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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.72 Belo Horizonte dez. 2016

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Cleptomania: quem roubou o meu afeto

 

Kleptomania: who stole my affect

 

 

Otacílio José Ribeiro

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto apresenta e discute recortes da casuística de uma adolescente que manifesta furtos de objetos de pequeno valor. Lida-se aqui com o pressuposto da falta de afetividade na família, deparando-se com a questão do afeto e sua representação à luz da metapsicologia freudiana. Nas considerações finais aponta-se para a castração simbólica, que marca os neuróticos, ou a sua recusa, como mecanismo essencial da perversão.

Palavras-chave: Cleptomania, Afeto, Metapsicologia freudiana, Édipo, Castração simbólica.


ABSTRACT

This text aims to present and discuss clippings of cases of a teenager girl who expresses thieveries of of small value objects. Dealing here with the assumption of a lack of affection in the family, faced with the question of affect and its representation in light of Freudian metapsychology. The final considerations point to the symbolic castration that marks the neurotic or his refusal as an essential mechanism of perversion.

Keywords: Kleptomania, Affect, Freudian metapsychology, Oedipus, Symbolic castration.


 

Introdução

Este texto apresenta e discute recortes da casuística de uma pré-adolescente de 12 anos de idade, que, segundo os pais, manifesta baixo rendimento escolar e furtos de objetos de pequeno valor. A subtração de objetos alheios ocorreu inicialmente dentro de casa; posteriormente, as ocorrências começaram a aparecer em outras esferas sociais como escola e vizinhança.

Embora a primeira queixa estivesse pautada na relação com o conhecimento escolar, em todas as entrevistas o tema furto era o mais recorrente, talvez porque os fatos expunham a família na comunidade onde vive. Os pais contam que a adolescente alterna sentimentos de euforia e depressão. Não usa medicamentos antidepressivos ou com propriedades estabilizadoras do humor. Normalmente, os objetos desaparecem nos momentos depressivos, e posteriormente são encontrados escondidos em recantos de seu quarto.

“Quem roubou o meu afeto” vai se haver aqui com o pressuposto de que falta afetividade na família. Tratará ainda da questão do afeto e sua representação à luz da metapsicologia freudiana, além da questão edípica – núcleo das neuroses e das perversões – que perpassa a trama da adolescente. Nas considerações finais, aponta-se para a castração simbólica que marca os neuróticos ou a sua recusa como mecanismo essencial da perversão.

 

Material e método

O material que dá corpus a este texto foi colhido através de entrevistas não estruturadas, respeitando-se o princípio da associação livre, com pequenas intervenções quando estas se faziam necessárias, no sentido de clarear, aprofundar ou problematizar alguma questão. Foram feitas entrevistas com os pais, com a mãe separadamente e com a filha.

A família mora em um aglomerado de uma capital. O casal tem quatro filhos – três homens (16, 14 e 10 anos) e PR, de 12 anos. Ela é a penúltima. Os filhos estudam em escolas públicas que servem à comunidade e todos eles apresentam um comportamento indisciplinado na escola, mas a cobrança maior recai sobre a menina. Quando advertida por educadores, ela fica quieta e não responde; “paga de boazinha e amorosa com os professores” – fala o pai. “Não leva a vida a sério, sempre na brincadeira” – a mãe intervém com um sorriso dissimulado.

PR furta pequenos objetos de valor afetivo dos irmãos, os quais brigam, dão broncas e pedem a intervenção dos pais. A mãe procura os objetos pela casa inteira e muitas vezes os encontra em um canto qualquer, ou debaixo do colchão, ou recantos da cama e nos armários da menina. Muitas vezes aparecem objetos estranhos em casa e ela não dá conta de explicar de onde tirou. Esconder e revelar: podendo, ela camufla.

Certa vez, PR contou que uma professora deixou a bolsa com a carteira dentro da sala de aula; ela põe a mão na cabeça, se contorce e curva até o chão da poltrona e fala ao psicanalista: “Nó veio, tinha cinquenta reais, aquilo ficou na minha cabeça, eu queria, tive medo, acabei tirando”. O irmão de 14 anos ficou sabendo, mas não pôde contar, porque “eu sabia das tretas dele”, diz. “Se contasse, eu falava pro meu pai o que ele apronta”. Chantageia os irmãos e os primos. Os pais souberam do fato através da escola e repuseram a quantia à professora. “Ela quer o que é do outro”, diz o pai. “Ela é muito diferente dos irmãos: o mais velho já trabalha, os outros estudam”. O pai castiga a filha, tirando-a do próprio quarto e colocando no alojamento do irmão mais novo. Ela se chateia com isso, mas aparentemente a raiva não dura muito tempo.

A mãe se nivela com a filha no uso de roupas e na apresentação. São muito parecidas. Sente-se insegura, relatando dificuldade em ser assertiva e em exercer a autoridade de mãe. Casou-se muito jovem: o marido foi o primeiro namorado e logo a seguir engravidou. Na sequência das informações, ela revela ter um amante, “que não vale nada”. O marido é muito melhor que ele em todos os sentidos. Mas sente falta de outras experiências em realizar suas fantasias sexuais. As amigas “põem pilha” (sic). Ela se sente atraída e desejada pelo amante. Depois tem crises de arrependimento e culpa; condena o próprio comportamento prometendo-se melhorar e tomar postura. Gosta do marido e não quer perdê-lo. Vai terminar com o amante, que é casado e seu vizinho. No entanto, continua brincando com o perigo, fazendo jogos de sedução, “dando corda” (sic). Vive a aventura sexual com “deslumbramento e loucura”, diz. Dissimula o comportamento aventureiro, mas acredita que o assunto já é do domínio público. “Será?” – ela mesma se coloca em dúvida. Num misto de arrependimento e excitação, a mulher conclui que não leva a vida a sério, tal qual a filha; não leva “porque tem o marido para corrigir”. Vive na leveza, sobrecarregando o esposo, que é tudo: mantenedor, carinhoso, presente na família, presente na educação dos filhos.

A adolescente revela se sentir carente e briga pelo colo dos pais (a mãe não é de muito aconchego e expulsa). Quando pequenos, ela não gostava do irmão mais novo, mas hoje são muito amigos: conversam e trocam presentes. Não gosta do irmão mais velho, por isso tira as coisas dele, assim como subtrai merenda dos colegas quando fica sozinha em sala de aula. “Se der mole, eu pego”, fala.

 

Discussão

Segundo Henri Ey (1969, p. 362) a palavra “cleptomania” designa o roubo impulsivo.1 O roubo pode se inscrever na linha das perversões sexuais como um meio de proteção contra perigos imaginários: culpabilidade, agressividade, castração e tem valor de represália nos complexos de frustração. Essa impulsividade por roubar é patológica, diferente do roubo intencional, no qual as pessoas fazem em geral por falta de caráter e, às vezes, por necessidade.

Levantar uma hipótese diagnóstica, aqui, em particular no campo da psicanálise, não é fácil. Os objetos furtados pelos cleptomaníacos normalmente são desnecessários para uso pessoal e de baixo valor monetário. Ou seja, para o cleptomaníaco, o ato em si é mais importante do que o objeto. PR apresenta uma necessidade repetida de subtrair objetos que não lhe pertencem. A apropriação indevida de dinheiro e/ou de celular, como PR demonstrou, favorece um enquadramento da adolescente no quadro médico de transtorno de conduta.

Contudo, considerando a faixa etária da cliente (o recrudescimento do Édipo, um momento de contestação das leis), é prematuro sustentar tal diagnóstico. Não se trata de uma psicose, já que a adolescente não manifesta sintomas próprios do quadro. Teria PR uma estrutura perversa?

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996, p. 157) afirmava que as neuroses são o negativo das perversões. Essa afirmação, somada ao processo psíquico e biológico que a adolescência traz para a garota, com prudência, leva-nos a apostar na neurose obsessiva.

A menina vive o mito e a fantasia de que tudo lhe pertence, numa relação narcísica com o mundo (LACAN, 2008, p. 27-28). “Ela sempre quis o que não é dela” – diziam os pais. Esse comportamento evidencia uma tendência continuada em realizar furtos.

Para a psicanálise, esse é um mecanismo de autocompensação de origem psíquica, que pode começar na infância, no momento em que o indivíduo se percebe em um contexto de falta de afeto, que acaba gerando uma ansiedade desenfreada culminando no desencadeamento da situação patológica, na qual prefere ser punido a ser ignorado. Tal comportamento é acompanhado habitualmente de um estado de tensão e excitação crescente antes do ato e de um sentimento de satisfação, com alívio de tensão e ansiedade, durante e imediatamente após sua realização (FREUD [1894], 1996). O acúmulo de excitação compromete os atos de vida de PR, inclusive os escolares. Diante de sua identidade afetiva pobre, ainda que coagida a tal, a adolescente ou devolve o objeto furtado ao seu local de origem ou assume uma postura dissimuladora.

No campo teórico psicanalítico, pode-se verificar aqui a questão econômica do afeto. Garcia-Roza (2004, p. 93), citando Freud e o projeto de 1895, fala da “recepção de estímulos externos e da descarga de excitações endógenas”. Freud fala de afeto, ligado a uma representação investida a partir da pulsão com um determinado quantum de energia psíquica, e, em seguida nomeia esse quantum de energia psíquica de “quota de afeto”, pela pulsão libidinal, passando pelo masoquismo, fornecendo uma série de explicações relativas ao destino esperado (em termos sociais) da sexualidade perversa polimorfa: o recalcamento e a sublimação, além de sua reordenação e organização da sexualidade genital do adulto (FREUD, [1905], 1996, p. 157).

No nosso caso, mãe e filha sofrem com o problema econômico do masoquismo. “O amante não presta, mas me dá uma coisa...” – diz a progenitora. “Nó, veio, uma nota de 50 dando mole pra mim...”, fala a filha. Vai, não vai; tira, não tira... As mulheres vivem uma excitação e estimulação; prazer e desprazer. O desprazer estaria ligado a uma elevação do nível de energia ou a um acréscimo quantitativo de pressão (FREUD [1905], 1996, p. 157; GARCIA-ROZA, 2004, p. 93).

A jovem passa por um momento de recrudescimento edípico e vive no jogo das fantasias. O progenitor quer nos parecer uma figura fraca, embora nos pareça ainda ser pai de todos da família, incluindo a esposa. Um pai que não se define – sabe / não sabe / finge que não sabe das peripécias da esposa e quiçá dos filhos. Isso é um fator que pode trazer insegurança para o grupo familiar além de revolta, já que ele não se define.

Na neurose obsessiva, quando persiste o ódio à função do pai, a ambivalência ganha cores e forte feição masoquista. A submissão ao pai domina o cenário fantasmático, como defesa quase intransponível diante da castração e no rechaço da passividade, implícita e inerente à identificação no Édipo. Pai, mãe e filha vivem uma tematização triangular do complexo de Édipo (LACAN, 2008, p. 31, 39-41). O Édipo aqui é não normativizante, mas patogênico. Para além de representante da função simbólica, “[...] seria preciso que o pai não fosse somente o Nome-do-Pai, mas representasse em toda a sua plenitude o valor simbólico cristalizado na sua função” (LACAN, 2008, p. 39, 40), como “a relação narcísica”, como “imagem no espelho” e não em uma “derrelição”, um abandono transgressivo.

Diante do declínio das idealizações parentais, busca-se assumir novas formas em função das novas identificações que se dão a partir do encontro de novos objetos, ideias ou projetos que ocupem para os jovens o lugar de ideais. Esse trabalho possibilitará a construção de novas vias de escoamento para a pulsão, diferentes das que foram até então trilhadas durante a infância, em específico, os ideais de cleptomania de PR (FREUD [1905 e 1914b], 1996). A questão dos ideais é fundamental para a jovem. São eles que irão fornecer os meios necessários para elaborar a passagem da família ao mundo social mais amplo. O ideal do eu é justamente esse conceito de fronteira entre o individual e o social, constituindo o ideal comum da família.

 

Considerações finais

Refletir sobre a cleptomania implica analisar os fatores externos e internos com os quais PR se encontra envolvida. A menina reside em um local com alto índice de vulnerabilidade social; além disso, vive a erupção da puberdade, ressignificando vivências infantis, às voltas com a sexualidade. Psiquicamente, procura o prazer, o alívio e a descarga de tensão interna. Segundo Freud ([1905] 1996, p. 193), a excitação sexual pode surgir como um efeito concomitante num grande número de processos internos, tão logo a intensidade desses processos ultrapasse certos limites quantitativos.

Os prejuízos sociais e ocupacionais são frequentes em cleptomaníacos. Devido aos pensamentos e impulsos relacionados a furtar, é comum que o transtorno atrapalhe a concentração nas atividades diárias: a aprendizagem escolar, um possível trabalho o processo de socialização e a vivência familiar. Um olhar introspectivo para a saúde psíquica da família é importante, pois, segundo Roudinesco (2003), a instituição é responsável pelo desenvolvimento e formação dos filhos quanto aos aspectos emocionais e psicológicos.

Nesta casuística apresenta-se uma adolescente com pais enredados numa trama de pseudoverdades, favorecendo a formação de uma personalidade frágil e ambivalente, com atitudes manipuladoras e chantagistas. Ela vive um comportamento de oposição à família e à sociedade. Há evidências de uma fragilidade no superego, sugerindo a necessidade de ser descoberta e punida redimindo, assim, sua culpa pelos atos cometidos. Um possível fim de análise de PR passa pela dissolução dos restos do complexo de Édipo, “na medida em que ele está no cerne da experiência analítica”, aceitando a castração (LACAN, 2008, p. 14). Essa dissolução poderá favorecer um sentimento de pertença e vivência em sociedade, possibilitando o fortalecimento de um superego enquanto instância portadora dos ideais.

Quem roubou o meu afeto? Tentar responder essa questão implica buscar o que está por trás do dilema, visando “compreender a convergência dos diversos motivos como de natureza composta” (FREUD, [1905], 1996, p. 154), ou seja, as lembranças infantis, traumáticas e encobridoras, os sintomas patológicos e o recalcamento sexual. Responder à questão pressupõe compreender a “intensificação da resistência à pulsão sexual” (FREUD, [1905/1901] 1996, p. 156-166) e o desejo da criança.

Conforme Winnicott (2005, p. 141), “a criança que rouba algo não deseja o objeto roubado, e sim a mãe sobre a qual acredita ter direito”. Onde está o meu afeto? Talvez ele esteja nos contornos de uma casa onde os afetos não circulam, embora, paradoxalmente, tenha carinho; ou, quem sabe, debaixo dos colchões de uma jovem adolescente, no enigma dos laços familiares.

 

Referências

EY, H.; P. BERNARD, P.; BRISSET, C. Tratado de psiquiatría. Barcelona: Toray-Masson, 1969.         [ Links ]

FREUD, S. A dissolução do complexo de Édipo (1924). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 205-209. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).         [ Links ]

FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1914). In: ______. Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 247-250. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13).         [ Links ]

FREUD, S. As neuropsicoses de defesa (1894). In: ______. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 53-72. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 3).         [ Links ]

FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905 [1901]). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 19-116. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 81-113. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 128-229. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).         [ Links ]

GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ]

LACAN, J. O mito individual do neurótico, ou, A poesia e verdade na neurose. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. Privação e delinquência. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: jota@larnet.com.br

Recebido em: 03/08/2016
Aprovado em: 31/10/2016

 

Sobre o autor

Otacílio José Ribeiro
Psicanalista.
Aluno do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
Mestre em Engenharia de Produção: Mídia e Conhecimento - UFSC.
Especialista em Psicopedagogia e Educação - UNE/UEMG.
Especialista em Gestão Escolar - UFMG.

 

 

1 As palavras “roubo” e “furto” são empregadas aqui como sinônimas; juridicamente, porém, elas têm sentidos distintos.

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