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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.72 Belo Horizonte dez. 2016

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

As desventuras de um vovô pós-moderno

 

The misadventures of a postmodern grandpa

 

 

Arlindo Carlos Pimenta

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do caso clínico de um sujeito idoso, o autor traça um desenvolvimento histórico da família patriarcal e suas transformações até a contemporaneidade. Acentua as alterações nos laços sociais caudados pela prevalência do discurso do capitalismo e pelo funcionamento em rede. Tece algumas considerações sobre essas alterações, suas consequências e o processo contemporâneo do envelhecer.

Palavras-chave: Família patriarcal, Discurso e laços sociais, Discurso do capitalismo, Funcionamento em rede, Família pós-moderna, Envelhecimento.


ABSTRACT

From the clinical case of an elderly subject, the author draws a historical development of the patriarchal family and its transformations to contemporary times. Accentuates social changes caused by the prevalence of capitalist discourse and the networking. Presents some considerations about these changes, their consequences and the contemporary process of aging.

Keywords: Patriarchal family, Discourse and Social Ties, Capitalist Discourse, Networking, Postmodern Family, Aging.


 

O valioso tempo dos maduros

Mário de Andrade

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas...
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos,
não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!

 

Giovani, hoje com 78 anos, procura a análise pela segunda vez. Sua primeira demanda aconteceu há trinta anos, motivada por uma crise conjugal, que acabou desembocando no divórcio solicitado por sua mulher.

Naquela época ele se mostrava muito angustiado e deprimido, sentindo-se culpado pelo término do relacionamento. Dizia-se sem rumo, solto no tempo e no espaço. Permaneceu casado por doze anos e teve três filhos (dois homens e uma mulher).

Há cerca de um ano fui novamente procurado por Giovani. Fez um relato sucinto desses trinta anos. Nesse período teve dois relacionamentos com altos e baixos. Mas a demanda atual é outra. Agora, com 78 anos, aposentado, com problemas de audição (labirintite) e dificuldade de locomoção, se viu acometido por um quadro depressivo grave em que prevalecia, além de profunda tristeza, perda de interesse pela vida, pelas leituras, que eram o seu forte, e principalmente por um retorno de lembranças de vivências de sua juventude, eivadas de um forte remorso.

Ouço de Giovani o seguinte relato:

Sou hoje um ser solitário. Tenho três filhos que trabalham muito e não têm tempo para nada. Um mora fora. Tenho um contato maior com o mais velho, que demorou a se casar e tem dois filhos pequenos, com quem gosto de brincar. Minha filha é separada e tem um casal de filhos. Um menino de 8 e uma menina de 11. Tento me aproximar de meus netos, mas encontro dois obstáculos principais. Primeiramente, ao contrário de mim, que tenho todo o tempo do mundo, eles não têm tempo nenhum. Sempre têm deveres de casa em excesso, tais como aulas de inglês, a menina faz balé duas vezes por semana, e o garoto joga futebol. Minha filha está sempre atarefada e impaciente com o novo relacionamento, o qual acho muito estranho. Seu companheiro não tem um trabalho certo, tem dois filhos de outros relacionamentos dos quais não cuida e atualmente mora com a mãe. Minha filha deixou escapar en passant que ele é usuário de cocaína.

Voltando a meus netos, de 8 e 11 anos, tenho a maior dificuldade em me relacionar com eles, pois praticamente não conversam, permanecendo o tempo todo no celular. Não têm paciência para escutar um caso ou me contar o que se passa com eles, o que faz com que eu me sinta um maçante saca-rolhas. Tentei comprar um baralho do tipo “mico preto” para jogarmos juntos, mas o olhar de desdém por parte deles me fez recuar. Não entendo de jogos eletrônicos. Tentei jogar com meu neto e fiquei abismado com sua facilidade em manejar o jogo. Resultado: perdi para ele de 17x0. A minha sensação é de grande estranheza e distanciamento. Estamos em culturas muito diferentes. Sou um estranho para meus netos e eles também o são para mim.

Praticamente nada do que me esforcei para transmitir para meus filhos persiste ainda. Em se tratando de valores familiares ou políticos, somos absolutamente diferentes. Minimizam os horrores da ditadura militar no Brasil e acham que os norte-americanos não tiveram nada a ver com isso. Fazer o quê? São belos coxinhas de direita. Os filhos do meu mais velho moram fora e me acham um retrógrado e preconceituoso porque não gosto de veados. Frequentam boates GLS e vão à parada Gay.

Minhas refeições são sempre solitárias. Normalmente não janto. No almoço apelo para o self-service e às vezes vou à casa de um dos filhos. Aos domingos é pior. Fico me lembrando dos ajantarados onde se reunia toda a família. Era uma festa. Às vezes discutíamos e brigávamos por questões familiares ou políticas. O mesmo acontecia nos aniversários e festas de final de ano. Hoje as comemorações acontecem em restaurantes e pizzarias e me dão a impressão de eventos comerciais, faltando o calor afetivo da intimidade familiar.

Há cerca de 5 anos fui operado de próstata. O diagnóstico foi precoce e a cirurgia correu bem. Tenho feito controle regular com meu urologista. Entretanto, faz um ano e meio que meu exame de PSA passou a oscilar. Às vezes aumenta, às vezes diminui. Meu urologista não é de muita conversa e não esclarece suficientemente minha situação clínica. Diz apenas que o PSA não pode passar de certo limite. Recentemente encaminhou-me para um radioterapeuta. “Este me informou que, se o PSA ultrapassar o limite, deverei me submeter à radioterapia, associada à hormonioterapia.”

Essa afirmativa trouxe a Giovani uma profunda angústia diante da perspectiva de cair a barba e afinar a voz. Começou a fantasiar como seria sua vida caso se tornasse inválido. Teria o auxílio dos filhos?

Passou, então, a pesquisar hotéis geriátricos e cursos de cuidadores de idosos, sempre muito depressivo e angustiado.

Disse-me ainda que um amigo seu foi internado às pressas em função de um problema coronariano e de hipertensão. Já recebeu alta e está em casa. Foi visitá-lo num fim de semana. Ele estava sozinho, ou melhor, com um cuidador. O amigo lhe contou que os filhos não aparecem para vê-lo. Trabalham muito a semana inteira e nos finais de semana vão para o clube descansar.

Vejamos, então, a que conclusões nos levam uma reflexão e articulação dos dados apresentados por esta vinheta clínica.

 

Evolução histórica da família

Freud, no capítulo VIII de Psicologia de grupo e a análise do ego ([1921] 1996) e principalmente no capítulo IV de O mal-estar na civilização ([1930] 1996), afirma que, após o recalque orgânico, nossos ancestrais perceberam que a necessidade de satisfação genital não apareceria mais como um hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não se ouve mais falar por longo tempo; pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente. Quando isso aconteceu, continua, o macho adquiriu um motivo para manter a fêmea junto de si ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais ao seu lado. Já a fêmea, não querendo se separar de seus rebentos indefesos, se viu obrigada, no interesse deles, a permanecer ao lado do macho mais forte.

Estariam, então, estabelecidas as bases da família patriarcal, ou da horda primeva, cujo crime praticado pelos filhos levaria ao estabelecimento do pai morto como lugar vazio a ser ocupado pela lei, derivando daí a emergência da cultura, fruto da ambivalência com relação ao pai, bem como do sentimento de culpa pelo ato criminoso.

Lévi-Strauss (apud ROUDINESCO, 2003), ao enfatizar a passagem do estado de natureza ao de cultura, afirma que o que realmente diferencia o animal (natureza) do ser falante (simbólico) é que na humanidade uma família não seria capaz de existir sem sociedade, entendida como uma pluralidade familiar, pronta a reconhecer que existem outros laços além dos de consanguinidade (clãs totêmicos de Freud) e que o processo natural de filiação somente pode prosseguir através do processo social da aliança.

Com o passar dos séculos, a família foi se reduzindo e passou a designar o núcleo composto por pai, mãe e filhos, como família nuclear. Lacan, em Os complexos familiares ([1938] 1998), atribui essa redução à influência do casamento, razão pela qual a denomina família conjugal.

Elisabeth Roudinesco, em seu livro A família em desordem (2003), faz um estudo histórico da evolução da família ocidental e distingue três grandes períodos da evolução da família:

1. Na primeira fase, a família dita ‘tradicional’ serve, acima de tudo, para assegurar a transmissão de um patrimônio.

2. Na segunda fase, a família dita ‘moderna’, fundada no amor romântico, torna-se receptáculo de uma lógica afetiva cujo modelo se impõe entre o final do século XVIII e meados do século XX.

3. A partir dos anos 1960 se impõe a família dita “contemporânea“ ou “pós-moderna” que une, ao longo de uma duração relativa, dois sujeitos em busca de relações íntimas ou sexuais.

 

A família patriarcal

É centrada na autoridade do pai, muitas vezes tirano e déspota, e na submissão dos demais. O pai é aquele que toma posse do filho. Em Roma, pater é aquele que, ao elevar a criança em seus braços, designa a si mesmo como pai. A filiação biológica é totalmente desconsiderada nessa cultura.

Na família patriarcal o pai transmite ao filho um duplo patrimônio: o de sangue, que imprime a semelhança, e o nome, que lhe confere uma identidade. Daí derivam as duas funções da paternidade: genitor e pater.

Com a evolução histórica e com as revoluções francesa e industrial, o pater familias se mantém autocrata porém desprovido de atributos divinos como anteriormente. A ordem familiar econômico-burguesa passou a ser, então, fundada em três pontos principais: autoridade do marido, subordinação da mulher e dependência dos filhos.

A substituição do poder de Deus pai pelo poder do pater familias abre, no entanto, o caminho da emancipação, primeiramente das mulheres e posteriormente das crianças.

Roudinesco (2003, p. 118) assinala ainda:

Foi primeiramente do declínio do poder divino do pai, e de sua transferência para uma ordem simbólica cada vez mais abstrata, depois da maternalização da família, que surgiu, em toda sua força, a sexualidade das mulheres [...] Com a conquista definitiva de todos os processos da procriação pelas mulheres, um temível poder lhes foi reservado no final do século XX. Elas adquiriram então a possibilidade de se tornar mulheres prescindindo da vontade dos homens.

O feminino se desvencilha do maternal.

Sabemos que, mesmo em Freud (1933 [1932] 1976), a questão do feminino se mostra complicada, tendo levado o mestre a considerá-lo como um continente negro. Para Freud, o feminino ainda estava muito preso ao maternal, embora não exclusivamente.

Coube a Lacan ([1972-1973] 1985), através da elaboração das tábuas da sexuação, diferenciar o feminino como não todo fálico, descrevendo o “Outro Gozo” como próprio do mesmo. Afirmou que, diferentemente dos homens, as mulheres não formam um conjunto fechado sendo, portanto, impossível definir A mulher (LACAN, [1972-1973] 1985). A mulher não existe, e sim as mulheres, uma a uma.

Bernard Nominé (1997) cria um interessante matema para diferenciar a função materna da mulher. Diante da impossível resposta sobre “o que quer uma mulher?”, ele afirma que é possível saber o que quer uma mãe, isto é, um filho.

Podemos, então, escrever: , isto é, um homem é aquele que coloca uma mulher como causa de seu desejo. Consequentemente, a mulher é aquela que pode ocupar o lugar de causa de desejo para um homem.

Também o mesmo matema serve para definir a mãe , ou seja, a mãe é aquela que coloca o filho na posição de causa de desejo, ocupando, portanto, nessa função, uma posição masculina.

Antonio Quinet (2015) afirma que, mesmo em casais homoeróticos, sempre um parceiro ocupa a posição fálica, e o outro, a posição não toda. Nesse sentido, não existe a homossexualidade, ou seja, o desejo entre dois iguais.

Todas essas condições contribuíram para o aparecimento da dita família pós-moderna como definimos acima, caracterizada por laços temporários e não garantidos, seja pela religião, seja pelo Estado. Esse laço é sustentado apenas pelo vínculo amoroso e pela atração erótica.

Fazemos aqui uma pausa e uma viragem para enfatizar as mudanças ocorridas na pós-modernidade, sua influência nos laços sociais como um todo, especialmente no que diz respeito aos laços familiares, bem como suas consequências.

Primeiro enfatizamos o fato de que, já em Freud, não é feita uma divisão nem uma distinção entre o que ele chama de psicologia individual e psicologia grupal.

Porém, é Lacan que, ao criar a categoria do grande Outro, abole completamente essa distinção. Ao que Freud chama de civilização ou cultura, Lacan chamará de discursos. Nestes, a partir das profissões impossíveis mencionadas por Freud (governar, educar e tratar ou analisar), Lacan acrescenta o fazer-se desejar da histeria e postula os quatros discursos: do mestre, do universitário, da histérica e do analista.

Posteriormente, nos anos 1970, ao abordar o campo do gozo, Lacan propõe também o discurso do capitalista, que seria uma mutação do discurso do mestre:

Antonio Quinet (2015) – em conferência proferida na última jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, a qual denominou Conecto logos ex-isto – afirmou que o mundo virtual da contemporaneidade, que determina o modo de existência atual, é assim composto:

1. Pelo discurso do capitalismo;
2. Pela sociedade escópica;
3. Pelo funcionamento em rede.

O conecto é uma constatação, um fato, além de um imperativo, ou seja: Conecte-se! Senão você não existe.

O logos da linguagem se materializa na rede. A própria estrutura psíquica entra nisso, determinando formas de laço. Existe o sujeito conectado. A rede não tem limites. É o que Castells (apud QUINET, 2015) chama “a galáxia da internet”.

No discurso do capitalismo não há barreira ao gozo, ao contrário dos outros discursos. Observamos, então, que o discurso do capitalismo destrói os laços sociais – feudais, patriarcais e idílicos –, ou seja, a relação do sujeito com seus ideais, o que é reforçado pelo funcionamento em rede.

Observamos, então, que o discurso do mestre e o discurso do universitário, denominados por Lacan de discursos da dominação, necessitam de sujeitos para encarnar o comando.

No discurso do capitalismo só há um laço entre o sujeito e o objeto (mercadoria). O lugar da verdade no discurso capitalista é ocupado pelo sujeito como investidor (até que ponto é capitalizado ou não?) ou consumidor. Para o discurso capitalista não existe sociedade; o que existe é o mercado.

Lacan afirma que no discurso capitalista há a foraclusão da castração, o que promove sujeitos insaciáveis (falta a gozar). O discurso capitalista é, portanto, irregulável; além disso, é um discurso que corrompe os laços principalmente os políticos. E dessa corrupção não escapam nem mesmo a psicanálise e suas instituições.

Trata-se de um discurso paradoxal, pois, ao contrário dos outros, é um discurso fechado, que não faz laço. Podemos lê-lo assim: o S1 (capital) induz o S2 (ciência/tecnologia) a produzir objetos mercadorias (gadgets) para o sujeito na posição de consumidor. Este, por outro lado, demanda ao capital a produção de novos objetos que comandam o sujeito, e assim por diante.

Colette Soler (2005) analisa a mudança proposta por Lacan sobre o tema. Segundo a autora, a angústia que não é sem objeto estava amarrada a um grande outro. Portanto, quanto mais o grande Outro é consistente, menos há conjunturas de angústia. O grande Outro é consistente em uma cultura em que o discurso sutura o ?, ou seja, o discurso preenche ou amarra a questão do enigma e da ameaça do desejo do Outro. A cultura constrói outro de quem praticamente se sabe o que quer.

Talvez seja essa a razão das sociedades denominadas por Lévi-Strauss de “sociedades frias”, em que prevalece o grupal sobre o individual, por isso essas sociedades mudam muito pouco. O grande Outro aí é consistente.

Soler cita o exemplo do penitente da Idade Média, em que o pecador e o castigo eram precisamente definidos e nomeados. O grande Outro podia ser ameaçador, mas era, em última instância, prometido como o Outro do amor.

Ao contrário do penitente, que participava mais do pavor e da culpa, o sujeito pós-moderno perdeu há muito esse Outro. “Derrelição” é como Colette Soler designa a atual relação sujeito-Outro. Derrelição designa, então, a sorte da criatura perdida no mundo sem criador e sem Outro, tendo como consequência o desamparo e o abandono.

Chama-nos a atenção o romance Frankenstein - o moderno Prometeu, escrito em 1818 por Mary Shelley, em que a questão da ciência, mesmo tendo possibilidade de criar a vida sem a função paterna, gera monstruosidade, violência e destruição na busca da filiação. Voltando a Soler, ela liga o início do processo de derrelição à emergência da ciência.

Acrescentaríamos que o movimento do Iluminismo ou Ilustração elevou o científico ao grau de grande Outro salvador e teve seu debacle na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando ficou patente que apenas a ciência não era suficiente para solucionar as questões da humanidade; pelo contrário, contribuía para agravá-las, produzindo tanques de guerra, aviões de bombardeios, submarinos, etc.

Lembramos aqui a propósito da derrelição, que Freud ([1939] 1976), no final do seu texto Moisés e o monoteísmo, ao abordar a nostalgia do pai, nos assegura que a situação de desamparo é tão contundente para o ser humano que é preferível ser tiranizado a se sentir abandonado.

Pensamos que o fracasso do Iluminismo, ao colocar a ciência como salvadora, funcionou como a gota d’água que, junto com outros fatores já citados, contribuiu para a prevalência do discurso do capitalismo, que caracteriza a nossa contemporaneidade. As consequências são várias e têm a ver com sua influência nos laços sociais, como frisamos anteriormente.

Detalhamos tais consequências no nível dos laços familiares e, com isso, procuramos compreender as queixas e as angústias trazidas pelo nosso paciente.

A derrelição do grande Outro e sua ocupação pelo mestre pós-moderno, o capital, tem, portanto, como consequência o enfraquecimento dos laços familiares desde que a ênfase seja dada ao consumo. Assim, para consumir mais, temos de trabalhar mais. E como tempo é dinheiro, o tempo destinado aos laços sociais, em geral e em especial aos familiares, é muito pequeno.

Freud ([1913] 1976), em Totem e tabu, sublinha a ênfase dada ao reforço dos laços sociais e familiares através da função simbólica da refeição em comum. A refeição entre familiares é praticamente abolida pela necessidade de ganhar tempo e pela instituição do self-service.

Outra consequência da derrelição do Outro faz com que a estrutura histérica, presente ainda maciçamente em nossos consultórios, se apresente não mais como somatizações (simbolizações no corpo), mas como depressões, indicando aí uma condição de perda dos ideais.

Nesse nível, podemos citar também a síndrome do pânico. Ao contrário do pânico descrito por Freud ([1921] 1976) em Psicologia de grupo, ligado ao desaparecimento do líder, do chefe, o pânico atual, produzido pelo individualismo capitalista, leva os clientes à afirmação de que se trata de pânicos incompreensíveis.

Na realidade, ainda com Colette Soler (2005), podemos afirmar que se trata de crises de derrelição em que o sujeito é repentinamente tomado pelo fato de se reduzir a um corpo. Constata-se que essas crises aparecem com mais frequência em executivos, ou em sujeitos cuja inserção profissional e afetiva é precária ou inexistente. Observa-se neles, verdadeiramente, o afeto de desligamento.

Quanto à falta de presença dos familiares e à solidão social de que se queixa Giovani, para um sujeito nascido nos anos 1940/1950, essas alterações sociais e familiares foram significativas.

Já não se conta mais com os pontos de encontro: bailes, festas folclóricas, horas dançantes e mesmo o almoço de domingo na casa da vovó. Os famosos ajantarados não acontecem mais.

Os laços sociais são substituídos pelos laços com as máquinas, tais como notebooks, Ipods, smartphones e com as redes sociais em geral.

É comum que os aniversários sejam mais comemorados não em casa, mas em bares e restaurantes e que os presentes estejam ligados ao celular, teclando ininterruptamente, no que podemos chamar de autismo induzido.

Nesse sentido, as funções familiares definidas em termos de discurso e possuindo uma série de funções, entre as quais a transmissão de um nome, da língua materna (lalangue), de um desejo, de ideais, além de outros, sofre uma ruptura em seus laços e não exerce suas funções. Nessas condições, muitas vezes, é disso que Giovani se queixa: a figura do vovô é a de um retrógrado esquecido acolhido pela diretoria da empresa, com a conivência familiar.

Por outro lado, a sociedade regida pelo discurso capitalista, segundo Quinet (2015), como frisamos anteriormente, se nutre da fabricação da falta de gozo e produz sujeitos insaciáveis em sua demanda de consumo. Consumo de gadgets que ela oferece como objetos de desejo promovendo uma nova economia libidinal. Produz, assim, uma ‘lei’ de querer obter vantagem em tudo. Vantagem para consumir e nos consumirmos mais.

Nesse contexto abordamos, ainda que brevemente, a questão do envelhecimento, bem como as consequências que o discurso da contemporaneidade tem sobre esse processo.

Ângela Mucida (2004, p. 39), ao trabalhar de forma magistral a tese de que o sujeito não envelhece, afirma que “[...] cada um envelhece apenas de seu próprio modo” e que a velhice como destino se mede pelos atos. Assim, são esses atos que permitirão a passagem de um destino, nem sempre divertido, que é prescrito pelo real do corpo e leva cada um a um modo particular de conduzir sua velhice.

Se o sujeito não envelhece, é certo que o corpo envelhece e, com o desenvolvimento maior da clínica geriátrica, a expectativa de vida tem aumentado, o que necessariamente não coincide com sua qualidade.

Alguns autores atribuem a Freud uma posição pessimista com relação à vida em geral e ao envelhecimento como uma aproximação face a face com a morte. Outros atribuem a ele uma postura mais realista.

De qualquer forma, em Além do princípio do prazer, o mestre nos adverte:

Se temos de morrer, e primeiro perder para a morte aqueles que nos são mais caros, é mais fácil submeter-se a uma lei impiedosa da natureza, à sublime ananké [necessidade], do que a um caso de que talvez pudéssemos ter fugido (FREUD, [1920] 1996, p. 55-56).

E com as transformações da pós-modernidade, a prevalência do discurso do capitalismo têm influído no envelhecer e na velhice. São várias as consequências, como salienta nosso cliente. Como acentua Mucida (2004), não há uma velhice natural; ela é atravessada pela linguagem que habita o sujeito e seus traços. E como um dos nomes do real, a velhice é particularmente propícia ao surgimento do desamparo.

Vemos, então, com o aparecimento da estrutura familiar contemporânea, onde os laços são diversos e temporários, e sob a ação do discurso capitalista, que o tempo e o consumo prevalecem sobre o convívio familiar, que vai se tornando escasso e rarefeito.

Nesse sentido, o espaço e o respeito antes concedido ao ancião, sua sabedoria e sua experiência perdem todo poder e valor. O conhecimento cibernético e o funcionamento em rede se sobrepõem completamente ao saber da vivência e da experiência.

O conflito de gerações, que sempre existiu, se torna bastante ampliado. O que vale são os gadgets consumidos avidamente, levando sempre à busca do novo e do mais sofisticado. Talvez isso não tivesse grande importância se não ocorresse à custa do grave comprometimento dos laços sociais e, principalmente, dos familiares.

Às vezes me pergunto como vai se dar a transmissão, a herança arcaica, já que se faz principalmente pela via do simbólico, pelo Outro, continente dos traços de sujeitos importantes de sua história. Como isso será feito se em seu lugar, desde cedo, estão a babá eletrônica, o ipod, o Facebook, e as demais invenções da tecnologia e as redes sociais? São questionamentos ainda enigmáticos, e não uma postura saudosista e romântica.

Nessa perspectiva, podemos ver com um pouco mais de clareza as queixas depressivas de Giovani. O que não falta é uma diversidade de perdas, como nos adverte Freud, no nível da natureza, do corpo e dos laços sociais.

Se é verdade, como assinala ainda Mucida (2004), que o desamparo presente de forma por vezes muito gritante na velhice se relaciona intimamente com a maneira como o sujeito pode conduzi-lo em sua vida, não é menos verdade que o enfraquecimento dos laços sociais não deixa de ser um fator de agravamento do desamparo.

Se uma das possibilidades de lidar com o discurso do capitalista é através da psicanálise, na medida em que ela acentua a posição do sujeito do desejo, a economia do gozo e a ética, talvez essa possa ser a saída de Giovani, em sua derrelição frente ao Outro, mormente na versão do Outro social e familiar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: arlindopimenta@gmail.com

Recebido em: 11/10/2016
Aprovado em: 23/11/2016

 

Sobre o autor

Arlindo Carlos Pimenta
Psiquiatra. Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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