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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.38 no.72 Belo Horizonte dez. 2016

 

CULTURA E PSICANÁLISE

 

O psicanalista: talvez, fazer cair as convicções...

 

Psychoanalyst: perhaps dropping convictions

 

 

Scheherazade Paes de Abreu

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca articular e misturar restos que ficaram de leituras, se depara com o sem sentido e os múltiplos sentidos, pois a palavra é qualquer coisa menos sólida, porém é evanescente e sexualizada. Talvez fazer cair as certezas, as letras e os sentidos, as mesmices. Talvez fazer outras coisas com as coisas tortas, com a subversão, mas nada disso; sem um certo amargar, sem pathos, sem a inscrição de que temos fronteiras e impossibilidades. O escritor, o texto e o leitor surgem e sofrem influências no momento em que o sujeito vive a sua própria análise, o seu próprio saber. Desse modo, à medida que a análise prossegue, a leitura se transforma e renasce em situação paralela e vizinha ao percurso analítico; assim, fertiliza a teoria e a clínica. Logo, a partir do momento em que se pode criar o nada em si mesmo, o sujeito toma o seu prumo, e assim, se depara com o seu cunho. Convido o leitor a inventar uma nova forma de caminhar a cada momento de despertar inconsciente, a cada momento do percurso analítico.

Palavras-chave: Sintoma, Phatos, Sentido, Psicanálise, Psicanalista.


ABSTRACT

This paper intends to articulate and to blend remaining pieces of text, faces the meaningless and the multiple meanings, because word is anything but solid, although it is evanescent and sexualized. Maybe to let certainties, letters, senses and sameness fall. Maybe to do other things with crooked things, with subversion, but none of this; without a certain bitterness, without phatos, without the mark that we have boundaries and impossibilities. The writer, the text and the reader sprout together, at the same time. All of them suffer influences through the moment when the subject lives to his own analysis, to his own knowledge. Thus, as the analysis proceeds and advances, the reading becomes morphs and reappears in a parallel position, besides the analytical path that nourishes theory and practice. From the moment when he can create anything itself, the subject will take its plummet, and thus come across his character. I invite the reader to invent a new way of moving at each moment of awakening unconscious, at each moment of the analytical path.

Keywords: Symptom, Phatos, Sense, Psychoanalysis, Psychoanalyst.


 

Não basta abrir a janela.
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego.
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora.
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse.
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

FERNANDO PESSOA [ALBERTO CAEIROΣ

 

Gostaria de começar este texto com a angústia de dar a ele um fictício nome, ou seja, um título para esta escrita, designar em uma frase ou palavra o assunto, pois o objeto do qual essas letras se ocupam, me escapa toda vez que tento em vão capturá-lo. Talvez minha angústia esteja em nomeá-lo logo. Ao fazê-lo, poderia reduzi-lo a um único pensamento, marcar uma única identidade. Então, tentarei lhe dar um nome que possibilite outros nomes, outras brechas. Por isso, gostei de começar com esse ‘talvez’, que pode remeter sensivelmente a uma baixa das certezas, a contradições, a um cair das convicções, que assim deslizam faltosamente da linguagem oral para a escrita. Pois bem, ninguém, portanto, dispõe de um único nome, uma única suposta identidade, nos diz Roberto Harari (2008, p. 61). Mas cada um porta um cabal nome valise.

Ir se inscrevendo psicanalista é um pouco deixar de possuir o sentido pleno que podem ter as coisas da vida e, desse jeito, pensar um pretexto, tornar sensível a contingência do significante, do distinto, do vários.

Nesse momento em que não se é mais determinado pelo objeto, mas pelo significante, isso o coloca em outro movimento, como sujeitos da palavra, e não sujeitados a um objeto, tal como um luto de uma parte de si, cuja sequela é o vazio, o nada, em que se descobre que a questão fundamental é a da existência. Logo, a partir do momento em que pode criar o nada em si mesmo, o sujeito toma o seu prumo e, assim, se depara com o seu cunho (DIDIER-WEILL, 2012, p. 66,15).

O saber do inconsciente é por natureza laborioso, e isso faz com que, mesmo que tenha lido e se debruçado sobre Freud e Lacan diversas vezes, cada analista permaneça verde, como uma viçosa e tenra folha de fícus, mas que, ao ser resvalado, ainda assim, tenha seiva, independentemente do seu tempo de vida. E permanecer verde é deixar escoar a seiva em si, se lambuzar dela como Freud, ao deixar escoar o seu próprio inconsciente, ao se revelar na sua essência, o abundante sentido das coisas, a inquietude com a adaptação.

O analista, escreve Didier-Weill (2012, p. 52), não é como o vinho que se aprimora com o passar do tempo, pois, com o passar do tempo, o analista tende a esquecer aquilo mesmo que fez dele um analista, esquecer o ato fundador e se instalar na honorabilidade.

Portanto, é bastante fecundo estar frente a frente com alguns outros, com os semelhantes e com os diversos, com os que partilham da leitura, da escrita, e dos pensamentos psicanalíticos, com os que estão aqui a ler estes enunciados ou a ouvir, ou que simplesmente partilham algum espaço em um ambiente de coexistência sem nada mais em comum, seja uma sala, seja um café, seja solitariamente ao ler estas folhas de papel.

É assim favorável, no sentido de fazer uma ponderação dos casos, de leituras, da técnica, do estilo, do não estilo, da presença e da ausência, de estar com o outro, mesmo que se esteja só, de deixar ressoar o inconsciente, a fim de fazer cair as convicções, a fim de persistir a psicanálise.

A psicanálise dissolve esse modo de tornar consciente o inconsciente. E, mais ainda, permite construir e esculpir, nos diz Harari (2008, p. 41), sob significantes novos por parte do analisante, significantes que fazem com que sua aparição e suas ligações inusitadas e incomuns possibilitem nomear as experiências na análise, como se isso nunca tivesse sido feito antes – com um certo cheiro de invento.

Com efeito, a palavra é qualquer coisa, menos uma unidade sólida, indissolúvel e permanente; porém é líquida e inclusive vaporosa, evanescente e sexualizada. Ela é um baú fechado onde se guardam outras palavras ocultas devido à ação da tampa, do tempo, dos bons modos, da censura, da denegação. Por isso, a linguagem é não somente preguiçosa mas também tacanha. No entanto, permite que se jogue e brinque com ela, e isso a faz avançar na construção. E como caem, em uma noite de sonhos, as peças de um traje que se veste, ao se abrir uma palavra, caem as letras que a compõem.

O nomear, o caracterizar, o qualificar unificam a palavra. E sua abertura designa algo do intolerável para o pensamento. Próximo disso, a abertura da palavra, seu desnudamento remete à ambivalência dessas coisas contrárias coexistentes. Seria preciso se encontrar com os contrários e fazê-los co-habitar, nos diz Fédida (1988, p. 45), frutificar juntos e, desse modo, transformar a ambivalência em experiência não contraditória de contrários, em que duas verdades coexistem.

O trabalho sobre a própria palavra, ou o conjunto delas, instiga os sentidos a brotar. Entretanto, guarnecer e ofertar ao paciente um montante de sentidos, ou a síntese, ou um compêndio, abastece, recheia e enraíza, o sintoma, dando, assim, mais sentidos, teorias e explicações para o neurótico. O sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, e o que ressoa não vai longe, nos diz Harari (2006, p. 201). É débil, é fraco, o sentido tampona.

O texto de Freud ([1937Σ 1980) Análise terminável e interminável desata para uma escrita que não cessa de começar. A cada começo abre um desenvolvimento que não poderá se concluir findar, pois quando começa, começa sem fim.

O trabalho em análise é um movimento cujo resultado não poderia repousar sobre uma descoberta que o interrompe, assim escreve Fédida (1988, p. 114-122). Aquele que fala ao analista na sessão encontra resposta para sua fala na sua própria fala. A recusa do analista de ceder a resposta, a sua não resposta faz com que seja sem fim.

Portanto, encontrar resposta à fala na própria fala não se reduz a uma devolução da pergunta, não se reduz ao silêncio, mas cabe à fala se abrir para o infinito, para o incomum, para o sem fim, de um desconhecido, um estranho que ela é. Isso traz consigo, a própria impossibilidade de concluir, pois o que toma a palavra é o interminável; desse modo, o infinito que faz parte do terminável.

O psicanalista nunca está no lugar onde esperamos encontrá-lo. Aponta sempre para um outro rumo. Assim sendo, não está na reta, mas na curva e no desvio. Parece persistir em estar na encruzilhada, entre o laço e o nó. Está nos atalhos, nas pontas, nos intervalos e nos suspiros, nos diz Leclaire (1986, p. 21).

Ele percebe, se surpreende, se espanta, e suspeita das evidências primeiras, das ideias prontas e acabadas, das amenidades, das certezas, das incertezas, das palavras vestidas, do não sei, do ‘não-é-exatamente-isso’, para ver o que há por detrás, por baixo, no entre e de viés, visto que a verdade sustenta a mentira. Pois, escreve Lacan ([1954Σ 1998, p. 381), o homem que, no ato da fala, reparte com o seu semelhante o pão da verdade, partilha a mentira, portanto, o sujeito é dividido por uma afirmação primordial e a denegação dessa afirmação.

A busca por uma análise pode ser questionada se há o propósito de se desprender de um sintoma. Mas isso não basta. É preciso que uma queixa, um lamento, uma ofensa, uma delação, um descontentamento, uma insatisfação, uma censura seja endereçada ao analista e que o sintoma passe da condição de resposta a uma condição de questão para o sujeito, para que ele seja atraído a decifrar. O sintoma é, assim, transformado em questão e aparece como expressão de divisão do sujeito, é direcionado ao analista, suposto deter o saber (QUINET, 1991).

No entanto, Harari (2003, p. 190) contextualiza que, na frase de Lacan ([1964Σ 2008, p. 267) “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta [...Σ”. Obter a diferença quer dizer, de uma forma ou de outra, que o analisante procura e trabalha para sustentar a sua mesmidade, não a sua diferença, para manter justamente o sintoma; logo, tenta manter o sintoma, embora diga o contrário.

A chegada do paciente pode ser por meio de uma queixa, de uma vergonha com relação ao seu gozo. O desejo do analista não é torná-lo “em conformidade com a norma”, não é fazer-lhe o bem, não é curá-lo, mas obter o que há de mais singular.

A análise consiste não em devolver o desvio à norma, mas em autorizá-lo, quando ele se fundamenta no autêntico (MILLER, 2008). Trata-se aqui não de adaptar ou conciliar, mas de mostrar que é justamente adaptado demais, moldado demais, invariável, de forma apaixonada e passiva ao sintoma. Para chegar à causa do desejo, transitaremos pelo caminho da angústia.

Na análise, nos diz Anzieu, (2006, p. 295), se abrem oportunidades para vivenciar uma imersão no mundo das fantasias tantas vezes metaforizado como “descidas aos infernos”. Sendo assim, quem sabe, a partir dessa paixão em padecimento, desse tormento em sofrer, desse se sentir mal, “do sintoma”, das verdades difíceis, poder produzir uma outra coisa qualquer, de mesmo cunho, porém dessemelhante do semelhante que era feito antes.

Freud ([1913Σ 1980), em seu texto Sobre o inicio do tratamento, aponta que, mesmo em momentos posteriores da análise, é importante considerar de forma cuidadosa e que não se deve conceder ao paciente a solução de um sintoma ou a tradução de um desejo, até que ele esteja tão próximo de se deparar, tão lado a lado, quase a ponto de colidir, e a ponto de esperar, e este pode ser um instante no qual estará tão perto de um estilhaço de verdade, que só tenha que dar mais um moderado passo – para conseguir por si próprio a metade de uma verdade. No entanto, não basta, e não é suficiente para o andamento da análise o sofrimento e o incômodo causado pelo sintoma, pois, essa força motivadora é diminuída por diversos fatores, nos diz Freud, é bastante conveniente que haja uma cota de libido que possa se opor às resistências.

O cuidado terapêutico do qual narra Miller (1997), diz daquela dose de verdade que o paciente pode assimilar num dado momento sem, contudo, gerar um desconforto excessivo e sem desmoronar o que se reconhece como mundo. O sintoma procura restituir uma verdade do sujeito, por isso desponta na situação analítica. E não devemos ter pressa e sair à procura, mas avistar imperfeitamente nas entrelinhas. É preciso que algo já lhe diga respeito de forma efetiva, esse estranho, essa ‘porção de palavra’ ‘essa ponta’ externa que vem a dizer o que já se sabe.

Logo, o equívoco, um modo de operar a interpretação, é antissugestivo e deixa aberta às escolhas, recorre à liberdade de sentido que o analisando queira lhe dar, mantém a indeterminação, o inesperado, a pausa, pois deixa a via aberta para um outro lugar. E do mesmo modo faz com que o analisando perca o caminho, perca o sentido, e se implique no próprio dizer (SOLER, 1995), tal que assim possa pescar e se espantar que na fala, se fala sem saber o que se diz.

Se procedermos de outro modo, nos diz Freud ([1937Σ 1996), e o esmagarmos com nossas interpretações antes que esteja preparado, não se produzirá efeito algum. No entanto, poderá ocorrer um despertar da resistência dificultando o avanço do trabalho.

O analista não deve ser cego, nos diz Miller (1997). É bom considerar as mudanças no paciente em seu modo de vestir, em seus movimentos, o que faz com o seu corpo, observar os detalhes, as pequenas sutilezas, as finezas, o que se esquiva. Eis que essas sutilezas podem portar um rastro de subjetividade e, desse modo, anunciar uma troca de posição subjetiva ou um modo de interpretação.

Na associação livre imagens transitam pela fala, pelo enunciado. Esse liberar da fala o introduz na linguagem do desejo, isto é, na linguagem primeira em que, para além do que ele nos diz de si, ele já nos fala à sua revelia, pois a redundância é precisamente aquilo que, na fala, faz às vezes da ressonância, assim nos diz Lacan ([1953Σ 1998). É esse ruído especial e ressoante que se torna distinto quando se fala. Assim sendo, a principal função da linguagem não é informar, mas evocar, na fala, a resposta do outro, pois o que me constitui como sujeito é a minha pergunta.

A interpretação psicanalítica é assim como uma interpretação musical. A forma, o tom, a harmonia das sonoridades para o paciente, principalmente no início da análise, tem muitas vezes mais importância que o seu conteúdo semântico, que o sentido das palavras (ANZIEU, 1998, p. 39).

A musicalidade (HARARI, 2008, p. 52-54) os burburinhos, os suspiros, o compasso, a modulação de voz, o ritmo, a eurritmia, a assonância, a consonância, a cadência, não são necessariamente formadores de palavras com sentido, pois a lalação – a língua materna, da mãe com seu rebento, tem os seus enunciados cantarolados, muitas vezes contrários e à margem das regras da linguagem, que outorgam, assim, os relevos e as reentrâncias recorrentes em cada um.

O exercício de analista é um conflito constante entre o ouvir, o mal ouvido, o não ouvido, o nunca ouvido, o inaudível – porque não perceptível – e o horror provocado pela audição. É uma via intermediária do símbolo como um ‘talvez’, e não como algo que é ou não é (GREEN, 2004).

Desse modo, como uma questão, um enigma desponta à dimensão da causa do desejo, por esse meio da resposta como não resposta ao apontar para um outro lugar, para a falta, o vazio. A frase, a palavra fica insistindo fora da sessão, faz com que o analisante associe e deslize na cadeia significante. Não existe um sentido final e absoluto, pois a direção aponta para o vazio, a falta de um significante que diga o que o sujeito é, uma vez que o que se revela ser nunca é o bastante (QUINET, 1991, p. 68-74).

Nenhum texto é definitivo, dizia Lacan. Todo trabalho comporta falhas e erros. A psicanálise resiste, insiste e se diferencia ao longo do tempo, pois disponibilizar um período a alguém para escutá-lo atentamente a falar, sem restrições, é algo cada vez mais difícil de encontrar.

Pois bem, Harari (2008, p. 165) nos diz haver algo de contraditório aos laços sociais no enunciado da regra fundamental, uma vez que, “fale, que o escuto”, fale, “fale besteiras”, “e sem censuras”, isso desliza para fora das normas estabelecidas.

Nessa perspectiva, o convite a falar é o contrário das normas e maneiras discursivas. Porta algo de extraordinário, de exclusivo e de uma singularidade não encontrada em outros discursos. Uma fala escutada nos pontos em que se quebra, distinta da comunicação, com raízes nas vacilações, nos chistes, nas dúvidas, nas charadas, nos erros, nos atos falhos. Talvez fazer cair as certezas, as letras, os sentidos, as mesmices, as promessas. Talvez fazer cair os paraísos e os ideais de um dia encontrá-lo. Desnudar, assim, as palavras.

E como escreve Buzzati (2005, p. 138), ao se ficar à espera de que as coisas boas estão por acontecer, as páginas da vida são lentamente viradas, passadas para o outro lado, acrescentam-se a outras já acabadas. Tão rápido passa o tempo, que a alma não envelhece. Por hora apenas uma leve camada; as que falta ler são em comparação uma quantidade abundante. Mas é sempre uma outra página gasta, uma porção de vida que se foi, à espera, a persistir na ilusão de que algo ainda está por começar, de que o bom da vida ainda surpreenderá, cada vez mais adiante, até um dia. Os melhores anos foram jogados fora, e não houve o tal fato notável que justificou a vida. As ilusões não passavam de um pretexto para dar sentido, para manter o sintoma. E o que registra a passagem dos anos?

Talvez cruzar com a contingência incerta do desejo, do desconhecido, do acaso, do real, do vazio desprovido de sentidos, das palavras sem coisas e das coisas sem palavras, do estado das coisas desencaixadas. Na análise.

Talvez fazer outras coisas com as coisas tortas, com os fragmentos, com os escombros, com a subversão, mas nada disso; sem um certo amargar, sem ‘amargosa’, sem pathos – um padecer passivo de paixão; mas nada disso, sem a inscrição de que temos fronteiras, grifadas no vinco dos limites da castração e nos limites que suscitam a dor de existir. Desse modo, nos diz Lacan, é estar frente a frente com a dor de existir, na análise.

Conforme Harari (2008, p. 171-197), é uma renúncia a um impossível, pois somos seres falantes. Não basta abrir a janela, não é bastante não ser cego, retomando Fernando Pessoa, mas ainda é possível se espantar diante de que o que se vê, nunca é o que se espera.

Os escritores são aliados muito preciosos cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra, com as quais ainda não sonhamos, escreveu Freud, em “Gradiva” ([1906Σ 1980, p. 20).

A escrita faz incessantemente sentido, nos diz Barthes (2004), mas é sempre para o evaporar, pois se recusa a um sentido último. Os livros podem nos incitar pela habilidade incomum e surpreendente de seus próprios escritores de transformar coisas em linguagem. Podem avivar nossa percepção, ampliar nossos ouvidos. No entanto, ao se findar a leitura, algo resta, algo fica. Logo, não se pode mais herdar respostas. Logo, é preciso se desprender. Nesse instante é que se pode iniciar um saber. No instante em que o romance termina nos diz Barthes (2004), é que a escrita se torna possível, pois o nascimento do leitor, se paga com a morte do autor.

O escritor, o texto e o leitor surgem e sofrem influências do momento em que o sujeito vive a sua própria análise, o seu próprio saber. À medida que a análise prossegue, a leitura se transforma e com ela emerge a escrita, os sentidos atribuídos flutuam.

A leitura pode, assim, se metamorfosear de tal forma que renasça, se crie e se construa incessantemente na escrita e na linguagem oral, em situação paralela e vizinha ao percurso analítico. Desse modo, fertiliza a teoria e a clínica. Convido o leitor a inventar uma nova forma de caminhar a cada momento de despertar inconsciente, a cada momento do percurso analítico.

Volto a recuperar aqui o início deste texto no qual dizia que ir se inscrevendo psicanalista é um pouco deixar de possuir o sentido pleno que podem ter as coisas da vida. Isso o coloca em outro movimento, como sujeito da palavra e, a partir do momento em se pode criar o nada em si mesmo, que se toma o seu prumo e, assim, se depara com o seu cunho.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: scheherazade_abreu@yahoo.com.br

Recebido em: 30/06/2016
Aprovado em: 24/11/2016

 

Sobre a autora

Scheherazade Paes de Abreu
Candidata em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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