundamentariam certas funções do Eu:

• A pele, além de ser a matéria que cobre todo o nosso corpo orgânico servindo, portanto, de proteção, de sustentação e de diferenciação, fornece outros índices de qualidade, tais como calor, frio, pressão, dor, irritação, etc. Ou seja, percepções táteis, térmicas e dolorosas.

• A pele, inteiramente coberta de terminações nervosas, capta e transmite excitações e possibilita úteis informações sobre a realidade.

• A pele também fornece numerosos exemplos de funcionamento paradoxal – lembremos que, ao tocar, somos também tocados – e faz com que Anzieu se pergunte “[...] se a paradoxalidade psíquica não encontra na pele uma parte de sua sustentação” (ANZIEU, 1985, p. 19).

Esclareçamos igualmente que o fato de “ao tocarmos algo, somos concomitantemente tocados por esse algo” é, na obra de Anzieu, de grande importância para a futura capacidade reflexiva do Eu (assim resumida: “Eu me toco”), capacidade que aponta para algo da ordem de um “dois em um”, no qual se é sujeito e objeto de uma mesma ação.

Essa perspectiva é bastante interessante, pois assinala que muito precocemente a constituição do si mesmo ocorre por meio do que poderíamos denominar de experiências fundantes de intercorporeidade.

Pois bem, com essa base no corpo orgânico, na superfície cutânea, não podemos desconsiderar a importância das ações realizadas sobre o corpo do bebê e das consequências de tais ações para o desenvolvimento de seu psiquismo.

Em outras palavras:

[Devemos considerar que] a maneira como uma criança se desenvolve depende em boa parte do conjunto dos cuidados que ela recebe durante sua infância, não apenas da relação de alimentação; que a libido não percorre a série de fases descritas por Freud quando o psiquismo do bebê sofreu violências; e que um desvio maior das primeiras relações mãe-filho provoca neste último graves alterações de seu equilíbrio econômico e de sua organização tópica (ANZIEU, 1985, p. 25).

Anzieu ressalta que a união sólida entre o Eu psíquico e o corpo orgânico dependerá, consequentemente, das relações estabelecidas entre a dupla mãe-bebê. Ou seja, os limites da imagem do corpo (ou a imagem dos limites do corpo) são também especialmente adquiridos durante o processo de fusão/desfusão da criança em relação com a mãe (e/ou substitutos).

Essas atividades (o manejo do corpo do bebê) conduzem progressivamente a criança a diferenciar uma superfície que comporte uma face interna e uma face externa, isto é, uma interface que permite a distinção do de fora e do de dentro, e um volume ambiente no qual ele se sente mergulhado, superfície e volume que lhe trazem a experiência de um continente. (ANZIEU, 1985, p. 41).

Em resumo, a superfície do corpo, como um limite real de diferenciação entre o dentro e o fora do corpo orgânico, terá por base imaginária o que Anzieu nomeia de Eu-pele, e será a base de um eixo narcísico próprio da constituição do psiquismo, que tem funções e consequências específicas dependendo de como se deu (ou não) tal constituição.

No campo da psicossomática, é frequente observar doenças da pele relacionadas ao modo como a pessoa busca não só encontrar os limites do interno e do externo em sua corporeidade, mas também como esperança de vir a encontrar o toque terno do corpo do outro, que lhe possibilite a experiência de existir em sua corporeidade.

Num aprofundamento sobre as suas teorizações, é possível asseverar que a metáfora do Eu-pele foi criada por Anzieu para responder ao fato de o ponto de vista econômico sobre o aparelho psíquico – em termos de acumulação, deslocamento e descarga de tensão – pressupor, dentro da tópica psíquica, um início de formação do Eu particularmente próximo ao corpo orgânico.

Nesse sentido, o Eu-pele é a base de sustentação para a formação do futuro Eu psíquico, uma base ‘mais próxima’ do corpo orgânico, por assim dizer. E nesse início parece não haver diferenciação e representação da unidade corporal, é como se fosse preciso, para que um Eu se forme, a experiência da pele como experiência paradoxal de si e do outro em único evento.

Além disso, as fantasias de esvaziamento, que Anzieu presenciara em sua clínica, o levaram a inferir que tal início de formação está particularmente relacionado à ideia de ‘bolsa’, ‘contorno’, ‘continente’, ‘capa protetora’, enfim, pele.

Desse modo, Anzieu conclui:

Por Eu-pele, designo uma representação de que se serve o Eu da criança, durante as fases precoces de seu desenvolvimento, para se representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência da superfície do corpo. Isto corresponde ao momento em que o Eu psíquico se diferencia do Eu corporal no plano operativo e permanece confundido no plano figurativo (ANZIEU, 1985, p. 44, grifo nosso).

Podemos, então, reiterar que as ideias de Anzieu apontam que o Eu-pele é como que um pré-Eu, que prepara o caminho para o Eu psíquico:

Este pré-Eu corporal é um precursor do sentimento de identidade pessoal e do senso de realidade, que caracterizam o Eu psíquico propriamente dito (ANZIEU, 1985, p. 65).

O que o autor deixa claro nesta última passagem é que ele define um “início de Eu” mais próximo do corpo orgânico, nomeado de Eu-pele e uma “evolução do Eu”, rumo às abstrações da linguagem, nomeado de ‘Eu psíquico propriamente dito’.

Sobre isso, inclusive, vale reiterar que, para Anzieu, segundo suas próprias palavras, “[...] o Eu, em seu estado originário, corresponde então na obra de Freud ao que eu propus chamar de Eu-pele” (ANZIEU, 1985, p. 95).

Interessa também aqui apontar as implicações dos desenvolvimentos teóricos do autor para sua reflexão sobre a clínica da psicanálise.

Com seus estudos e sua prática clínica, Anzieu esclarece no livro O Eu-pele o que ele nomeou de “patologias do envelope”, que se apresentariam na clínica justamente sob o sentimento de despersonalização, indiferenciação entre o Eu e o não-Eu, dúvidas sobre o que é de si e o que é do outro, megalomania, fantasias de esvaziamento de uma substância vital, fantasias persecutórias de invasão, entre outras. Ou seja, fenômenos patológicos resultantes de insuficiências ou abalos nessa primitiva organização nomeada de Eu-pele.

Isto posto, em termos de consequências clínicas, Anzieu conclui que é importante que o psicanalista esteja atento na sessão não somente ao conteúdo das associações do paciente, mas também às suas “flutuações” (suas faltas, sua frequência, seus problemas com horário, suas variações de fala e silêncio, etc.), para que não ele – o analista –, mas ele – o paciente –, também perceba suas próprias flutuações, suas próprias modificações de fronteira.

Podemos reconhecer nessa proposta que Anzieu nos assinala a possibilidade de uma clínica não só assentada no campo representacional, mas sobretudo como campo de acontecimento, no qual as flutuações estéticas na sessão poderiam ser murmúrios de um Eu-pele em processo de constituição.

 

As nove funções do Eu-pele

Resumamos, portanto, as nove funções do Eu-pele distinguidas por Anzieu, todas correlacionadas com as funções orgânicas da pele, com suas construções psíquicas e suas angústias subjacentes.

1. Assim como a pele sustenta o corpo, o Eu-pele tem a função de sustentar o psiquismo e obviamente importam aí as pessoas encarregadas de “embalar” o bebê. Como angústias ligadas a “defasagens” dessa função, estariam angústias de sentir-se perdido, sem referência, enfim, sem “objeto-suporte”.

2. A segunda função estaria na relação entre a casca e o conteúdo, pois é necessário um conteúdo para fazer referência a um envelope. Para Anzieu a angústia ligada a defasagens dessa função seria de esvaziamento, de incontinência física, de dificuldade de resgate da memória, etc.

3. A terceira função do Eu-pele seria de paraexcitação, correlacionada às terminações nervosas da função tátil. Tal função se refere ao que é permitido entrar ou não, ao que é ou não passível de ser tocado. A angústia ligada a essa função é de teor paranoico de intrusão psíquica, gerando fantasias de ter uma superfície muito fina e passível de invasão ou a ab-reação de formar uma carapaça rígida e intransponível (como uma impossibilidade de contato).

4. A quarta função do Eu-pele se sustentaria no fato de a pele, por envolver todo o corpo, possibilitar ideias de que se é uma unidade, sendo, pois, uma função de individuação que possibilita o sentimento de ser único. A angústia ligada a essa função estaria relacionada a ameaças a essa individualidade, a invasão de ideias sentidas como estranhas, promovendo o enfraquecimento das fronteiras do Self.

5. A pele, com seus orifícios alojando os outros órgãos do sentido, permitiria ao Eu-pele sua quinta função – a intersetorialidade –, que permite a entrada e a saída de conteúdos “de fora” e, assim, é base de comunicação. Para Anzieu, a carência dessa função corresponde à angústia de fragmentação do corpo, de desmantelamento, como se pudesse haver um funcionamento independente, anárquico, dos diversos órgãos do sentido.

6. A sexta função do Eu-pele se sustentaria na capacidade de, na comunicação pele a pele entre mãe e bebê, sentir prazer, ser excitável ao tato. Portanto, tal função pode ser designada como uma função de superfície de sustentação da excitação sexual. Para Anzieu (1985, p. 118) “[...] na falta de uma descarga satisfatória, este envelope de excitação erógeno pode se transformar em envelope de angústia”. As consequências de uma insuficiência dessa função, ou de um posterior prejuízo nela, podem ser uma dificuldade em se envolver numa relação sexual, ou dificuldade em concluí-la.

7. A sétima função está assim resumida:

À pele como superfície de estimulação permanente do tônus sensório-motor pelas excitações externas responde a função do Eu-pele de recarga libidinal do funcionamento psíquico, de manutenção da tensão energética interna e de sua repartição desigual entre os subsistemas psíquicos (ANZIEU, 1985, p. 119).

A angústia ligada a esta sétima função estaria correlacionada a fantasias de explosão interna, por causa de uma sobrecarga de excitação, ou angústia de escoamento da excitação com o perigo de reduzir a tensão a zero.

8. Em paralelo às diversas informações que a pele oferece, como temperatura, tato, pressão, a oitava função do Eu-pele seria a inscrição de traços que permitem um retrato da realidade. Essa função se liga ao que pode ser descrito como um pergaminho originário que guarda traços de um passado remoto. As angústias devido a insuficiências dessa função se ligam a fantasias de ser marcado por algum traço infamante, ou de impossibilidade de inscrições, de construção de uma história.

9. A última função do Eu-pele descrita por Anzieu seria como o negativo de todas as outras funções, uma função de “autodestruição”. Tal função, que Anzieu nomeou de função tóxica1 do Eu-pele, estaria presente na pele como reações imunológicas adversas e parece se ligar a uma tendência paradoxal que vai contra todas as outras funções. As complicações dessa função demonstram um paradoxo entre

[...] o que é natural é vivido como artificial; o vivo é assimilado como mecânico; o que é bom para a vida é sentido como um perigo mortal. Tal funcionamento psíquico paradoxal, por uma reação circular, altera a percepção do funcionamento corporal e se torna reforçado nos seus paradoxos (ANZIEU, 1985, p. 122).

Com isso, Anzieu propõe uma contínua revisão e um constante questionamento sobre o manejo clínico de casos que apontam para problemas referentes ao Eu-pele. Tal manejo não necessariamente obriga o psicanalista ao toque efetivo, obviamente, muito pelo contrário, muitas vezes ele pode, e até deve,

[...] encontrar palavras que sejam equivalentes simbólicos do tocar e que exerçam as funções do Eu corporal e do Eu psíquico que não receberam no passado as estimulações suficientes a seu desenvolvimento (ANZIEU, 1985, p. 129).

Tal é o manejo clínico que Anzieu anuncia:

Cabe ao psicanalista desenvolver no paciente uma consciência suficiente de si e dos outros para que o paciente saiba buscar, encontrar e conservar, fora da análise, os protagonistas capazes de satisfazer suas necessidades corporais e seus desejos psíquicos, sem preencher as falhas narcísicas, e nem fornecer um objeto real de amor. A saúde mental, dizia Bowlby, é escolher viver com pessoas que não nos tornem doentes... (ANZIEU, 1985, p. 139).

Podemos perceber que, baseado em sua clínica e teorizando sobre o Eu-pele, Anzieu, além de definir o que nomeou de patologias do Eu-pele, sublinhou a importância da consideração do ritmo das sessões, em paralelo com a ideia de operação de uma continuidade que permita ao paciente um suporte e uma possível “interiorização” de uma continuidade nele próprio.

Anzieu deixa claro que o Eu-pele deve ser superado. Porém, isso não significa que não permaneça operante como tela de fundo de novas funções e aquisições. Além disso, fica reafirmado que antes o Eu-pele deve ter sido suficientemente adquirido para somente então ser superado.

 

Considerações finais

Isto posto, o vislumbre que Anzieu proporciona em termos de prática clínica quando da ocorrência de casos que apontam para malformações e/ou abalos no Eu-pele seria desenvolver antes uma “pele de palavras que acalme a dor” (ANZIEU, 1985, p. 214), para, com isso, iniciar um percurso de reconstruções de saídas no mínimo menos destrutivas para o paciente.

Para concluir, o analista certamente está escalado a responder em sua prática sobre as consequências de suas ações no que tange à consideração do Eu-pele.

Nesse sentido, a contribuição de Anzieu nos indica que, ao não propiciar, quando necessário, esse “objeto suporte”, o analista: (1) ou estaria sendo omisso – e ignorante das consequências dessa omissão; (2) ou, por um excesso de prudência, impediria ao paciente o acesso a novas construções, inviabilizando a própria análise.

Nesse vértice, vemos que estaríamos falando não tanto de uma clínica da escuta, mas sim de uma clínica na qual a sensibilidade do analista é convocada para dar suporte, acolhimento e reconhecimento aos campos estéticos produzidos pelo paciente na sessão, que seriam possibilidades de eventos de intercorporeidade, base fundamental para a evolução em direção a experiências intersubjetivas na situação clínica.

 

Referências

ANZIEU, D. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1988.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Ligia Maria Durski
E-mail: ligiadurski@usp.br

Gilberto Safra
E-mail: iamsafra@usp.br

Recebido em: 04/08/2015
Aprovado em: 11/03/2016

 

 

Sobre os autores

Ligia Maria Durski
Psicóloga e bacharel em psicologia pela Universidade Federal do Paraná 2006).
Mestre em psicologia clínica/psicanálise pela Universidade Federal do Paraná (2011).
Doutoranda em psicanálise pela USP.
Membro pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Laboratório PROSOPON da USP.

Gilberto Safra
Graduado em psicologia pela USP (1976).
Mestre em psicologia clínica pela USP (1984).
Doutor em psicologia clínica pela USP (1990).
Professor doutor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP (desde 1991).
Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Laboratório PROSOPON da USP.

 

 

1 Sobre a função tóxica do Eu-pele, aliás: Tal possibilidade denotaria quase uma subversão total do princípio de prazer, mas, para Anzieu, o existir através do sofrimento não é uma subversão do princípio de prazer – muito embora o pareça em casos extremos de masoquismo nos quais o sujeito coloca sua vida no limite entre a vida e a morte. Nesses casos Anzieu defende que, pelo contrário, o existir através do sofrimento seria como o derradeiro recurso para prolongar a vida, a última possibilidade de tirar algum prazer, de suportar um pouco mais algo da ordem do insuportável.

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