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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.73 Belo Horizonte June 2017

 

Teoria e Clínica psicanalítica

 

Dos sonhos diurnos a uma concepção fundamental de fantasia

 

From daydreams to a fundamental conception of fantasy

 

 

Guilherme Henderson;I Daniela Chatelard;I, II Márcia MaessoI

I Universidade de Brasília
II Universidade de Paris VIII

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto propõe analisar a passagem da concepção freudiana de sonhos diurnos (devaneios) à sua elaboração da noção de fantasia. Essas duas noções se confundem em Freud até o momento em que o autor se depara com o problema das fantasias fundamentais. Com base nessa passagem, buscamos demonstrar a importância de um retorno a Freud que eleve a fantasia à sua estrutura lógica.

Palavras-chave: Fantasia, Sonhos diurnos, Sintomas.


ABSTRACT

The text proposes to analyze the passage from the freudian conception of daydreams to its elaboration of the notion of fantasy. These two notions confuse themselves in Freud until the moment when the author is faced with the problem of fundamental fantasies. From this passage, we seek to demonstrate the importance of a return to Freud that elevates fantasy to its logical structure.

Keywords: Daydreams, Fantasy, Structure.


 

Laplanche e Pontalis (2004) em seu dicionário de psicanálise definem os sonhos diurnos como

[...] um roteiro imaginário em estado de vigília, destacando, assim, a analogia existente entre este e o sonho. Os sonhos diurnos constituem, como o sonho noturno, realizações de desejo; seus mecanismos de formação são idênticos, com predomínio da elaboração secundária (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 418).1

O sonho diurno ou devaneio é aquele momento do dia em que nos encontramos sonhando acordados. Quando, por exemplo, o jovem está no ônibus, indo a uma entrevista de emprego e é absorvido por ficções imaginárias de como será a entrevista, se irá ser contratado, o que irá fazer com o salário, viajar, conhecer uma mulher... O devanear acontece com todos nós várias vezes ao dia, normalmente em momentos de tédio, cansaço ou quando estamos “hipnotizados” por uma voz (do professor em sala de aula), pela música da secretária eletrônica.

O que Freud e Breuer ([1893] 1993) apontam na Comunicação preliminar é que esse sonhar acordado pode fornecer o terreno para a dissociação da consciência, para o estado hipnoide, portanto para o surgimento do sintoma. Os autores indicam que esse funcionamento é muito semelhante ao da sugestão hipnótica, como se os sonhos diurnos hipnotizassem a pessoa, e o produto desse procedimento seria o fenômeno histérico.

O objetivo desta investigação é acompanhar os desdobramentos que a noção de sonho diurno encontra no desenvolvimento do texto freudiano. E através da apresentação das reformulações que essa noção sofreu no decorrer da obra, evidenciaremos seu abandono paulatino e o destaque acentuado a noção de fantasia. Esse percurso será de suma importância para entendermos por que Lacan eleva a fantasia a um lugar de destaque na psicanálise – que o próprio Freud não havia dado – ao pensar nela como a chave para o final de análise.

 

A importância preliminar dos sonhos diurnos na causação dos sintomas

Em Estudos sobre a histeria Freud e Breuer ([1893-1895] 1993) nos apresentam as primeiras elaborações a respeito da estrutura dos sintomas histéricos. Os autores nos fazem de antemão um alerta a respeito da clínica da histeria: para entendermos esses fenômenos é necessário ir além do exame clínico tradicional, é necessário nos perguntarmos sobre a biografia dessas pacientes. Acreditavam que era possível buscar na história de vida dos pacientes o nexo causal entre um fenômeno ocasionador e o atual fenômeno patológico.

Nesse momento o fenômeno ocasionador seria um evento traumático do passado ocorrido na infância. Uma situação traumática não se caracteriza por suas características intrínsecas já que determinadas situações podem ser traumáticas para algumas pessoas e não para outras.

Traumas aqui são traumas psíquicos, isto é, situações em que determinada pessoa de alguma forma ficou impossibilitada de reagir, foi pega de surpresa e ficou sem palavras ou sem reação.

[...] o trauma psíquico ou, mais precisamente, a lembrança do mesmo age como um corpo estranho que ainda muito depois de sua penetração deve ser considerado um agente atuante no presente [...] mais ou menos como uma dor psíquica lembrada em consciência desperta ainda provoca lágrimas tempos depois: o histérico sofre sobretudo de reminiscências (FREUD, [1893-1895] 1993, p. 23-25).

Embora as histéricas não conseguissem esquecer esses traumas psíquicos, paradoxalmente não conseguiam se lembrar deles. É desse paradoxo que se inicia a elaboração psicanalítica a respeito dos sintomas. A primeira resposta dos autores é que essas lembranças se conservam porque não pudemos reagir ou reagimos de forma inadequada a tais cenas, e o afeto despertado nelas fica ligado à recordação.

Além disso, nos fornecem uma analogia preciosa: quando recebemos um xingamento e não temos a oportunidade de retribuí-lo, ficamos posteriormente remoendo aquela situação porque o afeto está preso na representação daquela situação. Isso nos leva a crer que o simples fato de pôr esse afeto em palavras, de poder reagir verbalmente a determinadas situações já é em si uma forma de cura. Falar é reagir.

A segunda resposta é que de alguma forma algo impediu a corrente associativa de seguir seu curso natural. Numa situação traumática a recordação de ter recebido um socorro após um acidente poderia de alguma forma apaziguar a lembrança de tal acontecimento. No entanto, essas lembranças ‘apaziguadoras’ não funcionam na histeria porque as histéricas as ‘congelam’ à primeira cena.

Mas daí surgem duas perguntas: O que impediu a reação a tais situações traumáticas? Por que houve esse congelamento, esse efeito de paralisia diante delas?

Em relação à primeira pergunta destacaremos uma das respostas dos autores, que aparece de modo tangencial, mas ganha força ao longo da Comunicação preliminar. Para eles o estado psíquico (terror, pânico ou sonho diurno) em que se encontrava a pessoa poderia ter ocasionado a não reação. O fato de a histérica estar sob efeito de um estado psíquico como o sonho diurno poderia impossibilitá-la de reagir adequadamente.

Na terceira parte da Comunicação preliminar (1899) Breuer e Freud apresentaram uma conclusão baseada nos estudos sobre a histeria na época:

[...] aquela cisão da consciência, que nos casos clássicos conhecidos é tão evidente na forma de double conscience, existe de maneira rudimentar em toda histeria, e que a tendência a essa dissociação e, com isso, ao aparecimento de estados anormais da consciência, que reuniremos sob a denominação de “hipnoides”, é o fenômeno fundamental dessa neurose (FREUD; BREUER, [1899] 1993, p. 31).

Vemos que o estado hipnoide é considerado uma pré-condição característica da histeria. Apesar de sabermos que o termo é introduzido por Breuer no ensaio, Freud apoia essa teoria, já que para ele era inadmissível a concepção de Janet, que limitava a histeria a uma predisposição inata. Entretanto, se acompanharmos a teoria de Breuer presente no ensaio, notaremos um encaminhamento precioso. Para ele esses estados hipnoides fornecem o solo sobre o qual o afeto se instala na lembrança patogênica, com suas consequências somáticas (FREUD; BREUER, [1987] 1993, p. 31).

Mas os autores se perguntam o que causaria os estados hipnoides:

[...] acreditamos que muitas vezes se desenvolvem a partir de devaneios ou “sonhos diurnos”, tão frequentes em pessoas sadias, e para os quais os trabalhos manuais femininos, por exemplo, fornecem ocasião (FREUD; BREUER, [1987] 1993, p. 32).

Ora se os estados hipnoides forneciam a chave para o desencadeamento da histeria, agora os autores parecem avançar para a hipótese de que os sonhos diurnos precedem a formação de estados hipnoides. Isto é, não apenas uma pré-condição particular das histéricas que causa os sintomas, mas uma atividade psíquica comum a todos, inclusive os “normais”, o sonho diurno. Vejamos como essa noção prossegue agora nos textos psicanalíticos de Freud.

 

Dos sonhos diurnos às fantasias

Em Escritores literários e o fantasiar2 Freud (1908 [1907] 1993) se mostra interessado em investigar de onde os escritores literários (poetas, romancistas, dramaturgos) retiram a riqueza para a sua produção e como conseguem comover seus leitores com suas histórias. A primeira aproximação da solução desse problema é a analogia que faz entre a construção das histórias dos escritores e as brincadeiras infantis, evidenciando que assim como as crianças brincam de faz de conta, os escritores buscam por meio de suas construções fantásticas criar um mundo novo, uma nova ordem que os agradem.

Mas as crianças ainda apoiariam seu fantasiar em coisas do mundo, objetos, brinquedos e através brincadeira elas seriam capazes de transformar em prazer aquilo que geraria desprazer – uma briga dos pais, por exemplo. No entanto, no caminho para se tornar adulto, a criança paulatinamente abandona seus jogos, seu fantasiar e passa a levar mais a sério o mundo, “[...] existe hora de brincar e hora de falar sério!”. Mas para Freud esse abandono criativo é impossível:

Não podemos renunciar a nada; apenas trocamos uma coisa por outra; o que parece ser uma renúncia na realidade é uma formação de um substituto. Assim, o adulto, quando para de brincar, só se desfaz do apoio em objetos reais; em vez de brincar, agora fantasia. Constrói castelos no ar, cria o que chama sonhos diurnos (FREUD, [1907], 1993, p. 128).

Notamos neste trecho que fantasia e sonho diurno são considerados sinônimos. Com o andamento da sua elaboração Freud modificará essa concepção. Notamos ainda que segundo essa elaboração, a atividade da fantasia abandona o apoio em objetos reais e tenta obter por meio do fantasiar um prazer antes vivido.

Enquanto as crianças compartilham suas fantasias a céu aberto, os adultos sentem vergonha de suas fantasias, escondem-nas, vivenciam-nas como o mais íntimo de seus segredos, acreditam ser os únicos portadores de tais pensamentos (apesar do caráter ‘comum’ de muitas fantasias). Nas fantasias das crianças estão em jogo desejos, por exemplo, o desejo de ser grande. Já nos adultos o fantasiar se envergonha por seu caráter infantil.

Nesse texto Freud elenca ainda uma série de características das fantasias/sonhos diurnos:

• apenas os insatisfeitos fantasiam: as fantasias retificam desejos insatisfeitos;

• os tipos de desejo encontrados nos sonhos diurnos são ambiciosos, egoístas, que servem para exaltar a personalidade ou desejos eróticos;

• possuem uma estrutura temporal em três tempos;

• são os estados prévios mais imediatos dos sintomas patológicos;

• os sonhos não são outra coisa que não fantasias, porem sob o efeito da desfiguração onírica.

Cabe notar que Freud avança sua teorização ao ver nos sonhos diurnos uma tentativa de retificar uma insatisfação na ordem dos desejos. Logo, os sintomas constituídos por eles também fazem parte dessa tentativa de corrigir uma insatisfação.

É interessante ressaltar que, mesmo que um sonho diurno se refira a uma exaltação do Eu como a ideia de ser um “super-herói”, Freud nota que por trás deles há um desejo erótico a ser satisfeito. Logo, mesmo que se apresente no nível do Eu, a fantasia esconde um problema no campo do desejo sexual.

A respeito da última característica, Freud expõe a semelhança entre o sonho diurno (tagtraum) e o sonho noturno:

Não posso omitir o nexo das fantasias com o sonho. Nossos sonhos noturnos não são outra coisa que tais fantasias, como podemos por em evidência mediante sua interpretação. A linguagem, como sua insuperável sabedoria, faz tempo que desvendou o problema da essência dos sonhos (traum) chamando também “sonhos diurnos” (tagtraum) os castelos no ar dos fantasiadores (FREUD, [1907] 1993, p. 131).

Nesse trecho começamos a notar que Freud utiliza a expressão “sonho diurno” como espécie de modelo dos sonhos noturnos, já que em ambos se faz presente essa atividade do fantasiar.

Já no texto Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, Freud ([1908] 1993) arrisca uma primeira divisão diagnóstica das estruturas que considera a fantasia: a paranoia se ampararia nas invenções delirantes, a perversão nas encenações perversas, e a histeria, na fantasia.

Freud eleva os sonhos diurnos a certo tipo de “primeiro modelo” das criações da fantasia:

Fontes comuns e arquétipo de todas as criações da fantasia são os chamados sonhos diurnos dos jovens (FREUD, [1908] 1993, p. 141).

Para ele sintomas como ataques histéricos seriam sonhos diurnos de involuntária emergência, sem a presença da consciência os governando.

Isso nos leva a considerar que existem sonhos diurnos conscientes ou voluntários e sonhos que emergem involuntariamente (fantasias inconscientes). Ora, Freud aqui parece apontar uma diferença entre fantasia inconsciente e sonhos diurnos. Apenas as fantasias inconscientes podem se tornar patógenas e constituir sintoma. O trabalho de análise seria capaz de tornar conscientes tais fantasias e, assim, incidir sobre a cura do sintoma:

As fantasias inconscientes podem ter sido desde sempre, ter sido formadas no inconsciente, ou bem – caso mais frequente – foram uma vez fantasias conscientes, sonhos diurnos, e logo foram esquecidas, caíram no inconsciente em virtude da “repressão” (FREUD, [1908] 1993, p. 142, grifo nosso).

O texto ainda evidencia que as fantasias inconscientes possuem um vínculo com a vida sexual da pessoa, mais especificamente a vida sexual infantil, como os atos masturbatórios. Para Freud a masturbação infantil se compunha da convocação da fantasia e de uma operação ativa de autossatisfação em cima dela.

Originariamente a ação era uma empreitada autoerótica pura destinada a ganhar prazer de um determinado lugar do corpo, que chamamos erógeno. Mais tarde essa ação se fundiu com uma representação-desejo tomada do círculo de amor de objeto e serviu para realizar de uma maneira parcial a situação em que aquela fantasia culminava. Quando logo a pessoa renuncia a essa classe de satisfação masturbatória e fantasiada, a fantasia mesma, de consciente que era, devém inconsciente. E se não se introduz outra modalidade de satisfação sexual,

[...] está dada a condição para que a fantasia inconsciente se refresque, prolifere e se desenvolva como sintoma patológico, ao menos em uma parte de seu conteúdo, com todo o poder da ânsia amorosa (FREUD, [1908] 1993, p. 143).

Os sintomas histéricos então figurariam fantasias inconscientes e revelariam o mesmo terreno erógeno de que se ocupava a criança em sua vida sexual infantil, as mesmas sensações e inervações motoras novamente seriam excitadas na conversão. Assim, o sintoma tentaria restabelecer uma satisfação sexual infantil, mas ao preço de ser inconsciente.

Não apenas através dos sintomas, os histéricos podem realizar tais fantasias conscientemente, em seus atos sexuais, comportamentos, etc. Os sintomas “[...] dariam notícias dos componentes da pulsão sexual do sujeito” (FREUD, [1905] 1993, p. 145), mas de uma forma velada, por serem um compromisso entre uma moção que quer se expressar e outra que não quer saber disso.

Mas o que o texto Fantasias histéricas (FREUD, [1908] 1993) inaugura é a possibilidade de pensar o sintoma não apenas como a representação de uma fantasia, mas também como a possibilidade de figurar duas fantasias opostas: uma de caráter masculino e outra de caráter feminino.

Como no ato masturbatório, em que determinada pessoa ora se identifica com a posição masculina, ora com a posição feminina, na situação representada, em certos ataques histéricos figura algo semelhante como no exemplo de Freud em que uma mulher apertava o vestido contra o ventre com uma mão e com a outra tentava arrancá-lo.

Notamos que dizer que há uma dupla fantasia na configuração do sintoma nesse caso e que a fantasia realiza dois desejos aparentemente opostos é o mesmo que dizer que a fantasia realiza um desejo difuso e indeterminado.

Em A novela familiar do neurótico [Romances familiares] um curto ensaio, Freud ([1909] 1993) consegue trazer uma ampla complexidade para o problema da fantasia. Para o autor, existe um momento da vida infantil em que as crianças começam a se afastar da autoridade dos pais, seja pela chegada de um novo irmão, seja pela educação, seja pelas comparações com outras famílias.

A rivalidade, o sentimento de se sentir menosprezado contribuem para o afastamento paulatino da criança e o início de um trabalho de construção e elaboração que Freud chamou de “novela familiar dos neuróticos”. Tais construções se revelam primeiro nas brincadeiras infantis e como os sonhos diurnos que se prolongam para além da puberdade e servem para realizar certos desejos:

[...] a fantasia da criança se ocupa da tarefa de livrar-se dos pais desprezados e substituí-los por outros, em geral de uma posição mais elevada [...] substituem os pais por uns de melhor cunha (FREUD, [1909] 1993, p. 218).

Destacamos dessa novela ficcional que a criança tenta consertar algo no nível do Outro, isto é, do que é uma família enquanto completa, “uma família de verdade”. Para o psicanalista, nas construções da criança ela tenta resgatar na verdade a época perdida em que via seus pais com os mais belos olhos, porque eles também a viam assim. A criança supervaloriza os primeiros anos de sua infância com tais fantasias e lamenta nostalgicamente o tempo perdido e o lugar perdido no desejo dos pais.

 

Uma dimensão fundamental na fantasia

Contudo, na Conferência XXIII - Os caminhos da formação de sintomas (1917), encontramos as considerações mais elucidativas e sistemáticas a respeito dos sonhos diurnos e da fantasia. Freud abre esta conferência nos alertando que curar sintomas não é curar totalmente a enfermidade, visto que resta na neurose a possibilidade de formar novos sintomas, nos levando a crer que um trabalho de análise deve incidir nesse núcleo interno da neurose.

Os sintomas seriam o resultado de um conflito e uma maneira substituta de satisfação da libido. A libido que teve sua satisfação frustrada na realidade buscaria caminhos por via regressiva e investiria em objetos abandonados. A instância psíquica do Eu, mediante a educação, a civilização, as ideais, se interporia censurando tal satisfação, e, assim, surgiria um conflito entre o Eu e satisfação libidinal.

Pelo efeito da censura, os mecanismos inconscientes da condensação e do deslocamento deformariam tal maneira de se satisfazer apresentando uma maneira tão desfigurada, que o próprio Eu não reconheceria como satisfação: o sintoma. As vias que a libido toma para a satisfação percorrem o trilhamento das vivências sexuais infantis, as primeiras cenas de vivência sexual vividas pela criança.

A partir dos relatos de tais cenas coletados, Freud nota uma repetição: a observação dos pais mantendo relação sexual, a sedução da criança por parte de um adulto, a ameaça da castração feita por um adulto. É importante destacar que em tais cenas sempre há a presença de um adulto que goza de um outro em posição de ‘objeto’.

Sobre a ameaça de castração Freud acrescenta algo importante:

A criança compõe essa ameaça em sua fantasia, tendo por base sugestões, o conhecimento que a satisfação autoerótica é proibida, e sob a impressão causada pelo descobrimento da genitália feminina (FREUD, [1917] 1993, p. 491).

Freud aponta para o material que será utilizado na elaboração de uma fantasia: sugestões, proibição do autoerotismo e diferença sexual.

Mas o grande salto operado por Freud e pela psicanálise até os dias de hoje é o espanto de que tais cenas primordiais, apesar de relatadas pelos pacientes, nem sempre ocorreram. É como se na atividade das lembranças das crianças algo criasse tais cenas e

[...] quando se encontram na realidade, ótimo; mas quando a realidade não as fornece, são produzidas a partir de sugestões e complementadas pela fantasia (FREUD, [1909] 1993, p. 492).

A hipótese de Freud da necessidade e da origem dessa construção das primeiras cenas sexuais parece ser apenas mais um momento do biologismo freudiano, por acreditar que são expressões do patrimônio filogenético da espécie humana. Isto é, no início da vida em grupo, os “bandos” humanos sofriam na realidade tais ameaças de castração, sedução e observavam sexualmente outros. Para Freud tais cenas de alguma forma deixaram de ocorrer na realidade, mas permaneciam na memória da espécie, se transmitindo de indivíduo para indivíduo.

Apesar do mal-estar causado por essa hipótese, por um caminho tortuoso Freud parece acertar: há uma questão de transmissão no problema da fantasia. Mas como se transmite algo? Por quais vias se não as da linguagem, das relações sociais e sexuais, a memória de um povo pode ser transmitida?

Seguindo texto freudiano, somos levados a pensar na fantasia como um mecanismo que suspende o princípio de realidade e permite que o homem desfrute prazeres que não seriam admitidos pelo Eu. Ele utiliza uma metáfora agrícola para definir essa atividade: a fantasia seria como uma área de proteção ambiental, uma reserva natural, afastada do princípio da realidade, em que se poderia viver com mais liberdade.

Segundo Freud essa área produz alguns frutos, como os sintomas e os sonhos diurnos. Esse é o primeiro texto de Freud que apresenta de forma decisiva a diferença entre fantasia e sonho diurno. O sonho diurno é uma possível produção da fantasia.

Se para Freud o sintoma segue caminhos regressivos para sua construção, investindo em objetos antes abandonados, tais objetos só estão disponíveis para o sujeito na medida em que se conservaram na fantasia. O último passo dado por Freud para a noção de fantasia parece ser em Bate-se numa criança (1917). Ali ele retira a fantasia de sua área de proteção, e não a restringe ao princípio do prazer, mas indica seu mais além.

Freud observa que relatar as fantasias em análise é mais difícil do que relatar que as lembranças sexuais infantis: as primeiras são envoltas em uma dimensão de vergonha e culpa; as segundas, não.

Para Jorge (2010) tal observação é fundamental, pois revela que a fantasia porta algo de não sexual propriamente dito, mas algo nomeado por Lacan de real, o sexual surgindo aqui como uma proteção em relação a esse real. Diferente dos textos em que se confundia com os sonhos diurnos, a fantasia aqui revelará características próprias: ser um elemento isolado, repetitivo, inerte, que gera vergonha e possui a estrutura de uma frase.

 

Referências

FREUD, S. Conferencia XXIII: Los caminos de la formación de síntoma (1917). In: ______. Conferencias de introducción al psicoanálisis (Parte III. Doctrina general de las neurosis (1917 [1916-17]). Buenos Aires: Amorrortu, 1993. (Obras completas de Sigmund Freud, 16).         [ Links ]

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JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, v. 2: A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.         [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J .B. Dicionario de psicoanalisis. Buenos Aires: Paidós, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Guilherme Henderson
E-mail: guilhermefh@gmail.com

Daniela Chatelard
E-mail: dchatelard@gmail.com

Márcia Maesso
E-mail: maessomc@gmail.com

Recebido em: 06/03/2017
Aprovado em: 11/04/2017

 

Sobre os autores

Guilherme Henderson
Mestrando em psicologia clínica e cultura (UnB-DF).

Daniela Chatelard
Psicanalista.
Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (UnB).
Doutora em filosofia (Universidade de Paris VIII).

Márcia Maesso
Pós-doutora pesquisadora do programa Psicologia Clínica e Cultura (UnB).

 

 

1Tanto esta quanto todas as citações de Freud são uma tradução livre do autor.
2Escritores criativos e devaneio, título da versão brasileira.

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