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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.73 Belo Horizonte June 2017

 

Teoria e Clínica psicanalítica

 

Do amor imaginário ao amor simbólico - um percurso da transferência

 

From imaginary love to symbolic love - a transference’s path

 

 

Ana Beatriz Novelli;I Eliana Lazzarini;I Daniela Chatelard;I, II Márcia MaessoIII

I Universidade de Brasília
II Universidade de Paris VIII
III Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura traçar o caminho do amor imaginário proposto por Freud como sinônimo de transferência ao amor simbólico proposto por Lacan, ao dar prosseguimento ao estudo da transferência, introduzindo a ideia de “dom” na psicanálise.

Palavras-chave: Amor, Transferência, Dom, Identificação imaginária.


ABSTRACT

This article traces the path from imaginary love, stated by Freud as a synonymous to analytical transference to the concept of symbolic love, stated by Lacan, also introducing the idea of “gift” (don).

Keywords: Love, Transference, Gift, Imaginary identification.


 

A transferência freudiana como o amor imaginário

É na forma de amor que se tecem as mais diversas tramas da humanidade – no teatro, nas histórias, na vida cotidiana. E não poderia ser diferente na psicanálise. “O amor, há muito tempo que só se fala disso”, diz Lacan ([1975] 2008, p. 45) no Seminário 20, sem hesitar.

A transferência, conceito-chave para o entendimento da psicanálise, surgiu como homóloga ao amor do paciente pelo analista. O aparecimento do conceito data de 1895 no texto Psicoterapia da histeria (FREUD, [1885] 2016). Desse modo, é na clínica da histeria a primeira incidência da ideia de transferência, identificada nessa fase como uma “falsa conexão” (FREUD, [1885] 2016, p. 424) entre o paciente e o analista, aludindo a uma resistência inconsciente por parte do paciente aos avanços analíticos.

O exemplo utilizado por Freud ([1885] 2016, p. 424) para ilustrar sua conduta em relação à transferência foi de uma paciente que irrompeu em vontade de lhe dar um beijo ao final da sessão. Freud argumenta que é papel do analista esclarecer à paciente que essa vontade é um engano, indicando que o aparecimento desse desejo se refere não à situação ou à pessoa do analista, mas a um afeto do passado da paciente, que ainda não pôde se tornar consciente, porém não suporta mais permanecer reprimido e, assim, se manifesta em sessão.

Em outras palavras, o investimento libidinal posto pelo paciente no analista

[...] não deve levá-lo (o analista) a supor que se trata de algo provocado por sua própria pessoa, mas sim pela própria situação analítica (BRITO; BESSET, 2008, p. 690).

Nessa fase da clínica, Freud fundamenta sua prática na ideia de que o trabalho analítico consiste no “despertar de reminiscências” (BISSOLI, 2006, p. 21), causa do sofrimento histérico. Levando em consideração o estudo da histeria como guia para o primeiro comentário sobre a transferência em análise, podemos notar que sua descrição inicial considera a transferência como um sintoma histérico de resistência ao tratamento.

O afeto dirigido ao analista é uma possível atualização consciente de algo incompatível ao ego do sujeito que o expressa e que, portanto, enxerga na figura do médico um caminho seguro de escoamento e manifestação. Desde já percebemos, apesar de ainda pouco delineada, a ideia que prolongará o papel da transferência na teoria freudiana.

Então, nos deparamos com a seguinte questão: se o analista é suposto pelo paciente como lugar confiável para a projeção de seus afetos inconscientes, ele não ocuparia uma posição privilegiada para o manejo do destino de tais afetos?

Atento a essa pergunta ao elaborar o texto A dinâmica da transferência, Freud ([1912] 2010) estende a influência da transferência no tratamento e esclarece que, além de continuar sendo uma resistência ao tratamento analítico, a transferência é uma ferramenta fundamental no manejo do analista.

Nesse momento da teoria, a relação transferencial aparece como benéfica ao avanço do tratamento e é considerada um elemento essencial para o sucesso de “cura da neurose” (FREUD, [1912] 2010, p. 146).

E comenta

[...] os fenômenos da transferência oferecem grandes dificuldades ao psicanalista, mas não se deve esquecer que justamente eles nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos amorosos ocultos e esquecidos dos pacientes (FREUD, [1912] 2010, p. 146).

Essa extensão do papel da transferência no contexto analítico para além da resistência não deve ser percebida como insignificante. É a partir desse ponto que a transferência ascende a uma posição singular no setting. Para Freud, o entendimento do analista sobre o paciente e do paciente sobre sua própria neurose se baseia nessa relação.

É importante ressaltar que Freud identifica a transferência como fundação para todos os tipos de relacionamentos humanos. Todavia, é apenas na situação analítica, envolvendo tanto paciente quanto psicanalista, que é possível implicar ao analista uma escuta suportando seu lugar e, então, instaurar através dessa relação transferencial

[...] uma zona intermediária entre a doença e a vida, através da qual se efetua a transição de uma para a outra (FREUD, [1912] 2010, p. 206).

Nesse sentido, é por conta da existência dessa arena de expressão e por meio dela que há uma nova lógica freudiana de trabalho analítico: o paciente repete dentro e fora da relação de transferência com o analista, mas só se recorda de seu afeto inconsciente que o impeliu à repetição no momento de análise, por meio do desvelamento apontado pelo analista.

A partir disso, o analista intervém na cadeia lógica desconhecida do paciente, desvelando o que estava claro mas encoberto – a repetição. A intervenção do analista tem como pressuposto não uma cura imediata, catártica (como poderia acontecer nas sessões com a hipnose), mas um resultado a longo prazo, vindo da elaboração do sujeito com o tempo. O objetivo aqui é prosseguir o trabalho apesar daquela “resistência agora conhecida” (FREUD, [1914] 2010, p. 207).

A repetição inconsciente não precisa ser posta em ato para ser descarregada – o objetivo é fazê-la tornar-se “[...] material para o trabalho terapêutico” (FREUD, [1914] 2010, p. 205) a partir da fala elaborada em sessão.

Assim como o conceito de transferência, a finalidade da análise se estendeu desde 1895. A meta analítica continuou sendo o fim da repetição inconsciente desconhecida; no entanto, não bastava apenas despertar o paciente de suas reminiscências. A elaboração em sessão, por intermédio da fala e da transferência, se tornou essencial para a cura.

Podemos observar com bastante clareza a carga amorosa dos exemplos usados por Freud em suas ilustrações sobre a transferência. Desde os primeiros rascunhos, esse fenômeno está conectado intimamente com afetos amorosos e não é por acaso que em 1915 o autor volta a escrever sobre o tema em Observações sobre o amor transferencial.

Nesse texto, o exemplo oferecido por Freud é de uma paciente apaixonada, que provoca e seduz seu analista, empenhada em um movimento de repetição, transformando em ato e repetindo “[...] o que deve recordar, reproduzir como material psíquico e manter no âmbito psíquico” (FREUD, [1915] 2010, p. 220).

Ao analista que deseja e supõe ser possível continuar com o tratamento analítico quando confrontado com essa situação, resta apenas uma opção em resposta às investidas da transferência amorosa: acolher os sentimentos da paciente sem retribuir sua ternura, deixando claro o lugar de resistência que aquela atitude estabelece na continuação da análise. Dessa maneira, o analista convida o paciente a reconhecer essa resistência e continuar em análise. Para Freud, essa investida amorosa continua sendo um engano, uma máscara, ilusão, e o amor não é nada mais do que a própria comprovação da transferência.

Lacan comenta os escritos técnicos de Freud no Seminário 1 e mira precisamente esse ponto. “A transferência é o amor”, diz ele diretamente (LACAN, [1953-1954] 1986, p. 108). Assim, o amor deixa de ser exemplo ilustrativo para a transferência e se torna a própria transferência, como Freud parece propor inicialmente.

Lacan ([1953-1954] 1986, p. 108) afirma:

A estrutura desse fenômeno artificial que é a transferência e a do fenômeno espontâneo que chamamos amor, e muito precisamente o amor-paixão, são, no plano psíquico, equivalentes.

Segundo Lacan, “[...] o amor imaginário participa, no fundo, da ilusão” ([1953-1954] 1986, p. 133-134) porque, como ele mesmo diz, esse amor-engano, amor-ilusão, nada mais é do que o imaginário exercendo sua função. Esse é o próprio amor narcísico, transfigurado em imagem refletida. Ama-se a imagem daquilo que o próprio sujeito gostaria de ser, correspondendo à noção do eu-ideal.1

O amor-paixão, para Lacan, identificado como o amor de transferência freudiano, é posto como tal por causa da própria definição do registro em que se encontra, onde “[...] cada um de seus termos são imagens espelhadas do outro” (SCUBLA, 2011, p. 263). Entretanto, Lacan não se restringe a explicar o caráter imaginário do amor freudiano: em sua obra ele propõe estender o amor ao registro simbólico.

 

O simbólico como campo possível para o amor: o advento do dom

Lacan organiza seu estudo da psicanálise em três registros: o imaginário, o simbólico e o real, modelo que ficou conhecido como RSI. Os registros, como comenta Clavurier (2013, p. 126), podem ser comparados a “[...] três livros de notação diferentes, três livros em que anotamos as coisas que pensamos”, pertencentes a ordens distintas. Nesse sentido, cada registro tem sua própria forma de marca, e cada marca é feita de forma diferente.

Clavurier (2013) argumenta que, assim como Descartes organizou o tempo e o espaço como coordenadas num esforço metódico e distintivo (CLAVURIER, 2013, p. 129, grifos nossos), Lacan organiza o sistema RSI como referência análoga para a prática clínica, organizando o espaço e o tempo visando o manejo da transferência. Os três registros, interconectados sob uma forma nodal, marcam campos de influência, distinções necessárias para o entendimento de um fenômeno.

É importante localizar a estima do registro do simbólico para Lacan até a década de 1970. De acordo com Roudinesco e Plon (1998), até 1970 o autor organizava os três registros como SIR, evidenciando uma supremacia do simbólico em relação ao imaginário e ao real.

Embora hoje a teoria considere a organização RSI dos três registros, invertendo a importância do registro do real, a maioria dos textos utilizados nesse artigo são anteriores à década de 1970. Desse modo, essa referência primeira (SRI) é fundamental ao elaborar considerações sobre o estudo da transferência.

Roudinesco e Plon (1998, p. 714) apresentam a origem do verbete “simbólico” na antropologia desenvolvida por Marcel Mauss (1872-1950) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009), apesar de haver discordância quanto a esse lugar de início (SCUBLA, 2011). A categoria do simbólico lacaniano, impossível de ser desassociada do real e do imaginário, reformula o inconsciente freudiano por meio das noções da linguística e eleva o inconsciente ao princípio único no qual “[...] se organiza a multiplicidade das situações particulares de cada sujeito” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 714).

É a partir de um significante, como sustenta Iannini (2015), que o sujeito faz sua entrada na linguagem. O acesso do sujeito à linguagem, dimensão simbólica, faz com que o inconsciente se torne “discurso do Outro” (LACAN, [1953] 1998, p. 18), guardando de significante em significante (essencialmente, uma cadeia) os significados que o sujeito faz de si e das coisas que o cercam.

Trazendo o debate de volta para o amor de transferência, podemos entender que, ao falar sobre o simbólico lacaniano, dispomos de uma instância que considera a lógica da palavra e da existência do Outro como portador de significantes. A fala é meio privilegiado de acesso ao simbólico.

Em A báscula do desejo ([1954] 1986), ao comentar sobre o simbólico, Lacan utiliza como exemplo o eu-ideal (imaginário e narcísico) capturado no amor-paixão (Verliebtheit) para descrever o desejo que volta verbalizado, simbolizado em palavras:

[...] como diz Freud em algum lugar, a imagem do Ideal-Ich, cada vez que se refaz de maneira analógica a assunção jubilatória do estádio do espelho, cada vez que o sujeito é cativado por um dos seus semelhantes, bem, o desejo volta no sujeito. Mas volta verbalizado. Em outras palavras, cada vez que se produzem as identificações objetais do Ideal-Ich aparece esse fenômeno para o qual eu lhes chamei a atenção desde o início, a Verliebtheit (LACAN, [1954] 1986, p. 198).

Quem mostra esse importante ponto de articulação é Jean Allouch (2010). O trecho acima não pretende ressaltar o amor imaginário ilustrado pelo eu-ideal (Ideal-Ich) como única forma de expressão do amor. Em vez disso, evidencia uma espécie de submissão do Ich-Ideal imaginário ao registro do simbólico ao aludir que é por causa do envolvimento do “[...] sujeito por um de seus semelhantes”, pela via simbólica, que se torna possível a expressão desse amor. E isso não é tudo. O emaranhamento nos significantes do outro, que desperta o Ich-Ideal, “volta verbalizado”, pois o sujeito está imerso num mundo de significantes, “num mundo de sujeitos que falam” (LACAN, [1954] 1986, p. 198).

Allouch argumenta que o pivô comum que conecta a transferência ao amor é a fala. “Falar de amor, com efeito, não se faz outra coisa no discurso analítico” (LACAN, [1975] 2008, p. 89).

Desse modo, o amor, antes considerado no âmbito imaginário por Freud, se desloca para dentro do campo simbólico através das considerações acerca das palavras. Allouch ainda cita uma passagem de Lacan em que o psicanalista ressalta: “[...] aprendam a distinguir agora o amor como paixão imaginária do dom ativo que ele constitui no plano simbólico” (LACAN citado por ALLOUCH, 2010, p. 75).

Lacan faz uma espécie de cisão do amor ao quebrá-lo entre amor imaginário e dom ativo no plano simbólico, sem ainda explicar quais são as consequências de tal concepção para o entendimento da transferência.

Nesse sentido, podemos pensar o fenômeno da transferência com as coordenadas oferecidas pelos registros RSI. Em seu caminho imaginário, a transferência invoca uma identificação imaginária do paciente para o analista, o que é ilustrado através do discurso apaixonado do paciente. O amor narcísico é, em última instância, um apaixonamento (Verliebtheit) espelhado pelo eu-ideal (Ideal-Ich).

No entanto, se a transferência for enodada apenas nesse registro, não há de fato movimento de análise. Freud chegou a essa conclusão em vias práticas ao postular a dificuldade de continuação da análise com um paciente apaixonado pelo analista, mesmo sem articular diretamente os registros RSI. Apesar de Freud considerar o espaço privilegiado da fala através das elaborações das associações livres, suas ponderações priorizavam o movimento da transferência imaginária.

O salto dado por Lacan ao considerar dois tipos diferentes de amor (simbólico e imaginário) tem ressonância direta com a transferência na prática clínica por também prolongar a ela essa divisão.

Allouch se pergunta se amar – e, por isso, o amor – não seria o desejo de ser amado. A pergunta que o autor faz “Será amar ser amado por alguém?” (ALLOUCH, 2010, p. 75) é essencial para o entendimento do amor através da via de identificação narcísica.

Continua Lacan citado por Allouch (2010, p. 76):

Mas, inversamente [sublinho], o que é inteiramente não menos evidente, é que amar (eu diria correlativamente, e por causa disso mesmo) é justamente amar um ser para além daquilo que ele parece ser. O dom ativo do amor visa não o ser em sua especificidade, mas em seu ser.

Na passagem acima percebemos a utilização do “dom” como sinônimo ao amor simbólico e alternativa ao amor imaginário. O foco do amor não se restringe mais às características preciosas que o eu-ideal guarda, sua especificidade; ao contrário, seu ser. O amor simbólico prende nas suas redes um para além daquilo que se é enquanto objeto imaginário.

Existe uma diferença dessa concepção para aquela entendida em Freud: na identificação imaginária, ama-se aquilo que se “parece ser”, considerando o eu-ideal como origem e parâmetro. Já no registro do amor simbólico, ama-se “para além daquilo que parece ser”, ou seja, ama-se aquilo que também não parece ser, envolvendo um novo aspecto antes não considerado.

 

O objeto amante e o sujeito amado

A dinâmica entre o amor imaginário e o amor simbólico é esclarecida na lição de 7 de julho de 1954, quando Lacan fala sobre a situação analítica. Nessa parte do Seminário 1, o psicanalista destrincha a função do objeto amante e do sujeito amado.

A princípio paradoxais, as categorias do sujeito e do objeto são invertidas nesse raciocínio. Allouch (2010) aponta uma lógica fundamental ao questionar se, na verdade, amar não se definiria pelo desejo de ser amado. Nesse caso, o amante é quem sofre pela paixão de um outro. Ou seja, o amante seria o apaixonado, que ama ativamente não o objeto de sua paixão, mas o lugar em que for colocado.

Segundo Lacan,

[...] o amor, o amor daquele que deseja ser amado, é essencialmente uma tentativa de capturar o outro em si mesmo, em si mesmo como objeto (LACAN, [1945] 1986, p. 314).

O sujeito, então, não é amante, é amado.

Nesse mesmo sentido irreverente, Lacan continua sobre o “desejo de ser amado” ao postular que

[...] o desejo de ser amado é o desejo de que o objeto amante [l’objet aimant] seja tomado como tal, enviscado, submetido na particularidade absoluta de si mesmo como objeto (LACAN, [1945] 1986, p. 315, tradução entre colchetes e grifos nossos).

A tradução literal de l’object aimant do francês para o português seria ‘objeto ímã’ e não objeto amante, correspondente à l’objet amant. Lacan faz um trocadilho ao preferir utilizar l’objet aimant a l’objet amant. Usado como um substantivo masculino, aimant evoca a figura do ímã; como adjetivo feminino, aimante qualifica uma relação afetuosa e amorosa.

Ponderamos que, no caso da expressão falada (l’object aimant), estamos nos referindo a aimante como um adjetivo feminino, qualificando um objeto que é amado. No entanto, desconsiderar a escrita proposital da expressão com sua denotação de substantivo aimant e seu consequente significado magnético seria empobrecer a discussão sobre o amor de uma maneira imperdoável.

A expressão l’object aimant oferece para a questão do amor um duplo entendimento: (a) o objeto é digno de afeto, propenso ao amor, um objeto amante; (b) o objeto é visado por aquele que sofre do amor (o sujeito amado), magnetizado pelo amor do sujeito que ama (o sujeito amado) e capturado pelo amor do qual participa. Desse modo, o sujeito amado captura o objeto amante na medida em que o amor é imaginário, e, nesse âmbito, não há relação dual possível.

Em última instância, o amor imaginário é realmente uma ilusão de relação, pois estão em jogo o sujeito que “deseja ser amado” (ALLOUCH, 2010, p. 78) e sua criação, o objeto amante idealizado. O laço criado por esse amor imaginário é fraco e não perdura com o tempo, pois se resume a se sustentar até o limite em que não trai a si mesmo.

Referindo-se à ilusão do amor imaginário, Lacan ([1954] 1986, p. 315) explica que,

[...] quando o ser amado vai longe demais na traição de si mesmo e persevera na enganação de si, o amor não segue mais.

A partir do instante em que o objeto amante expressa suas particularidades autônomas, suas especificidades, ele deixa de ser idealizado como tal.

Isso posto, é coerente apoiar a transferência, assim como o amor, para além desse espaço imaginário insustentável. O amor-paixão, fascinante e arrebatador, funcionaria como primeira captura do ser que ama. Em seguida, encontra-se o amor na forma de dom, simbólico, reelaborando essa captura arrebatadora (Verliebtheit). Contrariamente ao amor-paixão, o amor como dom enfatiza sobretudo a falta de harmonia entre o sujeito amado e o objeto amante.

No registro simbólico figura por princípio o significante, a partir do Outro, numa cadeia que não considera mais apenas o desejo do sujeito amado emaranhado em seu próprio objeto amante ilusório – e cabe lembrar que a situação é a mesma até quando o objeto amado é um outro sujeito!

A ilusão, pertencente ao imaginário, deixa de ser a via principal de expressão. O significante, com toda a sua possibilidade de mal-entendido, instaura a alteridade e cria, pela primeira vez, a possibilidade de um laço que considera uma relação dual.

É por isso que a transferência também necessita acompanhar o movimento que Lacan faz ao estender o amor imaginário ao amor simbólico. O dom, como categoria de expressão no registro simbólico, significa a possibilidade de hiância, espaço constituidor entre o sujeito do desejo e seu objeto.

O amor como dom, assim como a transferência pautada no simbólico, abre o espaço de movimento que o sujeito busca ao percorrer a cadeia de significantes em suas construções em análise. Em suma, não há análise se o amor e a transferência não forem pautados através da lógica do dom.

Lacan ([1954] 1986, p. 263) coloca a relação de transferência dentro do plano simbólico ao dizer que “[...] a transferência comporta incidências, projeções das articulações imaginárias, mas se situa inteira na relação simbólica”. Indissociáveis, os registros se sobrepõem à medida que a ótica sobre um fenômeno difere.

Por essas e outras razões, observamos com clareza como o salto feito por Lacan do amor imaginário freudiano até o amor simbólico, expresso na noção de dom, tem relevância crucial para o estudo da transferência.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ana Beatriz Novelli
E-mail: novelli.anabeatriz@gmail.com

Eliana Lazzarini
E-mail: elianarl@terra.com.br

Daniela Chatelard
E-mail: dchatelard@gmail.com

Márcia Maesso
E-mail: maessomc@gmail.com

Recebido em: 23/11/2016
Aprovado em: 11/04/2017

 

Sobre as autoras

Ana Beatriz Novelli
Mestranda em psicologia clínica e cultura da Universidade de Brasília (UnB).

Eliana Lazzarini
Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (UnB).
Doutora em psicologia clínica (UnB).

Daniela Chatelard
Psicanalista.
Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (UnB).
Doutora em filosofia (Universidade de Paris VIII).

Márcia Maesso
Doutora em psicologia clínica (Universidade de São Paulo).

 

 

1 O eu-ideal (Ideal-Ich) é um conceito freudiano que aparece pela primeira vez em Introdução ao narcisismo (1914) e é retomado por Lacan no Seminário 1, em referência à formação do narcisismo. O eu-ideal “[...] se encontra em posse de todas as preciosas perfeições do eu” (LACAN, [1954] 1998, p. 156), correspondendo a uma imagem perfeita de si, permitindo que o sujeito ame a si mesmo narcisicamente no registro imaginário.

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