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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.72 Belo Horizonte dez. 2016

 

CULTURA E PSICANÁLISE

 

Jackson Pollock: psicose maníaco-depressiva, corpo e criação

 

Jackson Pollock: psychosis manic-depressive, body and creation

 

 

Ana Paula Paes de Paula

IUniversidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste ensaio, analiso a psique de Jackson Pollock a partir de alguns elementos de sua história de vida, bem como de sua técnica de pintura e criação. Observa-se no artista a relação singular que o melancólico tem com o corpo, que é objeto de amor e de ódio. Na inspiração hipomaníaca, que o leva à action painting, o corpo é o lugar da perfeição e do bem-estar inefável: é obra de arte integrada à própria pintura. Explorando os pensamentos de Benjamin e Lacan, pretendo revelar as relações entre a obra do artista e essas manifestações de sua vida psíquica.

Palavras-chave: Psicose, Melancolia, Corpo.


ABSTRACT

In this essay, I analyze the psyche of Jackson Pollock from some elements of his life story as well as his painting technique and creation. It is observed in this artist the unique relationship that the melancholic has with the body, which is the object of love and also hate. In a hypomanic inspiration that leads to action painting, the body is the place of perfection and the ineffable well-being: is the work of integrated art to painting itself. Exploring Benjamin’s and Lacan’s thoughts, I intend to reveal the relationship between the artist’s work and these manifestations of his psychic life.

Keywords: Psychosis, Melancholy, Body.


 

Quando estou em minha pintura
não sou consciente do que estou fazendo.

JACKSON POLLOCK

 

A vida do artista Jackson Pollock é marcada por surtos criativos, depressão e alcoolismo, além de rompantes de fúria e autodestruição. Nascido em 28 de janeiro de 1912, o pintor foi um dos pioneiros do expressionismo abstrato, e sua obra se destaca pelo uso da técnica dripping, que significa respingar gotas de tinta na tela. Assim, Pollock era adepto da action painting, pois espargir tinta diretamente na tela, por meio de respingos, implica execução veloz – uma pintura em ação (ARAÚJO, 2006).

A action painting é a forma de pintura na qual o gesto tem um significado em si mesmo, de modo que todas as tensões e emoções do artista são reveladas sem nenhuma condicionante. O artista pinta caminhando ao redor da tela, ou sobre ela, para se sentir dentro do quadro. Desse modo, o próprio ato de pintar se torna o centro da criação, valorizando o movimento do corpo.

A técnica desenvolvida por Pollock consiste em traçar manchas, fios e gotas. Para isso, utilizava utensílios como facas, espátulas, colheres, paus, cordas, escova dental e outros objetos que permitissem borrifar ou salpicar a tinta. A tela, nesse caso, é colocada no chão, horizontalmente em relação ao artista. Pollock também aplicava outros materiais como areia e vidro partido, que conferiam ao seu trabalho diferentes texturas. O artista foi influenciado pelo cubismo de Pablo Picasso e o pós-cubismo de Joan Miró, mas demoliu os limites de ambos ao dar origem ao expressionismo abstrato, elaborando um trabalho único e singular.

Entre 1947 e 1952, Pollock passou por um período catártico de criação, que originou obras-primas definitivas como Blue poles: number 11 (1952), Number 32 (1950) e Echo: number 25 (1951). Em seguida sua pintura entrou em declínio, pois o artista perdeu a inspiração e entrou em um estado depressivo. Nessa época, refugiou-se novamente no álcool, o que resultou no fim de um casamento que lhe dava um sólido suporte emocional. Em 1956, aos 44 anos de idade, morreu após bater seu veículo em uma árvore, a um quilômetro de sua casa, em consequência de estar dirigindo embriagado.

Jackson Pollock não recebeu um diagnóstico conclusivo, mas especula-se que sofria de psicose maníaco-depressiva. Alguns elementos, no entanto, talvez possam sustentar essa hipótese, especialmente quando se considera sua relação com o próprio corpo e a maneira como isso influenciou sua arte. Outra evidência seria a criatividade que aflora em suas catarses, provavelmente hipomaníacas ou maníacas, nas quais seu trabalho se manifesta como irrupção do inconsciente.

Figura 1 – Blue Poles: Number 11 (1952)

Figura 2 – Number 32 (1950)

De acordo com Goidanich (2003), a maneira como os psicóticos se relacionam com o seu corpo apresenta inúmeras variações, uma vez que há distinções nos casos de esquizofrenia e paranoia, um elemento importante na elaboração de um diagnóstico. Um dos aspectos que se destacam é o intenso estranhamento que os psicóticos costumam ter em relação ao seu corpo, pois por vezes parecem alheios a ele, quase anestesiados. Por outro lado, em momentos de crise e surtos, os psicóticos costumam ser assomados por uma torrente de estímulos sensoriais, que lhes afligem e fogem ao seu controle.

A questão do corpo nas psicoses foi trabalhada com rigor por Lacan, nos seminários As psicoses (1955-1956) e Formações do inconsciente (1957-1958). Nesses textos, Lacan identifica na psicose uma fragilidade, um esfacelamento, uma falta de unidade, um inacabamento do corpo.

Partindo de Lacan, Goidanich (2003, p. 68) afirma que

[...] na psicose, o corpo não é uno e nem é próprio, pois segue sendo, muitas vezes, apenas uma parte, um complemento do corpo de um outro especular.

Tanto na neurose quanto na psicose, o sujeito se origina a partir da alienação no outro, mas na psicose falta a inserção efetiva de um terceiro na relação mãe e filho: o pai. A entrada do terceiro constituiria um corte, um processo de simbolização que triangula essa relação dual.

Márcia Goidanich (2003) também destaca a importância da conferência de Lacan O estádio do espelho como formação da função do [eu] tal qual nos é revelada na experiência analítica, realizada em 1936, mas somente publicada em 1949. Nessa conferência, Lacan descreve o corpo fragmentado, que busca unidade a partir da integração imaginária ocorrida a partir da alienação e da separação da figura da mãe, que é justamente o que falha nas estruturas psicóticas.

Goidanich (2003) busca em Walter Benjamin outras evidências para elaborar sua argumentação. De acordo com o filósofo, o corpo desmanchado e sem unidade é característico de todo ser humano. Assim, analisando as artes plásticas e a literatura, Benjamin destaca as desfigurações e distorções, demonstrando que as pressões da cultura demarcam o corpo delimitando gestos, velocidade e modos de comportamento. Diante das imposições da modernidade, os sujeitos buscam se defender do excesso de estímulos pelo anestesiamento. Da mesma forma, os psicóticos tentam se defender da invasão absoluta do outro, que se expressa na relação dual com mãe, quando não há a interferência do pai como o terceiro. Partindo da desconstrução do corpo, Benjamin enfatiza a transitoriedade do sujeito e sua luta pela construção de um novo corpo, um corpo de resistência.

Goidanich (2003) não aborda a psicose maníaco-depressiva, mas trazendo suas elaborações para estudar o caso de Jackson Pollock é possível hipotetizar como ela se manifesta no corpo e o que nos diz a respeito do diagnóstico. Observa-se em Pollock a relação singular que o maníaco-depressivo tem com o corpo, que é objeto de amor e de ódio (GOROG; GOROG, 1990).

Na inspiração hipomaníaca que o leva à action painting, o corpo é o lugar da perfeição e do bem-estar inefável: é obra de arte integrada à própria pintura. Nos seus ataques autodestrutivos no auge da melancolia, o ódio se dirige ao corpo, até o acting out final, o acidente provocado por ele próprio, que o leva à morte.

Além disso, a tentativa de unidade entre Pollock e sua pintura na action painting talvez reflita um momento da hipomania, no qual contra o despedaçamento próprio da psicose, manifesta-se um corpo de resistência. As colocações de Goidanich (2003, p. 71-72), a partir de Walter Benjamin, nos permitem levantar essa possibilidade, pois a autora endereça a seguinte questão:

[...] seria o corpo na psicose um corpo de resistência, na medida em que evidencia o despedaçamento? Ou seria ele justamente um corpo no qual a resistência não pôde fazer função, não pôde se inscrever, deixando-o totalmente tomado, totalmente a mercê do outro? O que caracterizaria a possibilidade de alguma diferenciação, de alguma força resistencial? Não seria justamente o jogo que ocorre entre esses dois processos, o de separação e o de perda na alteridade, jogo este que por mais paradoxal que pareça, justamente sempre se dá de modo consonante, constituindo um constante devir onde separação e alienação fundam-se concomitantemente, possibilitam-se de modo simultâneo, que fundaria a inscrição de uma marca de diferença, de resistência, de algo novo?

Ou seja, não haveria na psicose maníaco-depressiva a possibilidade da alternância entre despedaçamento e unidade, que se manifesta de forma tão característica no action painting de Pollock? Na medida em que a action painting é a marca de sua capacidade criativa, não seria ela uma forma de resistência do corpo que faz surgir algo inédito e inovador, que singulariza a obra de Pollock, segundo os críticos de arte? Não seria esse um dos sinais que poderia confirmar um diagnóstico de psicose maníaco-depressiva para o caso do artista?

Por outro lado, podemos especular que a action painting para Pollock, que estabelece uma unidade para seu corpo, também significa uma estabilização, uma suplência ou metáfora para o terceiro, que não intermediou simbolicamente a relação dual mãe e filho (o Nome-do-Pai, ou “Não do Pai”). Em outras palavras, um sinthoma em termos lacanianos, que implica em um enlaçamento dos registros Imaginário, Simbólico e Real.

O caso de Pollock pode ser analisado de forma análoga ao que fizeram Guerra e outros (2008), que, a partir de Lacan ([1979] 2003), argumentam que a escrita em James Joyce é uma invenção que forja uma solução para o sujeito psicótico, apaziguando o gozo que o desestabiliza. Joyce com sua obra se torna um artífice inconsciente do savoir-faire, elaborando uma “amarração” para sustentar um outro modo de gozo, criando, assim, um ego que se inventa por meio da sua escrita.

Pollock, ao integrar seu corpo na sua própria obra, também constitui um ego provisório, que estabelece uma pausa em sua vida atormentada, marcada pelo alcoolismo e por rompantes de fúria. Podemos observar isso nas cenas reais do artista trabalhando, ou nas cenas do filme sobre sua vida Pollock, dirigido e estrelado por Ed Harris: o seu estado de pacificação e concentração impressionam o espectador.

Essa identificação entre ego e obra também se evidencia em algumas frases famosas do artista como “A pintura é um estado de ser. Todo bom artista pinta o que é”, ou “Eu não pinto a natureza, eu sou a natureza”. O fim do seu período catártico aponta para uma desintegração do sinthoma, que redunda em uma desestabilização que o leva à fase depressiva e autodestrutiva, culminando no acidente provocado por ele próprio, que causou a sua morte e a aniquilação do seu corpo.

De acordo com Lacet (2004), é importante diferenciar o sintoma e o sinthoma. O sintoma implica uma formação do inconsciente, uma articulação do significante, que está a serviço do gozo, que silencia o desejo e a produção criativa do sujeito. O sinthoma diz respeito ao saber fazer com seu sintoma, o que corresponde ao final da análise quando o sujeito esgota suas demandas inconscientes ao Outro e não tenta mais tamponar a falta, tampar o “furo” estrutural do Outro, mas procura fazer “borda” nesse “furo” apaziguando o gozo, “bordejamento” que é necessariamente criativo, uma vez que é a resposta real do sujeito em relação à questão se coloca para ele.

O que é interessante é que o final da análise para o neurótico corresponde à estabilização alcançada por alguns psicóticos: em ambos casos há um impulso criativo genuíno do sujeito. Daí se dizer que a neurose não estimula a criação, pois, enquanto permanece preso ao sintoma, o neurótico tende a perpetuar a repetição.

Assim, a relação de Jackson Pollock com o corpo enquanto parte de uma manifestação artística aponta para outra característica – a criatividade, que costuma emergir nas psicoses, e particularmente nos quadros maníaco-depressivos.

Em Tocados pelo fogo, Kay Redfield Jamison (2007) apresenta os resultados de sua pesquisa sobre escritores e pintores ingleses, bem como de outras investigações, que sugerem uma forte associação entre os temperamentos artístico e maníaco-depressivo. A irritabilidade, a ira, a desconfiança e a turbulência emocional, bem como aspectos destrutivos e mortais, como o alcoolismo, a toxidependência e as tendências suicidas, características que marcam o comportamento de Pollock, são apresentados pela autora como disposições comuns em estados maníaco-depressivos.

Além disso, Jamison (2007) apresenta o pensamento agudo, ágil e inusitadamente criativo, além de períodos de grande produtividade, energia e concentração como evidências da psicose maníaco-depressiva, o que também coincide com o temperamento e o estilo de vida de Jackson Pollock.

Pollock também parecia estar ciente do fato de que seu inconsciente aflorava a ‘céu aberto’ na sua produção artística, pois em frases que ficaram muito conhecidas afirmava: “a pintura tem uma vida própria e eu trato de deixar que ela aflore”, “quando estou em minha pintura não sou consciente do que estou fazendo”. Seu expressionismo abstrato dispensa mediação simbólica, pois pintar para ele era uma questão de expressão, de fazer vir à tona emoções e tensões no action painting, e não de interpretação.

Não seria a pintura a sua “escrita” do inconsciente, uma vez que ela tem uma linguagem singular e irreprodutível, que evidencia uma “assinatura” própria? A obra de Pollock e a forma como ele mesmo se refere a ela evidenciam que ele era “habitado, possuído pela linguagem”, parafraseando Lacan ([1955-1956] 1992, p. 284).

Lacan ([1955-1956] 1992, p. 153) também afirmava:

O psicótico é um mártir do inconsciente, dando ao termo mártir seu sentido, que é o de testemunhar. Trata-se de um testemunho aberto. O neurótico também é uma testemunha da existência do inconsciente, ele dá um testemunho encoberto que é preciso decifrar. O psicótico, no sentido em que ele é, numa primeira aproximação, testemunha aberta, parece fixado, imobilizado, numa posição que o coloca sem condições de restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha e de partilhá-lo no discurso dos outros.

Pollock, com seu sinthoma, não estaria realizando um testemunho do seu inconsciente por meio de sua obra? Talvez sua produção artística seja um milagre criativo que abre uma “janela” para que possamos “olhar” para o seu inconsciente, cuja linguagem é puramente imagética. O que é mais extraordinário é que a compreensão dessa linguagem dispensa mediação simbólica para aqueles que são capazes de “ver” a irrupção do Real, para além do mero entendimento racional.

 

Referências

ARAÚJO, A. M. Variações em torno do acto artístico. Working paper, 2006. Disponível em: http://www.eacfacfil.net/?page_id=2626. Acesso em: 11 jul. 2013.         [ Links ]

GOIDANICH, M. As configurações do corpo nas psicoses. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 65-73, jul./dez. 2003.         [ Links ]

GOROG, J.; GOROG, F. Questões sobre a estrutura da psicose maníaco-depressiva. Papéis do Simpósio do Campo Freudiano, 1990.         [ Links ]

GUERRA, A. M. C.; FIGUEIREDO, A. C.; BORÇATO, L. L.; VIEIRA e SOUZA, P.; ANDRADA, C. S. Sujeito e invenção: a topologia borromeana na clínica das psicoses. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 283-297, jul./dez. 2008.         [ Links ]

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LACET, C. Da foraclusão do Nome-do-Pai à foraclusão generalizada: considerações sobre a teoria das psicoses em Lacan. Psicologia USP, v. 15, n. 1/2, p. 243-262, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: appaula@face.ufmg.br

Recebido em: 11/03/2016
Aprovado em: 25/04/2016

 

Sobre a autora

Ana Paula Paes de Paula
Professora Titular da FACE-UFMG.
Doutora em Ciências Sociais (IFCH-UNICAMP).
Mestre em Administração Pública e Governo (EAESP-FGV).

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